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quinta-feira, 28 de março de 2013

Três Poemas na Semana Santa

Três  Poemas na Semana Santa

                            Cyro de Mattos


1  Este Cristo

É maior que o mundo
Este andor feito na dor
Dos grandes rumores.
É maior que o mundo
Esta luz feita na cruz
Dos grandes tremores.
É maior que o mundo
Este amor feito no ardor
Dos grandes clamores.
Ó peso da terra,
Cuspe, chicotada, crivo.
E das chagas flores.


2  Soneto da Paixão

Ao pé do Cristo todas as infâmias,
Ao pé do Cristo todas as insônias,
Ao pé do Cristo todas as intrigas,
Ao pé do Cristo todas as refregas.

Ao pé do Cristo todos os sedentos,
Ao pé do Cristo todos os famintos,
Ao pé do Cristo todos os horrores,
Ao pé do Cristo todos os clamores.

Ao pé do Cristo todos os insultos,
Ao pé do Cristo todos os corruptos,
Ao pé do Cristo todos os ladrões,

Ao pé do Cristo todas as prisões.
Nessa onda que nos leva como cães,
Liberta-me, ó Deus de todas as paixões.




3. Nosso Bom Jesus

           

A Virgem Maria
Sentia como doía
O destino humano
Do filho de Deus.

Quando for um homem
Com o nome de Jesus
De tanto nos amar
Irá morrer na cruz.

Foi o que aconteceu
Com o nosso reizinho
Enquanto ele dormia
Como um cordeirinho.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Proc issão da Sexta-Feira Santa

Procissão da Sexta-Feira Santa



            ( Crônica de Cyro de Mattos)




Todos os santos na igreja eram cobertos com um pano roxo na Semana Santa, menos Jesus Cristo. Era proibido comer carne vermelha e beber leite. A refeição matinal era com café e pão. À noite a refeição era a mesma. Ainda bem que tinha um pouco de arroz e peixe no almoço. Achava sempre um jeito de chupar uma manga, um pedaço de melancia ou laranja para tapear a barriga e não sucumbir à fome. Fazia isso com cuidado, sem que minha mãe  soubesse. Ela dizia que as  pessoas   deviam jejuar na Semana Santa, em sinal de amor e respeito à morte do Cristo. O jejum era só naquela semana,  passava logo, ninguém ia morrer por isso.
            O comércio cerrava as portas na quinta e sexta-feira. Ninguém trabalhava nesses dias. A mãe  falou que um homem entendeu de tirar leite da vaca  na Sexta-feira Santa para tomar no café da manhã. Quando ele começou a puxar as tetas da vaca, só saía sangue em vez de leite. Aquilo era um sinal do céu para que o homem respeitasse o dia em que Jesus Cristo, o bem-amado salvador da humanidade, foi crucificado sem piedade pelos homens.
            Parecia que toda a cidade amanhecia vestida de roxo na Semana Santa, principalmente na Sexta-feira. Assistia ao filme sobre a vida, paixão e morte de Jesus Cristo  na matinê da Quinta-Feira Santa do Cine Itabuna. As pessoas saíam cabisbaixas  do cinema quando o filme acabava. Ninguém se conformava com o que fizeram com Jesus, que foi coroado com uma coroa de espinho, depois de ser cuspido e chicoteado. Para não se falar na cruz pesada que o pobre coitado carregara  pelas ruas. Não satisfeitos com tanta judiação ainda pregaram o filho de Deus  na cruz  de maneira cruel. Em vez de água quando Ele pediu, deram vinagre e, por último, enfiaram uma lança no coração.  Era demais o sofrimento de Jesus,  muita gente chorava.
            E tudo por causa do Judas, que traiu Jesus por um saquinho de dinheiro em moedas. O Judas passava como um dos apóstolos de Jesus, mas se rendeu à tentação do dinheiro. Deu um beijo na face  para entregar o filho de Deus aos soldados romanos. Todo mundo se vingava do Judas quando no filme ele aparecia enforcado, o corpo do traidor balançando numa corda amarrada ao galho da árvore seca. Nessa hora o  cinema quase vinha abaixo com as vaias da platéia.
           Tinha uma sensação na procissão da Sexta-feira Santa que tudo era pecado, dor e lamento pelo que fizeram a Jesus. A imagem de Nosso Senhor Morto era levada no andor pelas ruas  principais da cidade sob os cantos que falavam de pesares  e perdão:

                             Perdoai,  Senhor, por piedade,
                             Perdoai,  senhor, tanta maldade,
                             Antes morrer, antes morrer
                             Do que  Vos ofender...

            A tristeza estava nos ares por onde a procissão andava com Nosso Senhor Morto,  as pessoas sofrendo pelas pedras do caminho. Gente acompanhava a procissão descalça para pagar alguma promessa em razão da  graça alcançada através da bondade do Cristo salvador. Dona Olívia, a mulher do dono do Hotel Itabuna, vestida num comprido vestido  roxo,  que tocava  os pés, cabelos compridos caindo nas costas, fazia o papel de Maria Madalena. A matraca tocava, a procissão parava enquanto ela exibia  o rosto do Cristo no sudário..
            Numa voz doída, ela arrancava suspiros e lágrimas dos fiéis calados naquele trecho de rua em que a procissão parava.
                             
                           
                          Pai salvador,
                          Misericordioso,
                         Toca no meu peito
                        O sofrimento Teu.                  
                        Fadiga, sede,  fome.
                       Cuspe, espinho, sangue,.                   
                       Chicotada,  prego,
                       Madeira feita cruz,
                       Meu  Pai, perdoai
                       Os pecados meus.


