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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Natal das Crianças Negras

             (Cyro de Mattos)

             
Eles moravam no morro, a irmã era chamada de Bel, o irmão de Nel.  Bel não recebia da vida a doçura feita com mel. E Nel não vivia a vida, lá no alto morro, como se estivesse no céu. A mãe deles chamava-se Maria. Vestia trajes simples, gastos pelo uso diário. Nunca vestiu um manto azul feito de seda para brilhar no dia, como se via na igreja com a imagem da Virgem Maria.  
A mãe de Bel e Nel era lavadeira. Tinha as mãos grossas de calo de tanto bater roupa na correnteza de águas límpidas. Durante a semana descia o caminho pelo barranco com a bacia de roupas sujas  na cabeça. Quando chegava à beira do rio, colocava a bacia de roupas em uma pedra grande, junto ao areal. Não demorava e começava a tirar as roupas da trouxa. Molhava, ensaboava, esfregava, lavava e torcia. Estendia as roupas nas pedras pretas para secar ao sol. As pedras pretas, cobertas de roupas estendidas, de repente apareciam coloridas naquele trecho do rio.     
O pai de Bel e Nel  chamava-se José, era carpinteiro. Sabia usar com habilidade  os  instrumentos de trabalho:  martelo,  serrote,  enxó,  plaina e  formão. Suas mãos pequenas faziam cadeira, mesa e banco. Consertavam porta, janela e portão. No mês que Bel completou seis anos de idade, o carpinteiro José começou a sentir  dores na espinha. Os ossos inflamados, as  mãos trêmulas, o corpo todo doía. À noite no quarto gemia. O coração dele foi diminuindo o amor que tinha por São José, o padroeiro da cidade, por causa da doença que o afligia. Até  que um dia o pai de Bel e Nel perdeu  para sempre sua constante fé em São José, o santo protetor dos carpinteiros.
O tempo de Natal era chegado. Nel queria um avião grande, Bel uma boneca que chora. Viram o velho gordo com o rosto rosado pela primeira vez na televisão da loja.  Carregava um saco de brinquedos nas costas. Tinha a barba branca e os cabelos sedosos. Vestia uma roupa vermelha. Calçava botas pretas. Numa das cenas em que aparecia na telinha, deixava escapar do rosto rosado um sorriso que transmitia uma sensação de alegria e paz a cada criança que ia falar com ele e receber o seu carinho.  Os meninos no passeio da  loja não tiravam os olhos da televisão. Comentavam que o velho  dava  brinquedos à criançada  sem  querer nada de volta. Eles sorriam quando o velho aparecia com as roupas folgadas na telinha. Olhinhos deles todos no querer, como que encantados cintilavam.
Com olhinhos espertos e risinhos que enchiam os dentinhos, Bel e Nel foram olhar a árvore enfeitada com bolinhas e luzinhas,  armada em um dos cantos da loja. À noite as luzinhas acendiam e apagavam. A estrela no alto comovia. Descobriram depois  o presépio em outro canto da loja, com os camponeses, pastores e bichos. Ficaram admirando  o pequeno estábulo do presépio, que tinha o teto coberto de folha  de palmeira. Um galo de crista vermelha estava  no telhado. Uma estrela brilhava na cumeeira, toda acesa de Deus. Nossa Senhora e São José mostravam os semblantes felizes, ao lado de  Jesuscristinho, que  dormia o sono bom no berço puro e quente, feito de palha.  E os três reis magos, ali no presépio,  davam a entender que não eram dignos de  tocar na palha onde Jesuscristinho  dormia o sono sereno.
 Sentados no meio-fio do passeio da loja, Bel e Nel escutavam agora a musiquinha  que saía alegre pelo alto-falante no poste. De vez em quando o alto-falante baixava o som. Então a   musiquinha fazia um fundo musical no mesmo instante em que entrava  a voz pausada do locutor.  A voz dele informava que  vinha de Belém a estrela mais bela. Fora trazida pelas mãos da maior madrugada. Seu brilho imenso descaía do céu e vinha iluminar a relva onde os bichos anunciavam e cantavam o nascimento do menino Jesus. A voz do locutor ficava emocionada quando comunicava  que naquele dia o menino pobre nascia no estábulo. Esse menino Deus  vinha para afugentar o mal de toda a terra. A voz doce  do locutor terminava  a mensagem de paz eterna com mais emoção no final quando então revelava que os sinos do mundo inteiro nessa hora  tocavam: É Natal! É Natal!
O alto-falante voltava a tocar a musiquinha alegre, acompanhada dessa vez  de uma cantiga cativante. Bel e Nel continuavam sentados no meio-fio do passeio. Recebiam  o sopro da brisa que circulava na rua, ao final do dia. A brisa suavizava os rostos deles dois em silêncio, enquanto seus pequenos corações eram tocados pela cantiga que se repetia e  começava assim:

Botei meu sapatinho
Na janela do quintal.
Papai Noel deixou
Meu presente de Natal...

