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sábado, 31 de agosto de 2013

                           Tempo das Boiadas

                                  (Cyro de Mattos)

No tempo em que a infância não era como hoje, com os jogos eletrônicos sendo o divertimento dos meninos, a  cidade tinha pouco movimento de carro nas ruas.  Ficava movimentada quando as tropas de burro passavam pela rua do comércio, carregadas de cacau ensacado. Paravam em frente aos armazéns de portas largas, onde homens fortes descarregavam do lombo dos animais os sacos de cacau ensacado. A cidade tinha poucos prédios de dois pavimentos. A feira ficava atrás da antiga estação ferroviária. Aos sábados, parecia uma onda que tinha de tudo, com gente que ia e vinha, uns compravam, outros vendiam. 
O jardim próximo à beira do rio ficava na Praça Olinto Leoni, o primeiro intendente da cidade. Os habitantes da cidade orgulhavam-se do jardim, era um cartão postal que encantava os visitantes, diziam. Dava uma impressão agradável a quem visse. O jardim tinha plantas e flores bem cuidadas pelos jardineiros da prefeitura,  palmeiras onde os passarinhos se aninhavam em algazarra pelo cair da tarde, duas  fontes luminosas,  um coreto para a filarmônica tocar marchas e hinos em dia especial.  Havia bancos embaixo das árvores para quem quisesse descansar. Os velhos ali sentavam e ficavam conversando sobre os anos idos e vividos. Os namorados davam voltas de mãos dadas pelo passeio do jardim. Quando estavam sentados no banco, permaneciam com as mãos entrelaçadas. A moça sorria para o rapaz que lembrava o beijo dado pelo galã  nos lábios doces da mocinha,  na última fita romântica exibida no Cine Itabuna.
Uma balaustrada comprida, erguida bem perto do rio, ficava separada do jardim pela rua calçada de pedras regulares. Por detrás da balaustrada havia um caminho estreito, margeando o rio, por onde desciam pequenas boiadas na direção do matadouro, construído em condições rudimentares em um dos aclives do morro.
                       Um dia combinei com dois amigos para irmos até o matadouro. Lá ficaríamos sabendo como o boi era abatido, retalhado em pedaços de carne, os quais seriam  transportados para que fossem vendidos no açougue. Lá chegamos calados por volta das quatro horas da tarde. Ficamos concentrados, apreensivos, em cima de um dos muros do curral, que tinha o piso do pátio cimentado, lá fora, como também na área debaixo do telheiro.
          Então vimos entrar no pátio do curral um boi laçado pelo homem musculoso. Foi preso ao mourão no meio do pátio. E logo tomamos grande susto quando o homem musculoso golpeou com as costas do machado a cabeça do boi. O animal deu um grito estranho, ajoelhou-se e borrou de bosta o piso de cimento. Ouvimos um baque surdo quando o bicho emborcou no chão, estrebuchando. Daí a pouco instante, o homem musculoso começou a tirar o pelo do boi com uma faca de lâmina afiada. 
           Não quisemos ficar mais tempo no matadouro. Saímos depressa de lá, horrorizados com a cena que acabávamos de presenciar. À noite, antes de dormir, eu com  os amigos Nei Gordinho e o Duduca armamos um plano lá na rua para impedir que no outro dia os bois, vindos do sertão, conduzidos por vaqueiros, chegassem até o matadouro. Nei Gordinho, o filho do funcionário do banco, seria o encarregado de soprar o apito na esquina quando avistasse a boiada descendo pela margem do rio e viesse se aproximando para descer pelo caminho estreito, junto à balaustrada.
            No dia seguinte, quando ele trilou o apito três vezes, bem forte, e avistamos a boiada se aproximando, começamos a soltar os fogos de São João na direção dos bois, que costumavam se apertar procurando entrar no caminho estreito que margeava o rio e a parede de pedras da balaustrada.  Eu e  Duduca, o filho do farmacêutico, estávamos em nossos esconderijos, encobertos pelos troncos de duas árvores no jardim. De lá acendíamos e soltávamos os fogos Adrianino para que as bombas explodissem no meio da boiada. 
           Logo os bois se assustaram e se esparramaram para todos os lados.  Alguns caíram nas águas e foram nadando até o outro lado do rio. Outros saíram em carreira desabalada, pisando plantas e canteiros do jardim. Ainda outros entraram na rua do comércio em correria, espalhando o pânico aos comerciantes, vexame e corre-corre às pessoas que por ali passavam pelo passeio das lojas.  
           Não sei até hoje quantos bois não seguiram naquele dia para o matadouro. Mas tenho certeza que alguns deles, que estavam marcados para morrer, não tiveram o mesmo destino daquele que vimos tombar sob o golpe do machado desferido pelo homem musculoso no matadouro. E que mal teve tempo para gritar, logo caindo de joelhos e borrando de bosta o piso cimentado do pátio. Numa cena terrível, que nunca mais queríamos que fosse repetida,  diante de nossos olhos espertos de meninos, ansiosos de descobertas e desafios na aventura da vida.  