.Naquele ano em que caiu uma chuva rala durante a procissão, usava as botinas novas que minha mãe presenteou-me no aniversário. A procissão voltava pela avenida do comércio depois de percorrer algumas ruas. A imagem de Nosso Senhor Morto já ia entrar na igreja para ser colocada no altar  quando a beata Detinha teve uma crise de nervos chegando a desmaiar. O padre passou um pouco de água benta na testa da beata, rezou  e pediu  que os fiéis cantassem com fervor. Os cantos entoados na pequena praça repleta de gente acordaram a beata Detinha, que começou a chorar alto e ao mesmo tempo agradecer ao Jesus Salvador por ter ali mesmo perdoado seus pecados.
No dia de procissão havia tanta gente na igreja e na praça que uma agulha não cabia lá dentro nem no lado de fora.  As  botinas novas apertavam  os meus  pés. Então pedi à minha mãe que me deixasse ir embora para casa, não queria ficar para ouvir a fala do padre encerrando a procissão. “ Os calos estão doendo muito, não agüento mais”,  disse  aporrinhado, ameaçando chorar. Ela ordenou baixinho no meu ouvido que ficasse comportado, acrescentando que a procissão já estava chegando ao fim.
Preferi não obedecer minha mãe. Foi só ela se ajoelhar com os demais fiéis na igreja para fazer a oração do creio-em-deus-pai, de olhos fechados, para apressado tirar  dos meus pés as botinas. Em casa disse à minha mãe que tinha resolvido agir daquela maneira para evitar que acontecesse comigo uma situação pior do que a da beata Detinha. Como ela desmaiaria ali mesmo na igreja. Mas a água benta que o padre passaria na minha testa, as orações  e os cantos entoados com fervor pouco iriam adiantar para que eu não ficasse desmaiado durante muito tempo.
Claro que minha mãe compreendeu. Em vez de sermão, da sua voz bondosa, escutei que eu não me preocupasse. Não ia calçar mais aquelas botinas apertadas.
Mas muita gente reparou e achou que menino mimado daquele jeito não daria certo no futuro.       

     
                 
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segunda-feira, 25 de março de 2013

Poeta Florisvaldo Mattos Opina sobre Poema de Cyro de Mattos Que Fala da Agonia do Rio Cachoeira

Poeta Florisvaldo Mattos Opina
Sobre Poema de Cyro de Mattos
Que Fala da Agonia do Cachoeira



Sobre o poema Bilhete do Rio Cachoeira para o Prefeito Vane, o poeta, escritor e jornalista  Florisvaldo Mattos enviou  e-mail ao poeta Cyro de Mattos e teceu o comentário seguinte:


“Amigo Cyro:


Só eu e uns poucos mais, talvez sobreviventes, estariam à altura de ler este seu soneto marcado de forte ânimo sensível e fazer as devidas ilações de alma que ele suscita, como depoimento de memória sentida, mas no fundo revoltada, indignada, pois foi neste venerável Rio Cachoeira que passei saudáveis horas de minha adolescência primeira, entre os 13 e os 17 anos, nadando com irmãos e diletos amigos, seja no Poço da Pedra do Gelo, em frente à futura Praça Camacã (não sei que nome tem hoje), seja nos poços da antiga pinguela de acesso ao Bairro da Conceição, defronte à balaustrada da Praça Olintho Leone, onde ficava a sede antiga da prefeitura. Lembrando daquele rio heróico  e sentindo o canto amargo e lamurioso de seu soneto, na forma clássica, mas sem rimas, vejo que ele, o venerável Rio Cachoeira, caminha para o mesmo destino do Rio Mucambo, de Uruçuca, justamente antiga Água Preta do Mucambo, onde aprendi a nadar, nos idos da longínqua infância, hoje um triste curso de fedorento esgoto. Mas é isso, amigo, é no mais dos casos viver para sofrer...

Vai o meu abraço de sentimento solidário.
Florisvaldo

domingo, 24 de março de 2013

Bilhete do Rio Cachoeira para o Prefeito Vane


              Bilhete do Rio Cachoeira
                  para o Prefeito Vane


                          Cyro de Mattos



Eu não me canso de dizer que estou morrendo,
Gente, dê-me a  mão, antes tarde do que nunca.
Tenho sede, tenho fome, tenho de tudo
Saudade, do tempo que fugiu da música

Sempre bonita,  das estações temperadas
Com sol e chuva. Peixes que ofertei a tantas
Bocas, água, areia de minhas moradas,
Meus sonhos quando a lua derramava prata.

Na triste descida que dia e noite faço
Em viscosas mágoas, pesadas de vômitos
Que me jogam, nesse volume de detritos

Contaminando-me a todo instante, no raso
E no fundo, lembro, sem saber pra onde vou,
Manhãs e tardes naquelas vagas do amor.

sexta-feira, 15 de março de 2013

O Poeta Menelau


Cyro de Mattos
              
Ainda não conhecia o fundador da Confraria dos Poetas de Burundanga. Exercia o mandato de presidente pela décima vez, sempre eleito por aclamação. Também com ele a regra era seguida à risca, só era poeta quem pertencesse ao ilustre quadro de membros efetivos da confraria.  Quem não tivesse o salvo-conduto, não imaginasse ser considerado como um verdadeiro poeta.