Dizia a cantiga ainda mais, que o velhinho  sempre visitava  o quarto de cada menino onde  deixava, ali,  um brinquedo como  presente naquela noite especial. Seja rico, seja pobre, seja branco, seja preto, como  Bel e Nel, o velhinho sorridente e bondoso  não esquece de ninguém.
Bel e Nel colocaram os chinelos na janela do quarto. Nada acharam no outro dia. Do ponto mais alto do morro ficaram olhando as nuvens alvas, trafegando no céu como grandes almofadas. Umas nuvens menores desenhavam brinquedos enquanto iam passando  mansas diante dos olhos tristes deles dois.
Eles viam nesse instante a cidade lá embaixo, aos seus pés. Imaginavam a algazarra da manhã festiva. No passeio, no jardim, em qualquer canto da casa. Cada menino o brinquedo exibia. Saltava, dançava, corria, sonhava, voava, sorria.
Então souberam como o mundo dava as costas a Jesus. Não queria ver Maria. Escondia-se de José.  O Natal era a lágrima que pelo rosto deles dois  descia.
E uma canção desfazia.








THE BLACK CHILDREN’S CHRISTMAS


A short story by Cyro de Mattos

Translated by Fred Ellison


          They lived up on the hill, the sister was named Bel, her brother Nel.  Life for Bel had none of the sweetness of milk and honey. And Nel knew all about the hard life, he would go to the top of the hill, as if he were in heaven. Their mother was called Maria.   Her dresses were very  plain and worn out with daily use. She never wore a blue silk cloak that shimmered in the daylight, like you’d see in church with the Virgin Mary’s image.
         Bel and Nel’s mother took in washing.  Her hands were calloused and  thick from always  pounding clothes in the clear flowing water.  During the week she’d  come down the steep path along the river bank with the can of dirty clothes on top of her head. When she got to the river’s edge, she would set the can of clothes down on top of a big rock, near the sandbar.  She wasted no time taking the clothes our of her bundle. She’d wet them, soap them, rub, rinse, and wring them.  Then she’d lay the clothes out on the black stones to dry in the sun. The black stones, covered with clothes all laid out, suddenly  looked many-colored  along that stretch of the river.
         Bel and Nel’s father was called José, he was a carpenter. He was skilled in the use of the tools he worked with: hammer, saw, adze,  plane, and chisel.  His small hands made chairs, tables, benches. They could fix doors, windows, gates.  The month that Bel reached six years of age, José the carpenter began to feel pains in his back.  Inflammation in his bones, trembling of his hands, his whole body hurting.  At night, in his room he’d moan. In his heart there was less and less  room for the love he used to have for Saint José, the city’s patron saint, because of the sickness afflicting him.  Finally, one day, Bel and Nel’s father lost forever his steady faith in Saint José, the saint protector of carpenters.
         Christmastime had come. Nel wanted a big airplane, Bel a doll that would cry. They saw the round figure of the old man with his pink cheeks for the first time on the television at the store.  On his back he was carrying a bagful of toys.  He had a white beard and his hair was silky.  He was wearing a red suit, he had on black boots. In one of the scenes in which he appeared on the tiny screen, he made his pink face into a smile that conveyed a sense of happiness and peace to every child who went up to talk with him and be held.  The kids standing on the sidewalk outside the store couldn’t take their eyes off the television.  They noted that the old man gave toys to all the kids, without wanting anything in return.  They would smile when the old man appeared on the TV screen dressed in his ample robes.  Their little eyes all fixed upon their wishes, they seemed to sparkle with enchantment.
         Alert of eye and with giggles behind their little teeth, Bel and Nel went inside to look at the tree, decorated with little balls and tiny lights, set up in one of the corners of the store.  By night the tiny lights would go on and off.  The star at the top made them marvel.  Next they discovered in another corner the Nativity scene, with field hands, shepherds and animals.  They stood admiring the little stable in the manger, whose roof was covered with palm leaves. A rooster with a red comb was on the roof.  On the  ridgepole, a star was all aglow with God.  Our Lady and Saint José showed their happy faces, alongside the Christ-child, who was sleeping his blessed  sleep in the warm, pure cradle of straw.  The three wise kings, there in the manger, gave the impression that they weren’t worthy of touching the straw, where the Christ-child was serenely asleep
         Sitting on the curb in front of the store’s sidewalk, now Bel and Nel were listening to the Christmas music coming joyfully from the loud-speaker on  the lamp post.  From time to time the volume of the loud-speaker would be turned down.  Then the Christmas  melodies  would serve as  musical background at the very moment when the announcer in his measured  voice would break in.  His voice brought the word that the most beautiful of stars was coming from Bethlehem.  It was brought in the hands of the greatest of dawns.  Its immense  brilliance was descending from heaven and came to shine on the grass where the animals were announcing and singing of the birth of the child Jesus.  The announcer’s voice choked with emotion when he communicated that on that very day the child of poverty was being born in the stable. That child-God was coming to drive out evil from all the world.  The gentle voice of the announcer was concluding his message of eternal peace with rising emotion at the end when he revealed that the bells throughout the world were pealing: It’s Christmas! It’s Christmas!
         Once more the loud-speaker was playing its happy Christmas music, featuring  this time a catchy tune.  Bel and Nel continued sitting on the street curb.  They could feel the touch of the breeze that was blowing in the street, at the end of the day. The breeze softened the faces of the two, both of them in silence, while their childish  hearts were touched by the songs that were repeated and that started thus:

I set out my little shoe
on the window-sill
Father Noël left me
my Christmas gift

         The Christmas song said something else, that the little old man would always visit every child’s  room, and, then and there, he would leave a toy as a present on that special night. Whether rich or poor, whether white or black like Bel and Nel, the smiling and generous little old man doesn’t forget anyone.
         Bel and Nel placed their old shoes on the window-sill of their room.  They found nothing the next day. From the highest point on the hillside, they stood there watching the white clouds,  coming and going like pillows.  A few of the smaller clouds took the shape of toys as they passed softly in front of the saddened eyes of the two of them. 
         They could see at that moment the city below them, at their feet. They imagined the excitement on that festive morning.  On the sidewalk, in the garden, in whatsoever  part  of the house.  Every child would be showing off his toy. He’d be leaping, dancing, running, dreaming, flying, smiling.
         At that moment they knew that the world had turned its back on Jesus.  It didn’t want to see Maria. It hid itself away from José.  Christmas was the tear that was rolling down both their faces.
         And a Christmas song was losing its sweetness.

                   
* Fred Ellison was born in 1922,  in Denton, Texas, EUA. He received his Bachelor’s degree in French and Spanish in 1941 from the University of Texas, at Austin, USA.  Received the doctoral degree in Romance Languages, with a dissertation, later appearing  as a  monograph The Novel of Brazil's Northeast: Four Northeastern Masters (Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José  Lins do Rego. He is Professor Emeritus of the University of Texas.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

NOITE DE NATAL EM 2013
                                     
                                      Miguel Jorge
                  
                     O Natal sabe dos sonhos do menino.
                   Sabe da estrela azul a espreitar o universo
                   Perdido no vértice dos espelhos,
                   Igual água deserta de um céu que nunca
                   Termina.

                   Ligeiramente leves os sentimentos de um Natal
                   Sagrado em seus signos. Cartas, mensagens,
                   Frases de vida, inconscientemente belas.
                   O olhar a trespassar a face rosa de um
                   Deus ainda menino.
                  
                   No coração da criança, a visão de um sol
                   A se perder no campo iluminado de orações:
                   Que todos tenham neste Natal
                   Um rei dentro de si com seu
                   Destino certo.
                  
                   A voz dormida na noite santa
                   Fora dos espelhos é outra.
                   A realidade caminha nua pelas
                   Paredes talhadas de inverno.
                   Na amurada transparente de húmus,
                   As rosas andam soltas na brevidade
                   Obsessiva de quem, triste, se deserta.
                                     
                   E os mais secretos desejos
Tomam asas sobre as horas,
                   Desenhados em segredos.
                   Um novo dia guarda a verdade
                   De uma noite em que se pensava em fadas.
                   Ser criança é não ter o jugo da dúvida.
                   Que os sonhos dos meninos possam
                   Viajar nas distâncias, lá onde o sol e o céu se
                   Encontram, onde a vida passa nas verdades
                   De um novo horizonte contido em vermelho,
                   Como os sentimentos de uma bela noite de Natal,
                   E as reais e incertas complexidades do ano de 2013.
                       
·        Premiado escritor goiano, Miguel Jorge é poeta e romancista.