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Bienal do Livro no Rio
A Editora da Universidade do Estado da Bahia (Eduneb) lançará as obras Ecológico, de Cyro de Mattos, poesia, da Coleção Nordestina,  Jorge Amado – da ancestralidade à representação dos orixás,   do professor Gildeci de Oliveira Leite, e Revelações Literárias, antologia, organizada por Ricardo Tupiniquim Ramos, durante a XVI Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, no dia 31 de agosto, no Riocentro.
       Enquanto isso, a Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz (Editus) estará lançando na Bienal do Livro do Rio o livro “Berro de Fogo e Outras Histórias”, de Cyro de Mattos, além de outros títulos. Promovido pela Câmara Brasileira do Livro de São Paulo, a Bienal do Livro, que neste ano será realizada no Riocentro, é um dos maiores eventos do livro no Brasil.
A Eduneb e a Editus participarão da Bienal  à convite da Associação Brasileira das Editoras Universitárias (ABEU).

domingo, 25 de agosto de 2013

                      A Escritora Sonia Coutinho
                                             Cyro de Mattos  
Tomo conhecimento da notícia de que a escritora  Sonia Coutinho foi encontrada morta pela filha em seu apartamento, no Rio de Janeiro, na sexta-feira, dia 23 de agosto.   Aos 74 anos de idade, a escritora baiana,  contista e romancista respeitável,  morava só. Havia  comunicado à filha pouco antes um mal-estar.
.   Nunca nos  acostumamos com o quadro triste da morte. É amarga  sempre sua memória. Em alguns  casos,  quando se vive muito, preenche-se a vida com ganhos, formando-se uma biografia bem-sucedida no plano familiar, econômico e profissional, há o consolo entre os parentes, amigos e conhecidos do falecido. O trauma é atenuado com  o fato  de que não se podia querer mais do morto. A dura lei da  vida foi para ele  recheada de trunfos. Assim, o falecido, de saudosa memória, deixa boas marcas e lembranças.
Com Sonia Coutinho, a traiçoeira invenção da vida não permitiu sob vários aspectos que os fatos acontecessem no lado azul da canção. Mas  não é o momento agora para se falar das amargas que perseguiram essa notável escritora baiana.  Se Virgínia Woolf disse que viver é perigoso, o que alcança todos nós,  em nossa condição de solitários no mundo, com Sonia Coutinho, autora de qualidades expressivas  indiscutíveis na moderna literatura brasileira, ao nível de Clarice Lispector, a dose deve ter sido bem forte. Uma lástima.
Ela nasceu em Itabuna, em 1939, filha do promotor Natan  Coutinho, homem culto, poeta parnasiano, inteligência brilhante, que chegou a ser  deputado estadual na Bahia. Com a família, ainda menina,  mudou-se para Salvador. Na capital baiana graduou-se em Letras pela Universidade Federal da Bahia.  Depois que estreou com Do Herói Inútil, em 1966, contos, pequeno grande livro, que já prenunciava uma ficcionista de boas qualidades na sondagem e exposição contraditória da alma humana, ela foi morar no Rio onde exerceu o jornalismo. Viveu para sobreviver no sul da Brasil  também como tradutora de grandes romancistas e  deu prosseguimento à sua carreira literária.
Tornou-se autora dos livros de contos Nascimento de Uma Mulher, 1971, Uma Certa Felicidade,1976, O Último Verão de Copacabana, 1985, Mil Olhos de Uma Rosa, 2001, Ovelha Negra e Amiga Loura, 2006. E dos romances: O Jogo de Ifá,  1980, Atire em Sofia, 1989,  O Caso Alice, 1991,  e Os Seios de Pandora, 1999. Era  também ensaísta,  seus textos participam   de importantes  antologias do conto, no Brasil e exterior. Conquistou prêmios literários expressivos, com destaque para o Jabuti da Câmara Brasileira do Livro (SP), duas vezes, o da Revista Status, para literatura erótica, e o da Fundação Biblioteca Nacional.
Sua ficção une arte e documento para situar o real como vínculo de gravidade nas limitações da condição humana. Desenganos,  desencontros, problemas existenciais e psicológicos de natureza aguda, na cidade grande, informam o herói em crise, que a autora logra questionar através de cortes e monólogos na mente do personagem,  em suas narrativas curtas e longas.
Sonia Coutinho pertenceu à minha geração. Sua obra ficcional, como a de Hélio Pólvora,   Euclides Neto e outros, mostra, nessa altura,  que a boa literatura de  autores nascidos no sul da Bahia não acontece apenas com a grandeza de Jorge Amado e Adonias Filho. Estudos críticos calcados em bases investigativas  e de análise mais larga  desses outros autores são necessários  para que a  literatura de alto nível não se torne exclusivista e repetitiva apenas através de dois nomes fundamentais.
Tal postura contribui em especial  para que certos legados primorosos, que se sustentam em admirável estrutura criativa  sejam sufocados e/ou relegados ao plano menor, injusto. É que a ideologia predominante de certos setores de nossa mentalidade  costuma debruçar-se  no que já está construído.  Não gosta de arriscar, por comodismo, até porque nessa condição é mais fácil  julgar e divulgar, enfim, tirar proveito do que não impõe mais esforço.
Quando se fizer uma história séria da literatura baiana, com relação aos legítimos escritores  nascidos na região cacaueira sulina,  mesmo que  não  tenham  questionado  o tema da civilização do cacau em sua obra,  será inadmissível a falha de  quem não situar com relevância a ficção de Sonia Coutinho. Como ícone da literatura brasileira no século XX ela já é reconhecida.





sábado, 24 de agosto de 2013

Cyro de Mattos Vai Proferir Palestra
e Lançar Livro de Poesia na Academia
de Letras de Ilhéus Dia 4 de Setembro