Era de estatura pequena, pescoço grosso, cabeça grande. Dentuço e nervoso. Tinha o sestro de sacudir a cabeça várias vezes quando estava dizendo um poema. Era amigo do prefeito, para quem  dedicava sempre dois ou três poemas no dia de seu aniversário. Assinava uma coluna no Diário da Burundanga onda comentava livros de poesia, apenas os volumes dos confrades. Contente, ali era um espaço ideal para publicar seus comentários literários ou  poesia de dez a vinte estrofes. O que não deixava de ser uma boa oportunidade para disseminar sua glória, quase dizia vaidade, mas isso não calhava com seus brios de poeta talentoso, segundo ele.

 Gostava muito de fazer poemas longos, curtos só os de circunstância. Detestava o hai-cai, coisa insignificante, de poeta minimalista, sem inspiração, habilidade no estro, alienado, cultor de fórmulas orientais para  compor o verso. De outras gentes que nada tinham a ver com a magnífica poesia cultivada por ele e os poucos leitores, que eram os mesmos integrantes da confraria.
   
Quando se dirigisse a ele, só admitia que fosse chamado  poetão Menelau. Vá lá, poetastro, nada de poeta ou poetinha, isso não condizia com a grandeza de seu estro, que tinha como marca supimpa as rimas mais instigantes. Por exemplo, coração com mamão, tesouro com besouro, presepada com batucada, cachoeira com besteira, facão  com anunciação, porrete com macete, camaradagem com garagem, alegria com pirataria, chulé com bicho do pé.

Estava abastecendo o carro com gasolina no posto. De súbito apareceu aquela cabeça grande na janela do motorista, os olhos rutilantes como se quisessem saltar do rosto ossudo.

Disse com entusiasmo:
-  Soube que você publicou um livro de poesia na França.
- Sim – eu disse.
Emendou sem pestanejar:

- Mas isso não é a glória. Não é trunfo para se achar  um verdadeiro poeta.
Meio assustado, disse que a glória não me preocupava. A imortalidade era uma fórmula usada pelos membros de uma academia.            

- Você precisa aparecer lá na confraria dos poetas da terra, retornou e insistiu na lembrança. - Precisa se filiar ao grupo. Se não tiver em nosso meio, nem se considere poeta.

E recitou o que ele chamava do mais recente poema de sua imbatível inspiração. Uma zorra com versos que rimavam coração com cheiro de manjericão, pele morena com embriaguez serena, e por aí seguia. Informou que os versos candentes desse poema ou o que fosse lá o que fosse tinha inspiração na sua bela Aurora, mulher,  companheira e eterna musa.

        -  Quer ouvir outro poema?

        Comecei a suar, apressando-me  em ligar o carro para  me livrar das investidas poéticas do Menelau.  Para sorte minha, ouvi o frentista dizer, no outro lado,  para que ele tirasse seu carro, que o tanque já estava cheio. Ele não deu ouvido. Começou a dizer outro poema, apesar de meu conselho para que fosse tirar o seu carro, o frentista já estava irritado de tanto pedir isso, tinha gente na fila querendo abastecer o veículo.  Foi o que me salvou. O poeta Menelau, o grande, antes que me esqueça, saiu chateado com aquela inconveniente interrupção à sua elevada dicção para soltar a verve,  que emergia, naquele instante, do encontro não marcado com um simples fazedor de versos.

         O poeta Menelau ainda lembrou antes de sair:

          - Apareça lá na confraria dos poetas.
          E arrematou com o peito cheio e cabeça nervosa:
          - Junte-se a nós e vá em frente como um verdadeiro poeta.        
  
          