                                     
                  
                  
                                     
                  
                  
                  

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Entrega do Prêmio Jean Paul Mestas ao escritor Cyro de Mattos

Entrega do Prêmio Jean Paul Mestas, da União Brasileira de Escritores, Rio de Janeiro, salão nobre da Academia Brasileira de Letras, pelo livro "De teus instantes no poema/ Dans tes instants dans le poème",tradução de Pedro Vianna, publicado pelas Editions du Cygne,  www.editionsducygne.fr, na Coleção Poesia do Mundo, Paris, 2011.




Cyro de Matos recebe o diploma do Prêmio Jean Paul Mestas concedido pela União Brasileira de Escritores, no salão Raimundo Magalhães Junior, da Academia Brasileira de Letras, Rio, em 25/10/2013. 



Na entrega dos prêmios anuais da UBE-Rio, na Academia Brasileira de Letras, Professor Doutor Eduardo Portela, escritor Cyro de Mattos, esposa Mariza  de Mattos e a Professora Doutora Olivia Barradas. 



sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Conversando com o Escritor Cyro de Mattos
                                                                                                                        Texto: Nathania Malta
     Estudantes do 8º semestre da disciplina Literatura Sulbaiana, do curso de Letras da Universidade Estadual de Santa Cruz-Uesc, orientados pela professora Dra. Reheniglei Rehem, participaram, no dia 4 de dezembro último,  quarta-feira, de um encontro  com o contista,  poeta e  cronista Cyro de Mattos. Denominado "Conversa com o Escritor Cyro de Mattos: poesia, tradução e topofilia", o evento ocorreu no auditório Jorge Amado, no campus universitário. O objetivo foi proporcionar aos alunos  maior intimidade com a poesia do escritor grapiúna, a partir da leitura e análise de alguns de seus poemas inclusos na antologia Onde Estou e Sou/ Donde Estoy y Soy, com tradução de Alfredo Pérez Alencart  para o espanhol, publicada pela Editora Ler, de Brasília, numa perspectiva   poético-afetiva.
     Nesse encontro com o autor da antologia  De teus instantes no poema/ De tes instants dans le poème, publicada na França,  foi apresentado o projeto dos alunos Wilken Figueiredo e Tatiana Santos, bolsistas do Pibid/Capes/Uesc/Letras-LP, com o tema "A indissociabilidade de ensino, pesquisa e extensão vista a partir da literatura sulbaiana", seguido da leitura cênica do poema Agudo Mundo, de Cyro de Mattos, feita pela uniiversitária   Tacila Souza.  Outro momento do evento foi proporcionado pela apreciação do professor argentino Juan Fecundo sobre a correspondência dos versos de Cyro de Mattos traduzidos para o espanhol e suas conotações afetivas nos dois idiomas. Foi divulgado no evento o  resultado do concurso Resenha Acadêmica com o tema "Percepção e afeto na poesia de Cyro de Mattos", realizado  entre os  graduandos do 8º semestre de Letras da Universidade. 
     A seguir, aconteceu um depoimento do trajeto Cyro de Mattos  no qual o escritor   falou de sua vida e obra, das primeiras leituras com os livros de Jorge Amado, Clarice Lispector, Adonias Filho, Guimarães Rosa, Lúcio cardoso e outros grandes escritores brasileiros, Ao discorrer sobre a arte de escrever,  Cyro enfatizou que procurava em seus textos em prosa e verso dar  palavra ao sonho e concebia a literatura como fundamento da vida, um instrumento necessário para tornar a existência viável. Pontuou sua trajetória como leitor, no início,  e depois já como   autor de contos, poemas e textos para a infância, bem como o fato de ser conhecido no país e exterior .  Nesse particular, confessou que a maior recompensa em suas atividades literárias foi ter seu livro  Vinte Poemas do Rio   traduzido para o alemão por Curt Meyer-Clason,  o maior divulgador da literatura iberoamericana na Alemanha, tradutor, entre outros,  de Guimarães Rosa, Gabriel Garcia Márquez, Jorge Luís  Borges, Juan Rulfo, Machado de Assis e  José Saramago.    
     Ao agradecer a oportunidade do convívio com a juventude acadêmica, disse Cyro sentir-se gratificado  ao ver a sua produção literária analisada por universitários e professores da Uesc. Mattos autografou no final  para universitários e professores mais de 40 livros de sua autoria  publicados pela editora da UESC.    



quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

                         Os Doces de Minha avó
                                           ( Cyro de Mattos)