O escritor e poeta Cyro de Mattos vai proferir palestra sobre o tema “Viver e Escrever” na Academia de Letras de Ilhéus, no dia 4 de setembro, a partir das 18 horas, com entrada franca. Depois da palestra estará lançando o livro “Onde e Estou e Sou”,  de poesia, publicado pela  Ler Editora de Brasília,  bilíngüe, com prefácio e versão para o espanhol do poeta peruano-espanhol Alfredo Pérez Alencart, professor da Universidade de Salamanca.
O livro “Onde Estou e Sou” será também lançado durante o XVI Encontro de Poetas Iberoamericanos, evento de repercussão internacional promovido pela Fundação Cultural de Salamanca e Universidade de Salamanca, nos dias 2 e 3 de outubro. Na oportunidade,  professores universitários e estudantes estarão recitando poemas do autor grapiúna no Liceu e Teatro de Salamanca.
 “Onde Estou e Sou” é uma antologia poética com textos extraídos dos livros “Vinte Poemas do Rio”, “Cancioneiro do Cacau”, “Ecológico”, “Vinte  e Um Poemas de Amor” e “Oratório de Natal”, livros publicados, e dos inéditos “Rumores de Relva e Mar”, “Agudo Mundo” e “Devoto do Campo”. Nessa amostragem poética foram reunidos textos   que inauguram novos sentidos da vida, motivados  pela pureza da infância, solidões na colheita do nada, verdes visões na rota da felicidade, mundo cego do homem contra o homem, o erótico e o afetivo no encontro perfeito do amor, vozes do campo, ora fraternas, ora aflitas, rumores de relva e mar, cantos dedicados  ao Cristo, todos eles com versos idênticos  de ternuras e dores na paisagem do tempo.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Um jipe sem Igual
                                  
                                          (Crônica de Cyro de Mattos)




Tinha o apelido de Jipe, Não era apenas mais um doido manso que causava graça com suas esquisitices na cidade. Era o mais querido da garotada e gente grande. Descalço, vestido numa calça de brim e camisa de malha, no início andava correndo nas ruas,  depois passou a fazer viagens mais demoradas pelas estradas que interligavam as cidades circunvizinhas. Lá se ia veloz no jipe de sua imaginação, buzinando, cortando as lufadas de vento no peito, onde ele dizia que funcionava o motor do carro.  O ponto de partida era no passeio da barbearia do Álvaro.
Certa vez andou mudando de carro. Experimentou o Chevette, a DKW, a pick-up da Ford, o caminhão FNM, o automóvel de passeio da Chevrolet, para cinco passageiros, o Dodge, o Mercury, até a confortável, macia e cobiçada Cadilac, mas não se deu bem com nenhum desses carros. O casamento perfeito era com o jipe, carro duro, que não quebrava. Enfrentava estrada com poeira ou lama, no duro ou no mole. Não fazia cara feia para buraco grande. Seguro do que estava afirmando, ele sempre destacava as qualidades do carro de sua preferência, o imbatível jipe.  
Só descansava aos domingos, dia para a revisão geral no seu estimado veículo. Trocar o óleo, apertar parafuso, completar o tanque com gasolina. Fazer a lavagem cuidadosa na corredeira rasa do rio. Esfregar as rodas, retirar qualquer vestígio de lama, deixar o seu querido jipe na ponta dos cascos. 
Na segunda-feira, no passeio da barbearia do Álvaro,  às oito horas, anunciava com fortes buzinadas – pon, pon... pon, pon... – que Jipe ia dar partida daqui a pouco, rumo à cidade vizinha de Ilhéus. Ligava o motor – ruuuum ruuum –, olhava para a sua frente com atenção dobrada, procurando ver se a rua estava livre, sem algum desses motoristas malucos, que não obedecem aos sinais de trânsito e de repente provocam o desastre. Quando não colide o carro no outro veículo, atropela o transeunte, sem mais nem menos. Uns irresponsáveis no volante, pouco respeitam a vida alheia. Essa gente não merecia receber carteira do departamento de trânsito. Nem carteira de profissional nem de amador, dizia de si para si, resmungando.
Não era o seu caso. Com boa experiência no volante, nunca havia causado qualquer leve acidente nas ruas da cidade ou nas estradas. Era o máximo, só puxava mais de oitenta quando a reta permitia isso,  não houvesse perigo de ultrapassar o outro carro. Na cidade, o pedestre sempre tinha preferência. Logo parava e mandava o transeunte atravessar a rua. Se fosse portador de deficiência física, o cuidado era redobrado. Tinha ocasião que estacionava o seu jipe bem devagar, saltava do carro e ia ajudar o cego a atravessar a rua.
Por que se tornara um jipe, afamado e comentado por suas proezas automobilísticas nas ruas da cidade e estradas? Gostava de afirmar que não havia motorista de ônibus, caminhão ou carro de passeio que conseguisse vencer uma corrida disputada com ele. Sempre chegava primeiro, graças à sua habilidade de controlar bem o volante, saber passar a marcha na hora certa e pisar o acelerador no momento oportuno. Só dirigia seu jipe com prudência, perícia e competência, nada de fé em Deus e pé na tábua, saindo  por aí em alta velocidade feito um doido..
Foi o meu amigo Duduca que me contou o motivo pelo qual ele se tornara um jipe na sua imaginação. O pai havia prometido dar a ele um jipe se fosse aprovado no vestibular de Direito. Nem estudou muito para enfrentar o temível exame do vestibular na Capital. Conseguiu ser o primeiro na lista dos aprovados, graças à sua inteligência privilegiada. O pai não cumpriu a promessa. Ele foi se desgostando de ser um estudante universitário, com o futuro promissor para se tornar um advogado brilhante. Um dia, para surpresa do pai, vergonha de uma das famílias aristocráticas da cidade, abandonou os estudos. Sonhou que não havia nascido para se tornar um advogado, mas para ser um jipe.
Amanheceu no passeio da barbearia do Álvaro, alardeando a novidade. Decidira  se tornar um jipe. Trazia com ele um farol, duas placas, espelho retrovisor, a buzina e a caixa de ferramentas. E lá se foi correndo pela rua, na sua primeira incursão como um jipe de verdade, buzinando, buzinando.
Dá pena, pois não mais veremos Jipe guiando o carro de sua imaginação pelas ruas da cidade ou estradas pedregosas. O amigo Duduca deu-me a notícia com o semblante triste. Faleceu aquele homem de estatura baixa, voz nervosa, que só aparecia com a camisa molhada, o rosto respingado de suor, e que havia nascido em Amargosa, conforme anotava a carteira de motorista, que ele mesmo confeccionou.
Contou-me ainda mais o amigo Duduca que os apetrechos de seu carro, uma placa, que ele costumava trazer  presa atrás, outra pendendo do pescoço, a antena de rádio que portava na mão esquerda e, na direita, um retrovisor, foram com ele dentro do caixão. O Jipe mais engraçado da cidade agora estava lá nas nuvens, pegando corrida com os anjos, pelas estradas de algodão do céu.




quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Uma sentença para a História
Acusado de não ter direito de publicar a biografia de João Guimarães Rosa sem autorização prévia e de ter com.  
etido crime de plágio, o escritor goiano Alaor Barbosa obteve na semana que terminou ontem uma retumbante e histórica vitória na Justiça da comarca da cidade do Rio de Janeiro
                                                                                 Elpides Carvalho

Após cinco anos de batalha judicial, o escritor goiano Alaor Barbosa obteve, na semana  passada, uma vitória histórica na ação de proibição do seu livro Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa, proposta há mais de cinco anos – em julho de 2008 – contra a sua editora, a LGE Editora, de Brasília.
A sentença, que já se considera como integrante da história da luta em defesa da liberdade de expressão do pensamento no Brasil e um marco inaugural na construção de uma jurisprudência correta a respeito da questão das chamadas “biografias não autorizadas”, foi proferida pelo juiz Maurício Magnus, da 24ª Vara Cível da comarca do Estado do Rio de Janeiro.
Ao julgar improcedente a ação, o juiz determinou a liberação do livro, que está proibido, por despacho liminar (tutela antecipada) desde que a ação foi proposta. Declarou também o juiz que o livro de Alaor Barbosa subsiste íntegro e válido mesmo sem as citações de outros livros que nele foram feitas, as quais de modo algum, seja pela quantidade, seja pela qualidade, caracterizam o crime de plágio.
        A sentença baseou-se principalmente no laudo da perita Carolina Mori Ferreira e nas afirmações que ela acrescentou ao laudo, no momento em que, no processo, foi chamada a fazê-lo. Mas o juiz acrescentou argumentos e observações próprios, muito bem expostos, que conferiram uma forte densidade jurídica à sentença.
Convém notar e ressaltar um pormenor de sutil e significativa prudência e sabedoria na sentença: ao determinar a liberação do livro liminarmente proibido, o juiz não julgou necessário se referir ao direito constitucional de liberdade de expressão do pensamento (e, pois, de publicação de livros e especialmente de biografias), deixando subentendido que considera esse direito um ponto pacífico, insusceptível de controvérsia, e uma premissa implícita, como verdade indiscutível, na sua decisão.
Em entrevista ao “Diário da Manhã”, de Brasília, o escritor Alaor Barbosa conversa sobre a sentença que deu ganho de causa à LGE Editora, a qual já se tornou uma decisão para história da liberdade de expressão do pensamento no Brasil.

Alaor Barbosa, de 73 anos, nasceu em Morrinhos, em Goiás, em março de 1940. Atualmente divide residência entre Brasília e Goiânia.  Casado e pai de três filhos e cinco netas, ele já publicou vinte e dois livros, três dos quais de um ano e meio para cá. Outros quinze livros estão em processo de editoração e devem ser lançados na proporção de três por ano. Três deles saíram de um ano e meio para cá. O próximo livro deve ser lançado nos próximos trinta dias: o romance Eu, Peter Porfírio, o maioral, editado em Portugal em setembro de 2009, por ter sido contemplado com o prêmio de publicação em um concurso promovido pela editora. A edição brasileira vai apresentar um texto bastante refundido e muito aprimorado.
Alaor é jornalista, advogado e escritor. Desde 1979, faz parte da Academia de Goiana de Letras, para a qual foi eleito por unanimidade. Neste mês de agosto, no  dia 2,  foi  eleito titular da Cadeira 29 da Academia Brasiliense de Letras. É membro também da Associação Nacional de Escritores, da Academia de Letras do  Brasil, da Academia Morrinhense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Em 1975 tornou-se, por eleição secreta, o primeiro advogado goiano residente em Goiás, a fazer parte do Instituto dos Advogados Brasileiros.
DM: Como o senhor avalia essa sentença favorável da Justiça carioca?
Alaor: Uma sentença que vai entrar na história da liberdade de expressão do pensamento no Brasil. Muito bem fundamentada, não somente no brilhante laudo da perita do juízo, Carolina Mori Ferreira, mas também em outros argumentos muito bem expostos pelo juiz.
DM: Já houve alguma repercussão da sentença?
Alaor: A sentença, logo que começou a ser divulgada, causou um imenso júbilo no meio literário brasileiro. É preciso assinalar que, desde a proposição da ação e a proibição do meu livro, intelectuais e escritores de várias partes do Brasil se manifestaram de modo uníssono e unânime solidários aos meus direitos e em protesto contra a errônea proibição ocorrida.   
DM: O senhor acredita que as autoras da ação podem recorrer da sentença?
Alaor: Existe a possibilidade, acho eu, de que as autoras da ação se conformem com a sentença. Seria a atitude mais sensata.  
DM: Quem  foi seu advogado ou seus advogados?
Alaor: A ação foi proposta não contra mim, mas contra a minha editora.  Inicialmente atuaram no processo, fazendo a contestação com muita lucidez e competência jurídica, dois advogados: Ian Santos, que é meu sobrinho-neto e morava no Rio, e Daniel Campello de Queiroz. Tendo o Ian se mudado logo depois para São Paulo, o Dr. Daniel prosseguiu sozinho no trabalho, realizado com muita dedicação e responsabilidade. Minha vitória se deve muito ao trabalho deles, que souberam mostrar os direitos em causa e as circunstâncias que tornavam inaceitáveis as acusações feitas ao meu livro. 
DM: O senhor pensa em recolocar o livro em circulação, depois de efetivamente liberado pela justiça? 
Alaor: Só admito recolocar o livro em circulação e à venda na versão, que preparei há muitos anos – logo que surgiu a notícia de que seria proposta ação para proibi-lo – da qual expungi o texto da maioria das citações de outros livros. Meu livro não precisava e, portanto, não precisa delas. Sem elas, ele fica muito melhor. Foi o que eu verifiquei. E que, para minha surpresa, afirmaram a perita do juízo no Rio e o juiz da causa.
DM: Entre os seus três filhos algum pretende seguir a carreira de escritor?
Alaor: Minha filha Noêmia, a primogênita, vai lançar no próximo dia 29, no Memorial Darcy Ribeiro, da Universidade de Brasília (UNB), um livro, escrito em colaboração com Luiz Isola, A bailarina empoeirada (Histórias do povo de Brasília). Uma história da construção da cidade de Brasília que focaliza os construtores, principalmente o povo humilde, os candangos. São quase mil e quinhentas páginas de uma pesquisa e levantamento muito bem-feitos e sérios.  