segunda-feira, 11 de março de 2013

A Cara da Morte


       Conto de Cyro de Mattos 
                  


Queria acompanhar um enterro e ver  pela primeira vez  como era que enterravam o   defunto no cemitérioO enterro às vezes passava pela rua do comércio. As pessoas cabisbaixas atrás  seguiam o caixão com o defunto, que era levado pelos homens mais jovens. Quando cansavam,  revezavam-se. Outros homens seguravam agora nas alças do caixão, e o cortejo prosseguia em silêncio na rua de chão batido. Contornava a rua do comércio, rumo ao cemitério.
 Gente parava nos passeios, tirava o chapéu em sinal de respeito ao morto,  curiosos apareciam na porta das lojas. Ficavam olhando o enterro passar  com as  pessoas tristes. Algumas levavam flores nos braços, os parentes e amigos do morto. Quando era enterro de criança, meninos e meninas acompanhavam o cortejo à frente do caixão,  vestidos como  anjo  num camisolão de cetim branco,  uma coroa de flores na cabeça. Tinham asas feitas com penas de galinha, presas às costas. Levavam flores alvas e cantavam canto de igreja com os pequenos corações contritos.
 A primeira  vez que vi um enterro de  criança soube então  que menino como eu também morria. Ia para o céu, claro, o padre dizia isso na missa, que Jesus gostava muito das crianças porque eram puras, não tinham os pecados de gente grande. 
Mas o que era a morte, comecei a indagar lá em casa. A mãe falou que era uma mulher feia, mas quem acreditava em Jesus e seguia os preceitos que o filho de Deus ensinava não devia temê-la. Quando ela chegava para carregar uma pessoa  para o além, que é o outro mundo, quem  foi bom aqui nesta terra, não cometeu pecado pesado, vai  ter o seu anjo de guarda para levar a  alma para morar na casa de Nosso Senhor. Quem foi mau, cometeu os piores pecados, como matar o semelhante,  a morte leva a alma dele  para o fogo do inferno. Quem foi ora bom, ora mau, vai ser levado  para o purgatório, uma espécie de lugar onde a alma fica sofrendo pelos pecados menos pesados que cometeu  até se purificar e alcançar o perdão de Deus.
Tudo isso que a mãe explicava sobre a morte podia ter sua verdade e até me  convencia em parte  sobre o que essa mulher  feia  gostava de fazer a cada pessoa que levava para outras terras. Só não gostava quando  perguntava  se um menino  depois de morto podia voltar de novo para brincar com os amigos aqui na terra, e a mãe revelava   que nunca ninguém soube que isso já havia acontecido um dia.
-  Então a morte que vá  comer bosta de galinha! – dizia eu, fazendo com que minha mãe desse uma boa risada.
Quando perguntava ao pai o que era a morte, ele prontamente dizia que com ele a bicha imunda não viesse se fazer de prosa. A taca de couro grosso estava ali mesmo guardada no baú para dar umas boas tacadas na indesejada, se ela  algum dia entendesse de querer lhe fazer uma visita.
Sorria agora eu, satisfeito com a coragem  que o pai demonstrava para fazer correr a morte, se ousasse aparecer lá em casa. Ia receber na mesma hora uma boa surra aplicada nas costelas dela com a taca de couro grosso.
Naquele dia resolvi acompanhar o enterro que passava pela rua do comércio com poucas pessoas. No início acompanhei de longe, precavendo-me para que algum amigo de meus pais não me visse e fosse  contar depois  o que eles certamente não  aprovariam. Ficariam zangados e me colocariam de castigo. Proibido de brincar com os amigos por vários  dias.
Quando da ladeira em que o enterro subia vagaroso se avistou o muro do cemitério, aproximei-me por trás das pessoas que participavam daquele cortejo calado, com seus ares tristes. Pouco depois, entrava com  o enterro  no cemitério, que eu via pela primeira vez e que  me deu com seus ares sombrios um frio na barriga, como nunca tinha sentido. Tímido passei os olhos pelas galerias com muitas gavetas  tapadas com tijolos, pintadas de cal. O nome do falecido inscrito em cada gaveta. Observei capelas com retrato dos falecidos lá dentro, escultura de homens  importantes em cima dos mausoléus de mármore. Lá embaixo, a terra cheia de cruzes  indicava  covas rasas, provavelmente ali  os pobres eram enterrados. Foi para lá que o enterro se dirigiu.
A cova já estava cavada num buraco para receber o caixão com o morto. Antes de descerem o caixão, a mulher de cabelos brancos, num vestido pobre, pediu que tirassem a tampa. Queria ver o marido pela última vez. Ela  passou a mão no rosto do morto, que estava preto feito  carvão, os olhos fechados. A mulher começou a chorar alto. Esperei que  descessem devagar o caixão no buraco, estava amarrado com cordas grossas pelas alças..O coveiro jogou depois pás de terra, que aos poucos foi enchendo o buraco. A mulher continuava a chorar alto. Comecei também a chorar e, antes que ouvissem meu choro, fui saindo dali nervoso, tropeçando nos passos.  



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domingo, 10 de março de 2013

A Morte do Poeta Maior Francisco Carvalho


Cyro de Mattos



Morre, aos 86 anos, o poeta Francisco Carvalho, cearense de Russas. Autor de vasta obra e ganhador do Prêmio Bienal Nestlé, com o livro Quadrante solar (1982), deixa uma herança lírica de altitude incomum, na poesia brasileira contemporânea, mesmo que desconhecido pelos dispositivos midiáticos e pela indiferença do circuito editorial dos grandes centros econômicos do país. Dono de uma obra poética de qualidades inquestionáveis, tanto no plano formal como no conteúdo, no poema de lastro clássico ou moderno, de verso extenso ou curto, esse poeta insulado em  Fortaleza mais seria estudado na universidade, reconhecido pela crítica e conhecido do leitor se publicado por editora de circulação nacional, de São Paulo e Rio, centros dinâmicos de um eixo  que  até hoje funciona  como tambor cultural do Brasil.

Há quem diga que a melhor poesia produzida  hoje no Brasil está no Nordeste. A afirmação pode soar exagerada, mas deve ser considerada como procedente  com relação a alguns nomes que revelam em sua fatura poética uma produção  da melhor qualidade. O cearense Francisco Carvalho em Fortaleza, os baianos Florisvaldo Mattos, Ruy Espinheira Filho e Myriam Fraga em Salvador, Telmo Padilha no Sul da Bahia,  e o pernambucano Marcus Accioly no Recife  são nomes  que se inserem na pertinência da observação.

 O poeta  Francisco Carvalho estreou com Dimensão das Coisas em 1966 e de lá para cá publicou mais de vinte livros de poesia, demonstrando assim sua fidelidade   à “arte de excitar a alma com uma visão do mundo através das melhores palavras em sua melhor ordem”, conforme definição de Geir Campos, calcada na fusão que fez das concepções  de Novalis, Eliot e Coleridge sobre a obra literária escrita em verso.

            Na antologia Memórias do Espantalho, organizada pelo autor, publicada em 2004, o poeta cearense reuniu em alentado volume poemas escolhidos dos livros Os Mortos Azuis (1971), Pastoral dos Dias Maduros (1977), As Verdes Léguas (1979), Rosa dos Eventos (1982), Quadrante Solar (1983), Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, As Visões do Corpo (1984), Barca dos Sentidos (1989), Rosa Geométrica (1990), Crônica das Raízes (1992), O Tecedor e Sua Trama (1992), Sonata dos Punhais (1994), Artefatos de Areia (1995), Galope de Pégaso (1995), Raízes da Voz (1996), Romance da Nuvem Pássaro (1998), A Concha e o Rumor (2000), O Silêncio é uma Figura Geométrica  (2002) e Centauros Urbanos (2003).