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Rio Morto

      

Rio Morto é uma bela e nostálgica visão do que os homens estão fazendo hoje com o mundo em que lhes cumpre viver. É belo e doloroso esse poema... que os homens se sintam tocados por ele!”


Nelly Novaes Coelho, escritora, Doutora Professora Emérita de Literatura Portuguesa da USP.
    

       RIO MORTO
Cyro de Mattos

Vejo tua face invisível
Na claridade das águas,
Espumas lavadeiras nas pedras
Diversicoloridias de roupas.
O céu azul de nuvens mansas.
A lua derramando prata
No areal deixado pela cheia.
Eu sou aquele menino
Que engoliu tua piaba
Para aprender a nadar.
Eu sou aquele menino
Que pegou tuas borboletas
Nos barrancos voando em bando
Eu sou aquele menino
Que sentiu com tuas boninas
A proposta livre da vida.
Eu sou aquele menino
Magro, esperto, traquino
Em tua paisagem luminosa.
Não havia, amor, dúvida,
Ares sombrios pegajosos
Cobrindo tua ilha com tesouro
Guardada por almas de piratas.
Nessa manhã de banho ausente,
Susto nos peraus e remansos,
O sol sem vidrilhar a correnteza,
Tristes meus olhos testemunham
Tua descida pobre e monótona.
Tua morte lentamente com sede
Inventada nas bocas de vômito...
Cachoeira o teu nome
Do rio que chora água.


Imagens: Google - Rio Cachoeira e Cyro de Mattos
(imagens cedidas por Ceres Marylise)
Arte: Auber Fioravante Júnior
Em 01/10/2011
Porto Alegre - RS,
 
 

Abraço, Cyro 

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Justiça autoriza LGE/Ler Editora a distribuir nas livrarias a primeira biografia de Guimarães Rosa e manda Vilma Guimarães e a Editora Nova Fronteira pagarem as custas da ação contra o biógrafo Alaor Barbosa e a LGE




BRASÍLIA, 16 DE AGOSTO DE 2013 – O jornalista Euler de França Belém, editor do Jornal Opção, dá conta, na edição de 11 a 17 de agosto de 2013, de que a Justiça concluiu que a biografia Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa (LGE/Ler Editora, 2007, Brasília, 388 páginas), do romancista e ensaísta goiano Alaor Barbosa, não é plágio de Relembramentos: João Guimarães, Meu Pai (Editora Nova Fronteira), de Vilma Guimarães, filha do gênio mineiro, e pode voltar às livrarias, de onde foi arrancado pela Justiça, em 2008, gerando prejuízo para a LGE, hoje, Ler, pequena editora de Brasília. Na época, Vilma Guimarães e a Nova Fronteira processaram a LGE; Vilma e a editora foram condenadas a pagar as custas processuais.

Vilma alegou, na ação, que Sinfonia Minas Gerais “causa graves danos morais à imagem” de Guimarães Rosa (1908-1967), e “viola direitos autorais” dela e de “terceiros”. Diz o despacho da Justiça: “Não se verifica em Sinfonia de Minas Gerais a utilização de mais de 10% da obra de Vilma Guimarães Rosa, Relembramentos. O percentual não chega a 9,5%”; “A obra de Alaor Barbosa, Sinfonia Minas Gerais, se sustenta e é útil ao conhecimento da vida do biografado e também como obra literária mesmo sem as referências à obra de Vilma Guimarães Rosa, Relembramentos, ou seja, ainda que os trechos concernentes ao livro da autora do processo sejam suprimidos, o livro Sinfonia Minas Gerais tem função e interesse histórico e literário”. E afirma que ao citar Vilma Guimarães Rosa e outros autores Alaor Barbosa os identifica com precisão, não omitindo, hora alguma, suas fontes.

No Brasil, há uma enxurrada de ações judiciais contra editoras e autores de biografias, por parentes de biografados pedindo dinheiro por dano moral e a retirada do livro de circulação. Por exemplo: em 2007, o cantor Roberto Carlos conseguiu que a Justiça mandasse retirar das livrarias um livro escrito por um admirador, que relatava a vida familiar do artista e sua trajetória. Em 2008, o jornalista Ruy Castro, ao lançar a biografia de Garrincha, foi processado duas vezes: pelas filhas de Garrincha e por uma ex companheira do astro do futebol. Ruy ganhou um dos processos, mas foi condenado no outro pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estipulou indenização de 5% sobre o total de vendas do livro, com juros de 6% ao ano, contados a partir da citação das partes. Em 2009, depois que a imprensa divulgou que Ruy Castro estava escrevendo a biografia de Raul Seixas, o autor foi advertido por uma das cinco ex-mulheres do cantor baiano de que entraria na Justiça caso o livro fosse publicado. E em 2008, a Justiça mandou retirar do mercado a primeira biografia completa de João Guimarães Rosa, o autor da catedral literária Grande Sertão: Veredas.

Vilma Guimarães Rosa entrou com ação na Vigésima Quarta Vara Cívil do Foro do Rio de Janeiro, em 10 de julho de 2008, contra Alaor Barbosa, autor da primeira biografia de Guimarães Rosa publicada no Brasil, Sinfonia Minas Gerais. Vilma alegou que Alaor Barbosa utilizou citações do livro dela, Relembramentos: João Guimarães Rosa, Meu Pai, de 1983, que ela chama de biografia, mas que se trata de livro epistolar; e também que Alaor Barbosa afirma que Guimarães Rosa era místico. Em setembro de 2008, o juiz Marcelo Almeida de Moraes Marinho mandou a LGE retirar das livrarias, em 24 horas, o livro em questão, acatando o pedido da filha de Guimarães Rosa e da Nova Fronteira, editora que publica Rosa.

A ação era uma peça absurda e causou sérios danos à LGE, que teve de recolher o livro das livrarias em todo o território nacional. Recolher livros num país continental como o Brasil e nos tempos de hoje, com vendedores eletrônicos em cada esquina da internet, é outro absurdo. Além disso, o custo editorial é elevado e a retirada de um livro do mercado é brutal para uma editora pequena. 

Alaor Barbosa afirmou, na sua defesa, que as autoras da ação pretendiam garantir reserva de mercado para faturar em cima de Guimarães Rosa: "A Editora Nova Fronteira acaba de relançar obra de autoria de Vilma Guimarães Rosa, intitulada Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai; livro publicado em 1983, com pouco sucesso comercial e que não se configura tecnicamente uma biografia, mas sim um livro que procura mostrar, em sua visão de filha de Guimarães Rosa, quem seria o seu pai, principalmente por meio da transcrição de cartas escritas e recebidas por Rosa ao longo de sua vida. Evidente que as autoras da ação se aproveitam do ano de centenário de morte de Guimarães Rosa para, absurdamente, tentarem obter vantagens econômicas; sendo certo que buscam o Poder Judiciário visando a uma espécie de exclusividade em relação à história de um dos maiores escritores brasileiros; história esta cuja importância em muito transcende os laços de parentesco. Trata-se, como restará demonstrado, de uma evidente pretensão de apropriação da figura, da vida e da obra de João Guimarães Rosa por parte de uma sociedade editorial de grande porte, que, repita-se, tenta se utilizar do Poder Judiciário para potencializar o seu já notável poderio econômico; buscando, absurdamente, vedar a concorrência”.

E quem é esse Guimarães Rosa que não pode ter sua vida revelada por uma biografia, bem documentada, diga-se? Quem foi João Guimarães Rosa? “Sou um sertanejo” – disse, durante uma das raríssimas entrevista que concedeu – a Günter W. Lorenz, em Gênova, em janeiro de 1965. Essa entrevista, uma conversa longa e esclarecedora, foi publicada em Arte em Revista, do Centro de Estudos de Arte contemporânea, em maio de 1979.

Entre os monstros brasileiros da ficção, Guimarães Rosa foi um dos que mais fundo mergulhou na língua brasileira. “Nosso português-brasileiro é uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado na Europa. E, além de tudo, tem a vantagem de que seu desenvolvimento ainda não se deteve; ainda não está saturada. Ainda é uma língua jenseits Von Gut und Bose (Além do Bem e do Mal, título de um livro de Nietzsche), e, apesar disso, já é incalculável o enriquecimento do português no Brasil, por razões etnológicas e antropológicas” – disse Guimarães Rosa a Günter W. Lorenz. “Pelo processo de mistura com elementos indígenas e negroides com os quais se fundiu no Brasil...” - disse Lorenz, a que Guimarães Rosa replicou: “Exato, este foi um enriquecimento imenso e já pode ser notado no exterior pela quantidade de diferentes dicionários europeus e americanos do mesmo idioma. Naturalmente, tudo isso está à nossa disposição, mas não à disposição dos portugueses. Eu, como brasileiro, tenho uma escala de expressões mais vasta que os portugueses, obrigados a pensar utilizando uma língua já saturada”.

Com efeito, como num iceberg, língua é a parte emersa e, cultura, os restantes sete oitavos sob a superfície da água. Guimarães Rosa, que compreendia mais de uma dezena de idiomas, foi um artífice único do mundo singular do sertanejo mineiro. Daí porque é um dos escritores brasileiros mais estudados e traduzidos na Europa, na tentativa, malograda, de os europeus compreenderem o trópico. Nesse mister, nem os lusitanos compreenderam o trópico; portanto, ficaram sem entender o Brasil.