Verão de Francisco Carvalho

    Cyro de Mattos
    

O sonho sobreviverá
Enquanto houver um bico
Que cate o alpiste
Do tácito entendimento,
Leve para outros ares
O som aceso do azul.
Um bico que semeie o amor
De graça dando a messe justa
Na fazenda livre do ar.
O sonho sobreviverá
No verso que inventa cores,
Canto por onde me iludo,
Triste eu me canso de tudo,
Faço-me rouco quadrante solar.
Rima do poço da morte,
Vertente da vida sem data
Sendo ilha e desvario,
Súbito prodígio de luz
No verão que esparrama
Pendões debaixo de nuvens
Como o espírito de Deus
Que sopra sobre as águas.
O sonho sobreviverá.


quinta-feira, 7 de março de 2013

O Visionário José Saramago


              Cyro de Mattos


A obra de arte literária responde a vários tipos de mimese na transposição da realidade. Reflete a realidade como é no realismo,  melhor do que é no idealismo (romantismo) e no grotesco pior do que é. De uns tempos para cá esses três níveis de mimese  passou a coexistir a um só tempo na obra de ficção, fazendo com que  a crítica moderna não mais aceitasse o esquema de classificação metodológica dos gêneros literários. No circuito pendular da arte literária apareceram novas técnicas para expressar o mundo de dentro e de fora transitando no século XX. Outras vozes e anseios ousaram inventar caminhos para libertar a obra literária da estrutura tradicional.

Aldo Huxley contraponteou o tempo lógico fragmentando os episódios da narrativa tradicional para dar vivacidade à trama. Proust apegou-se à memória psicológica para reconstruir o tempo perdido fazendo com que perdurasse através de momentos escoados numa só época. William Faulkner incorporou elementos de ordem múltipla na onisciência narrativa e conseguiu  aprofundar-se no complexo universo do herói  movido por paixões,  impulsos e terrores, que  levam o personagem para a derrocada dos sentidos sob o domínio do trágico. Usou para isso dois planos temporais, do passado e  presente, que se cruzam nos momentos decisivos da ação. James  Joyce empregou  quatrocentas  mil palavras para narrar um único dia, um único cenário e uma única  viagem do homem moderno, no período compreendido entre a manhã  e a meia-noite. Realizou a proeza com tamanha soberba técnica que se elevou ao plano de  ser o  inventor que mais transgrediu na forma para corresponder aos novos anseios dos tempos modernos. Empregou os  monólogos interiores ininterruptos e fluxos da consciência na escrita arrojada que leva para frente  essa noção moderna de mitologia.

           João Guimarães Rosa inventou um novo discurso  que subverte a sintaxe tradicional e reveste a linguagem com o canto e a plumagem das palavras. Inventou uma saga falsa, resultante do prodígio imaginativo e a linguagem encantada, a qual  foi recriada com palavras aladas. O tempo cronológico da narrativa linear assim foi  abolido. As categorias psicológicas e alusivas da poesia nas zonas ilógicas da ilusão tomam o lugar da linguagem realista para transmitir o rural com uma pulsação diferente.  A prosa escorrida no fluxo ininterrupto  do inconsciente, monólogos  vazados de interioridades, neologismos da linguagem com seus potenciais semânticos e poéticos, as percepções sábias dos personagens ritmadas em observações penetrantes e lúcidas acerca de um sertão mítico,  tudo isso faz de João Guimarães Rosa um dos grandes inventores da prosa moderna de ficção, colocando-o na  companhia dos maiores transgressores da novelística  mundial de todos os tempos.  

            É fato apontado pela crítica o ritmo de modernidade que escritores como José Saramago e Joaquim Cardoso Pires impuseram à literatura produzida por Portugal  na segunda metade do século XX. Uma nova concepção de arte literária  refaz outras dimensões nas relações entre o homem  e o universo com o objetivo, segundo  E. M. Forster, ao comentar a fantasia criada por Joyce em Ulisses, “de degradar todas as coisas e, mais particularmente, a civilização e a arte, virando-as de dentro para fora e  de cima para baixo”. (Aspectos do romance, página 96, Editora Globo). 

         A concepção e execução em níveis de vanguarda estão visíveis na prosa de ficção de José Saramago e alcançam na escrita um plano de organização perfeito. Ele manipula uma técnica narrativa com poucos parágrafos, usa os diálogos embutidos no discurso, entre as vírgulas, remetendo-nos dessa maneira a William Faulkner, romancista que colocou no texto verbal da narrativa a fala dos personagens fora do modo tradicional. O romancista português também faz uso das interioridades do personagem que se manifestam na consciência para expor nossa condição diante do mundo. É a própria consciência do personagem que revela seus tormentos  no discurso que, embora simbólico, torna-se, como em Faulkner, intensamente aflitivo quando expõe os níveis psicológicos e sociais de suas duras realidades.    

        Em Ensaio sobre a Cegueira, que pode ser visto como romance metáfora dos  sombrios tempos atuais, José Saramago é um  visionário pujante e denso, articulando  o discurso simbólico representado por um bando de cegos, que se move sem controle pela  cidade.  Sua fantasia cheia de solidões e terrores nos faz pensar em tempos sombrios para a humanidade quando ela  perde um dos sentidos vitais, a visão, e se comporta com gestos primitivos.