Assim, compreender o mundo de Rosa é enxergar um ângulo da pedra angular da cultura brasileira. É isso que Alaor Barbosa faz, lança luzes sobre a vida e a obra do gênio mineiro. “Creio que minha biografia não é muito rica em acontecimentos. Uma vida complemente normal” – disse o monstro das Alterosas a Lorenz, em 1965, dois anos antes de morrer. É fato. Guimarães Rosa foi sertanejo e funcionário público; um sujeito tão discreto que parecia se esconder, e isso Alaor Barbosa resgata.

A biografia escrita por Alaor Barbosa é adiposa. Vilma se queixou, na Justiça, de que o escritor goiano fez inúmeras citações do seu livro epistolar Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai. Alaor pode extirpar todas essas citações que, ainda assim, a biografia do monstro sagrado continuará inchada como os pés de um pinguço. Alaor produziu um bom material: reconstruiu a geografia de Rosa, psicanalisou-o e resgatou o dia-a-dia do criador de Grande Sertão: Veredas, desde seus antepassado até o caixão.

O centenário de nascimento de Guimarães Rosa (1908-1967) foi comemorado, em 2008, com enfoque inusitado na crítica brasileira pelo Núcleo de Estudos sobre Homocultura (Nehom) da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), em Minas Gerais, em evento cultural, O Segredo de Grande Sertão: Veredas, na Biblioteca Central Professor Antônio Jorge, da Unimontes. No evento, analisou-se o que há de homoerótico e homofóbico em um dos maiores clássicos da literatura brasileira, a sutil relação de amor entre os personagens Riobaldo e Diadorim (Reinaldo).

Foram analisados dois artigos. Em Confessando a carne em Grande Sertão: Veredas, Denise Carrascosa esclarece que “não há, na crítica literária brasileira – “autorizada” – sobre a obra de Guimarães Rosa, a não ser por alguns acenos, referência à relação de desejo carnal, homoerótica em alguns momentos, homofóbica em outros, que se pinta nas zonas de sombra na narrativa”. O outro texto analisado foi Riobaldo/Diadorim e o tema da homossexualidade, de Walnice Matos Vilalva.

O objetivo do estudo foi o de jogar luz sobre a homossexualidade na obra de Rosa, implícita na ideia do próprio autor, de que “sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte que o poder do lugar”. Diz Riobaldo: “Nego que gosto de você, no mal. Gosto, mas só como amigo!... Assaz mesmo me disse. De por diante, acostumei a me dizer isso sempre vezes, quando perto de Diadorim eu estava. E eu mesmo acreditei. Ah, meu senhor! Como se o obedecer do amor não fosse sempre o contrário...” (Fonte: Mix Brasil)

Em Berlim, encontro internacional de três dias, também em 2008, debateu a dificuldade de se traduzir João Guimarães Rosa. Ligia Chiappini, professora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim, disse que a principal motivação do simpósio foi perceber que João Guimarães Rosa não é reeditado na Alemanha e que há um desconhecimento cada vez maior da obra do gênio no país, onde seus livros acabam chegando somente ao gueto dos brasilianistas.

Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa é a primeira biografia do extraordinário escritor brasileiro João Guimarães Rosa. Primeira, mas completa. Feita com competência e calma, nasce já clássica e portanto indispensável a quantos, no Brasil e fora do Brasil, queiram conhecer a vida do poderoso contista e romancista mineiro que já se tornou o mais estudado dos escritores brasileiros” – diz a quarta capa do livro de Alaor Barbosa.

E a orelha: “João Guimarães Rosa nasceu em 27 de junho de 1908 e morreu em 19 de novembro de 1967. Neste ano de 2007, comemoram-se, portanto, quarenta anos da sua morte e se está na véspera do ano do centenário do seu nascimento.

“Era preciso que alguém lhe escrevesse a necessária e indispensável biografia. Apesar de já ser talvez o escritor brasileiro sobre quem mais se tem escrito no Brasil, ainda faltava um livro que contasse a história da sua vida exemplar. Pois João Guimarães Rosa foi um raro exemplo de dedicação de um homem à sua arte literária. Essa lacuna foi felizmente preenchida, em boa hora, pela iniciativa, providência e admirável operosidade de um consagrado ficcionista brasileiro.

“Alaor Barbosa escreveu a biografia de João Guimarães Rosa movido pelo sentido e convicção de que cumpria um múltiplo dever: para com o biografado, a quem conheceu pessoalmente, de quem foi amigo e a quem tributa profunda admiração pessoal; para com a literatura brasileira, cujos criadores devem ser mostrados, difundidos, cultuados; para com a língua portuguesa, que necessita e merece ser defendida; e para com a nacionalidade brasileira, que deve ser preservada principalmente mediante a valorização da sua cultura.

“Observe-se que esta biografia constitui a primeira parte de um trabalho mais amplo, que inclui, em segundo volume, uma análise de toda a obra literária de João Guimarães Rosa.

“Um escritor autenticamente brasileiro, de origens radicadas no interior do nosso país, Alaor Barbosa descende de mineiros da região da Serra da Canastra (Espírito Santo da Forqueilha, hoje Delfinópolis) e de paulistas de Igarapava, nasceu bem no âmago do Brasil: em Morrinhos, Goiás; e vive em Brasília, no Planalto Central, há 23 anos (2007).