Percebe-se que José Saramago em Ensaio sobre a cegueira  não é apenas um eficiente assimilador dos elementos de vanguarda a serviço da escrita no romance moderno. Sabe ordená-los com habilidade no discurso construído com imaginação fecunda e convincente. E assim invade a ficção atual com a força de um fenômeno porque sabe inventar humanidades, projetar verdades que crescem nos conflitos da problemática interior do indivíduo e na crítica aos valores da sociedade. Expõe com grandeza criativa essas verdades que correspondem à nossa condição pelos  desvãos do mundo.

           O ensaísta na pele do ficcionista sabe tanto quanto qualquer um que a cegueira  é uma questão privada entre a pessoa  e os olhos com que veio ao mundo.  Nesse romance onde se cruzam literatura e sabedoria presencia-se  com José Saramago que a cegueira pode ter  outra perspectiva. E tudo começa  com um motorista, parado no sinal, que de repente percebe que está cego. E  é assim,  com as pessoas que chegam apressadas para socorrè-lo, que uma cadeia ininterrupta de cegueira se forma. Uma cegueira branca como um mar de leite, sem que jamais tivesse sido conhecida, alastra-se rapidamente em forma de epidemia. O governo decide intervir,  determinando que as  pessoas infectadas sejam colocadas no manicômio em quarentena. E aos poucos as características primitivas do ser humano começam a aparecer em cada cego.  A força da epidemia não diminui com as atitudes tomadas pelo governo. Depressa o mundo torna-se dominado pela cegueira e nele apenas uma mulher, não se sabe como  e em segredo, irá manter a sua visão. Enfrentará todos os horrores que serão causados, presenciando visualmente todos os sentimentos que se desenrolam a cada dia, como   desejo, ordem, carinho, humilhação, vergonha, do lado dos dominados; poder, ambição, violência, do lado dos subjugadores.

        Nesta quarentena com poucos recursos para que a vida tenha um mínimo de dignidade, esses sentimentos se irão desenvolver sob  lutas entre grupos pela pouca comida fornecida pelos guardas do governo,  na compaixão pelos doentes e os mais carentes, nos impotentes diante de cenas que antes nunca seriam cometidas, com atos de violência,  abuso sexual e  mortes.

Vamos aprender, nesse romance que nos tortura em cada lance descrito,  como dolorosamente  regredimos na escala biológica quando perdemos a visão. Mostramos  que somos feito dessa massa, a ruindade e a indiferença. Quando privada de uma de suas funções vitais, o olhar, a humanidade  reduz-se às circunstâncias absurdas de que viver não tem sentido, “pois a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”. (pág. 204). Não se deve esquecer que Ensaio sobre a cegueira  é também um romance  sobre o amor, o afeto e a solidariedade.

A imagem aterradora da vida que José Saramago passa neste romance  é de que os que enxergam têm o compromisso imenso de olhar os seres e as coisas sob a ética das virtudes,  já que os outros enxergam a existência apenas  pela superfície.  No início  eram três dúzias de cegos no manicômio, depois com a chegada de outros o número passou a ser  duzentos e quarenta.  Teriam que ali permanecer como o cão que não conhece outro cão pelo nome posto pelo dono. É pelo cheiro que um cego  identifica  o outro. Como outra  raça de cães é como os cegos apresentam-se em lances aterradores, cenas absurdas  nas quais o ladrar é o falar, o resto não conta, como feições, cor dos olhos, da  pele, cabelo, tamanho, idade, Lidas as idéias pelo romancista na mente dos personagens revela-se ali o mundo como se não existisse na zona do racional, fosse o inferno inundado de  porcarias e comportamento animal.  

Quando o grupo de cegos,  que fora instalado pelo governo em uma quarentena, consegue sair finalmente do manicômio,  em razão de  um fogo posto na camarata ocupada por um grupo de cegos dominante, a mulher do médico, que vê,  depara-se com a ausência de guardas na cidade  toda infectada com a putrefação de cadáveres, lixo acumulado, detritos espalhados por todos os cantos. Todo o tipo de imundice havia se instalado pela cidade. Os cegos passam a se movimentar com  os seus instintos animais,  sobrevivendo  como nômades, instalando-se em lojas ou casas desconhecidas.

Nessa verdadeira viagem às trevas, narrada por José Saramago no romance Ensaio sobre a cegueira, personagens como o primeiro cego,  a mulher do primeiro cego, o médico, a mulher do médico, a única que vê,  o velho com a venda preta, a rapariga de óculos escuros, o rapazinho estrábico, o ladrão do carro,  o cão de lágrimas  e outros coadjuvantes não possuem  nomes. Com suas particularidades movem-se nas cenas agarrados ao medo. Tateiam prisioneiros de sua culpa, rastejam com sua inocência, murmuram tristes entre  as sombras de seu destino. 

       Com técnica avançada, contexto filosófico, uma imagem desesperadora de  tempos absurdos projeta-se em Ensaio sobre a cegueira. Nela se arrastam seres humanos destituídos dos valores éticos, massificados, distantes das relações afetivas. Não se trata de romance de fácil apreensão. Saramago tirou do Livro dos Conselhos a epígrafe da obra, Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara, forçando-nos a refletir que aquele que melhor vê é quem observa, separa, seleciona, com lucidez julga, sereno ao outro abraça.  

       Mostra as reações do ser humano diante das  necessidades, sua incapacidade,  impotência,  desprezo e abandono. Leva-nos também a analisar sobre  costumes, regras morais, preconceitos,  através dos olhos da personagem principal, a mulher do médico, que se vê  ao longo da narrativa diante de situações inconcebíveis. Ela mata para sobreviver e preservar os demais, encontra-se com a morte de maneira inusitada. Caminha entre cadáveres espalhados pelas ruas, alguns sendo comidos pelos cães.  Permance olhando incêndios sem poder fazer nada. Após a saída do manicomio, entrando  numa igreja, vê um ambiente deserto batido pela solidão em que todos os santos se encontram vendados: “se os céus não vêem, que ninguém veja...” A narrativa termina quando, exatamente em função de contágio, de repente o mundo cego cede  lugar ao mundo imundo e desalmado. As lembranças  e passos  de outro mundo não desaparecem, permanecem na duração psicológica de suas aflições terríveis.

          José saramago declarou que Ensaio sobre a cegueira era  um livro intencionalmente  terrível com o qual queria que o leitor sofresse  tanto como ele  ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. Éra um livro brutal e violento,   simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da sua vida. São trezentas  páginas de constante aflição. Através da escrita impressa com as tintas do sofrimento,  tentou  dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso. 
         Obra que transmite enorme sofrimento ao passar uma imagem dolorosa do que podemos ser em circunstâncias adversas, de sua percepção do mundo  transbordam sentimentos perversos, baixas gradações de nossa condição em cada cena  violenta dos que perderam os rumos da vida.  A escrita de José Saramago  intensamente dolorida  nessa obra eleva-o à dimensão dos maiores romancistas visionários da literatura ocidental, como Kafka e o brasileiro José J. Veiga.

         Esses narradores cheios de símbolos, cronistas do absurdo dos quais  promana  um tempo histórico e uma visão  universal inadmissível da existência. Configura-se neles um  espaço habitado pelo ser humano com  seu pesadelo angustiante,  opressivo e sufocante.   



  
                                 Referências Bibiliográficas
  
Forster. E. M. Aspectos do romance, Editora Globo, Porto Alegre, 1969.
Saramago, José. Ensaio sobre a cegueira, Companhia das Letras, São Paulo, 1996.

A Poesia Espiritual de Alfredo Pérez Alencart




                     Por Cyro de Mattos



                   O poeta Alfredo Pérez Alencart  nasceu em Puerto Maldonado, Peru (1962), mas está radicado há anos  em  Salamanca, Espanha, onde é professor universitário desde 1987. Tradutor e ensaísta. Membro da Academia Castelhana e Leonesa da Poesia. Recebeu, pelo conjunto da obra, o Prêmio  Internacional de Poesia Medalha Vicente Gerbasi, do Círculo de Escritores de Venezuela, e o Prêmio de Poesia Juan Baños, de Valadoli.

              Como poeta publicou   La voluntad enhechizada  (2001),   Madre selva  (2002),  Ofrendas al tercer hijo de Amparo Bidon  (2003),  Pájaros bajo la piel del alma  (2006),  Hombres trabajando  (2007),  Cristo del alma  (2009),  Estación de las tormentas  (2009),  Savia de las Antípodas  ( 2009), Aquí hago justitia (2010) e Cartografia de las revelaciones (2011). Sua poesía tem sido traduzida para o portugués, alemão, inglês, russo, italiano, francês e outros idiomas.


            Teve publicado no Brasil, em 2011, o livro Cristo da alma (1), com tradução  e prefácio de  Cláudio Aguiar, posfácio de Carlos Nejar. A obra é dividida em  duas partes. A primeira,  Tenho Deus, compõe-se de  Em Nome do Filho, Em Nome do Pai e Em Nome do Espírito. A segunda,  Cristãos de Todos os Lugares, compõe-se de  Ocupação do Reino e Certificando a Partida. No final do livro há um poema no qual o poeta adverte: “Havia que disolver toda mazela/ enaltecida às vãs soberbas/ou sobre máscaras cheias de impiedade”.

           Na primeira parte como na segunda o poeta utiliza dez versos para cada poema.  A linguagem arma-se de metáforas, entonação bíblica, reflexões e alusões para a  abordagem do tema suscitado: a corrente do existir em Cristo pulsando na alma ante a precária  realidade da humanidade, A  dicção poderosa que emerge  desses poemas de forte fulguração espiritual é formada de versos agudos, alguns com a feição de versículos,  para expressar com firmeza  as tramas do mistério e seus unânimes exemplos, numa travessia capaz de  sangrar pela abundância do caos.

             Trata-se de um poeta de pulso, embora saiba que  precisa ser humilde para saldar dois mil anos de todo o peso terrestre, finitudes e contradições, dominações e desigualdades. Quitar o amor desviado das vías da ternura que se deixaram conectadas ao nosso destino cravado na desunião, no desterro, nas rinhas  de Caim e Abel. O poeta, nesse período tão extenso,  dá palavra ao sonho e se faz  testemunho de nossa história escrita às avessas,  mais para os escombros, as derrotas da alegría, do que para o canto puro dos passarinhos  modulado pela “frondosidade de Deus no coração”.

            Há nesse Cristo da alma, centrado na essencialidade espiritual da humanidade e seu destino marcado de errâncias, a legítima indignação do poeta direcionado ao sofrimento dos pobres, contrário às “narcóticas bonanças dos que exibem seu desmando, cegos de vista e duros de coração”. A solicitação do poeta neste sentido é para engendrar em sua alma  toda a justiça: “Vem, Espírito do Cristo, e refaz-me conforme teu evangelho que não é sopro estranho mas bênção e desafio, suave fragor à intemperie onde estivemos e estamos cantando vitória contra demências que danificam a Terra: passei a  ver-te em sonhos, naquele encontró que impõe seu calibre sem a ferrugem dos cravos”. Acrescente-se sem o lenho, o látego, o cuspe e o espinho,   mas naquele  amor que  nos foi retribuído pelo sangue derramado:  beijos e flores.
          Os poemas de Cristo  da alma, com suas metáforas profundas, nos fazem meditar ao som do coração sobre o profeta dos excluídos, o revolucionário de linguagem  com palavras cheias de verdades eternas, o irmão que nos dá a mão na solidão, a bússola certa na vastidão, a âncora na escuridão. Diante de poesía tão entranhada em crença fervorosa, tecida na voz que externa sentimentos com assombrosas paragens, “pois a fé não deve atar-se com arames nem se calçar com pés de trapo onde reina a penumbra”, considera-se o quanto viemos há dois milenios sem querer  o braço ao abraço, as mãos nas mãos para que a vida seja mais fácil.