“Escrevendo sobre ele em 1969, afirmou o contista e romancista José Edson Gomes: “Alaor Barbosa vem pacientemente desenvolvendo uma obra que terminará por explodir neste Brasil imenso e quase cego”.

“O romancista e crítico Assis Brasil assim o classificou, em 1996: “Um dos mais desenvolvidos e seguros narradores da nova literatura brasileira”.

“Em 2000, trinta e um anos depois da previsão de José Edson Gomes, o severo crítico Wilson Martins, ao escrever sobre o romance Memórias do nego-dado Bertolino d’Abadia, outorgou a Alaor Barbosa a definitiva consagração, colocando-o na família de Balzac, Thomas Hardy, Eça de Queiroz, Dostoievski, Graciliano Ramos e Giovanni Verga”.

Carta de Noemia Barbosa, filha de Alaor Barbosa, para Vilma Rosa, filha de Guimarães Rosa:

“Vilma,

“Nasci filha de escritor. Doei para o meu pai, desde o meu nascimento, longas horas da minha infância e da minha adolescência. Meus irmãos doaram outras tantas horas. Minha mãe dividiu o marido, durante décadas, com sua amante, a literatura. Mas meu ciúme de criança foi se atenuando, ao longo dos anos, e mais ainda com o chegar da maturidade. Passei a admirá-lo, respeitá-lo, reverenciá-lo. Principalmente, passei a compreendê-lo. Literatura, para o meu pai, o escritor Alaor Barbosa, é e sempre foi devoção. Triste do filho ou da filha que não respeita e nem compreende as devoções paternas.

“Assim como você, também sou herdeira de uma obra literária. Grande, extensa, profunda, séria. Fruto de muito trabalho, pesquisa e esforço, feita com paixão e talento. Obra reconhecida e tantas vezes premiada. Falo de quase meio século de produção literária, tempo bem maior do que eu mesma tenho de vida. Meu pai, Vilma, já era escritor antes de eu nascer.

“Tenho a sorte de ter meu pai comigo, avô carinhoso das minhas filhas, em almoços de domingo. Vivo, feliz e produtivo. Mas já estou de posse da herança que ele me legou. Foi uma partilha sem desavenças, entre a família e os amigos. Não a herança material, mensurável, quantitativa, que se deposita em conta bancária. Desta, basta-nos o óbolo de Caronte. O que recebi de meu pai foi um norte, um rumo, um equilíbrio, um eterno buscar da verdade. O amor e o respeito por tudo de bom que o ser humano já produziu.
Você, Vilma, também recebeu uma herança. Magnífica herança, portentosa, imensurável. A herança de um gigante. A herança de um gênio, primus inter pares. Temos, portanto, responsabilidades. Eu e você. A minha, talvez mais leve, é a de impedir que a herança de meu pai seja aviltada, desqualificada, vilipendiada. Isso, tenha certeza, não acontecerá. As inverdades, calúnias e difamações são muito fugazes e, uma vez reveladas, deixam despida aquela que as inventou. Aliás, é assim que eu vejo você: despida, nua, pelada. Porque mais marcado será sempre o caluniador do que o caluniado. Já a sua responsabilidade, Vilma, é a de não abastardar, não apequenar, não diminuir a sua herança, o seu legado. A obra do seu pai é universal. Não a amesquinhe, não reduza a herança à estatura da herdeira.

“Num país como o nosso, Vilma, tão carente de cultura, tão necessitado de modelos, tão merecedor de exemplos, resta-me recordar as palavras de outro ídolo de meu pai, Monteiro Lobato, cuja biografia para crianças também saiu da máquina de escrever Olivetti que havia na biblioteca lá de casa. Lobato disse que um país se faz com homens e livros. Você, portanto, quando tenta impedir a existência de um livro, de uma obra literária, espanca a inteligência nacional, ofende a tantos que tombaram em nome da liberdade e do direito de expressão e do livre pensamento! Talvez, Vilma, seu tempo tenha passado. Imagino você mais feliz vivendo uma outra época – mais escura do que a de agora. Talvez sob o Estado Novo ou abrigada pelo AI-5. Imagino você, Vilma, com um carimbo de censura na mão — arma formidável! — detentora exclusiva da faculdade de permitir ou não que alguém leia, fale ou pense. Para nossa sorte e infelicidade sua, vivemos tempos mais claros. E você, faça o que fizer, diga o que disser, jamais impedirá meu pai de ler, escrever, falar ou pensar. Nem meu pai nem ninguém.

“Portanto, Vilma Rosa, não acenda fogueiras com livros. O fumo do livro incinerado escurece uma nação.

“Cada um de nós tem seus próprios ídolos. Sorte do meu pai, que fez boas escolhas. Os seus, parecem ser o Index Librorum Prohibitorum, o Santo Ofício, Savonarola e Torquemada. Talvez, até Herr Goebbels... Eu, que também tenho os meus, cito um deles: você vai amargar vendo o dia raiar sem lhe pedir licença...

“Lembre-se, Vilma, você é apenas uma filha. Você é apenas uma herdeira que avilta a herança magnífica que recebeu, constatar que nem tudo que Guimarães Rosa nos deixou é tão bom quanto a sua obra literária”.

(Noemia Barbosa Boianovsky é bacharela em Relações Internacionais, jornalista, advogada, consultora da Câmara Legislativa do Distrito Federal e filha de Alaor Barbosa.)

O fato é não temos legislação sobre o limite entre o direito à privacidade e o direito à informação sobre pessoas de notória projeção pública e celebridades, nem há jurisprudência sobre isso. Mas, agora, com o caso Guimarães Rosa, alguma luz começa a piscar. 
Fonte: WWW.raycunha.blogspot.com