            De fato,  passados tantos séculos, não nos envergonhamos de nossas traições, vaidades e egoísmos. A figura que o poeta ergue, neste Cristo da alma,   não tem o intuito de manifestar-se em densa prosa poética para ferir encobertos objetivos, suscitando uma  doutrina ungida muitas vezes em perfumes simuladores de esperanças e loucuras dos que não veem mais além  e seguem destituídos do milagre da alvorada que resvala nos famintos.  Esta fraternidade fidedgina e condigna do autêntico poeta que conversa com Deus, presente na perpetuidade revivida no atrito ou numa  carícia, comove, toca-nos com esse Cristo  doador de rações e sonhos.  

            Exsurge pelo olho azul que ilumina o não visível, e que  faz transparecer epifanías fundamentais como o amanhecer, na solidária solidão de um  vate anunciador de um discurso soluçante, calcado em impressões que soam absurdas, mas que também falam de sossego.  O  poeta propaga seus versos nesta  estranha irmandade, “não de sangue, mas, sim, de vida”, sempre a crescer como  vínculo de gravidade, do Pai, Filho e Espírito Santo. Perpassa com alento sua mensagem nesse livro que atordoa com suas esferas retocadas do infinito e, ao mesmo tempo,  pontilhadas do nosso sofrido estar no mundo.

          Sem lamentações vulgares,   este livro de Alfredo Pérez Alencart  alista-se  na linhagem dos intensos textos de poetas que conversaram com Deus, íntimos do seu afeto e compreensão.  Se a poesía não resolve problemas econômicos, políticos, sociais, religiosos, em Cristo da alma mais uma vez detém o tempo para fazê-lo ressurgir  na trajetória existencial dos seres humanos como generosa chama que emana  do Ser,  ilumina a hora dos fatos. Momentos que passariam despercebidos, em suas atitudes oníricas e de grandeza,  não fosse ela, Poesia, feita de  razão criativa,  penetrada de linguagem condensada com ricas significações, a inaugurar novos sentidos do mundo.

            Há quem acredite, como Dostoievski, que a Arte salvará o mundo. É caminho  para os homens se encontrarem na união geral e se descobrirem que a  razão e a emoção são os pontos nodais que, desatados, podem se fazer decisivos para nos tornar irmãos de verdade,  sem que se cobre nada por isso. .Não é preciso ser cristão para saber que sem o Amor o símio dissemina seu gesto compulsivo em nosso destino gregário. Perdura na solidão feita de sombras pessoais, na solidão em familia, na solidão em  multidão. Onde quer que estejamos haverá sempre um perto do outro e, ao mesmo tempo longe.

             O porvir cheio de prodígios, o pão eterno do amor, feito das altas manhãs e tardes, que se reconciliam com a pérfida peçonha, como alude o poeta, é o que  Cristo, o bem-amado salvador da humanidade, filho de Deus, propôs  quando veio a este vale de dores para   plantar cirandas no deserto,    canções de infância,  onde há ceia para todos, agua boa que mata nossa sede no bebedouro da vida. Só assim,  operada no milagre da comunhão, a vida  é possível, sem atropelos e sobressaltos.Nas veias e vías da ternura basta-se sem enganos, matanças da maravilha com uns dedos de metralha, de tal sorte  inconcebível, reproduzindo a fera  da antiga caverna para galopar nas trevas. Sem permitir a  trégua, banindo a pomba na légua, só querendo mesmo como designio o império da selva, como se o amor fosse o inútil e o absurdo, e não  a relva.  

               Doendo-se do puro desejo de fazer pulsar em si e no outro o Cristo na alma,  o poeta Alfredo Pérez Alencart, opõe-se  à hipocrisia sob quaisquer aspectos.  Depreende-se de seus  versos pungentes que a poesía não é  feita para ser cúmplice dos interesses dos que estão no comando da vida prenhe de necesidades materiais. È casa ampla, cuja arquitetura participa do seu tempo, mesmo que  a planta e as  divisões dessa construção procedam  de uma história escrita há milênios.

               Esta casa, erguida pelo Cristo na alma sensitiva e reflexiva do poeta, é banhada  pela luz da fraternidade,  ventilada pela brisa dos milagres onde ramagens estendem-se através da esperança pendoada sob o calor do amor. Por toda a extensão do espírito abriga  essas  causas e razões, intuições e ideais, na clave de quem abre portas e janelas para situações que ao primeiro encontro parecem desgarradas do fragor suave da carícia. 
   

                                
1- “Cristo da Alma”, Alfredo Pérez Alencart, tradução e prefácio de Cláudio Aguiar, posfácio de Carlos Nejar, Edições Galo Branco,  Rio de Janeiro, 2011
2- Cyro de Mattos é escritor e poeta. Premiado no Brasil e exterior. Tem livros publicados em Portugal (3), Itália (3), França (1) e Alemanha (1).