                                  
A avó Ana acordava cedo todos os dias. Os passarinhos ainda estavam empoleirados na mangueira do quintal. Dizia que Deus ajuda a quem madruga. Nesse ritmo de acordar perto de clarear o dia e começar logo a se ocupar com as tarefas de casa, a avó Ana ajudou o avô  Campos a criar oito filhos, três homens e cinco mulheres. Os filhos foram casando quando ficavam adultos e de repente os meus avós se viram sozinhos numa casa grande,  de construção simples. As paredes eram de adobe e o piso de cimento.
Não conheci meu avô Campos, era muito pequeno, estava engatinhando. Dele tenho um retrato na pequena moldura em que aparece o rosto de um homem idoso com os cabelos pretos e finos. O rosto gordo, a pele alva, os lábios como se fossem riscos de tão finos, o bigodinho bem aparado. Meu pai falava que ele era um seleiro de mão cheia, a freguesia que o procurava era enorme, enchia sua sapataria A Bota Encantada na rua do comércio.
Imagino meu avô por trás do balcão atendendo o freguês, um fazendeiro  abastado, a examinar a bota feita pelas mãos competentes dele.  O couro da bota  bem trabalhado, brilhando com o verniz aplicado, os adornos embelezando com os desenhos criados por meu avô.  Imagino meu avô numa casa de couro, com a sovela, a sola e a fivela, atento e alegre na manhã luminosa,  criando uma sela macia, um par de botas, sapatos, alpercatas e  chinelos. Meu pai dizia que meu avô era um mágico, tudo que fazia com o couro ou a sola macia lograva extrair acabamento perfeito, que sempre dava prazer ao freguês. Esses vestígios de meu avô,  recolhidos através das lembranças que meu pai transmitiu-me,  dão-me a sensação de que ele acabou de sair do seu retrato emoldurado e  se aproximou  de mim, para envolver-me agora  em carícias que não tive.
   Minha avó Ana era uma doceira de mão cheia.  Gente da classe rica contratava suas artes  para ela fazer  os doces de casamento e aniversário. Ela ia visitar o neto com freqüência. 
- Bênção, vó.
- Deus te abençoe, meu neto.
E me dava o pequeno embrulho.
- Olhe aqui o doce que eu trouxe pra você.
Cocada de coco, de abacaxi ou  de cacau.
Às vezes ela trazia na compota o doce de  leite, de  batata doce ou  goiaba.
Minha  mãe era também uma boa doceira, aprendera a arte de fazer doce com minha avó. Embora eu gostasse do doce que a minha mãe fazia, o de  minha avó tinha um sabor especial. Dava água na boca só de imaginar. 
Não gostava quando minha mãe colocava cebola, tomate  e coentro na sopa. Ficava embirrado sem querer tomar. Minha mãe ralava comigo e prometia me botar de castigo se eu não tomasse. “É pra seu bem, filho, tome a sopa que está deliciosa.” Acrescentava que sem  cebola, tomate e coentro a sopa não pegava gosto. Tomava a sopa depois de tanto minha mãe pedir e me prometer que aquela era última vez que aquilo ia acontecer.
Contava à minha avó o que minha mãe fazia comigo para tomar a droga daquela sopa. Ela  interferia e aconselhava minha mãe a  não fazer mais aquilo.
- É a natureza do menino, você tem que entender – pigarreava e concluía zangada: - Você faça a sopa de agora em diante como o  meu neto quer.
Minha avó Ana gostava de contar histórias para o neto do tempo em que os bichos falavam. Contava histórias para o neto sorrir. Contava histórias para o neto voar. Contava histórias para o neto sonhar. Contava histórias para o neto dormir.
Quando o rio Cachoeira amanheceu furioso, espalhando água para todos os lados, minha avó temeu que a enchente alcançasse a casa onde eu morava. Apressada foi me buscar para que eu fosse  dormir  na sua casa, que ficava numa parte alta da cidade. Meus pais não quiseram ir. Fiquei mais de duas semanas  na casa de minha avó, à espera  que o rio baixasse suas águas barrentas e zangadas. Foi aí,  nesse tempo de muita chuva, relâmpago e trovoada, que minha avó mais demorou contando muitas histórias para eu sorrir, voar, sonhar e dormir.
Já estava acostumado a morar com minha avó. Fiquei triste quando tive que retornar de sua casa para a de  meus pais quando o rio Cachoeira voltou ao seu curso normal.
Ainda hoje, com a idade avançada, lembro de minha avó. Às vezes quando estou sozinho, pensando, pensando, não tenho dúvida de  que  ela  está morando no paraíso desde que partiu  desta vida para a outra no além. Mas tem uma coisa que me preocupa, é se ainda vou encontrar com ela quando acontecer a minha partida deste mundo de cá para o de lá.  É que não  tenho conseguido ser doce como minha avó foi nos caminhos desta vida. Quando fizer essa viagem sem volta, penso que  devo ir para o purgatório, lugar onde ficam as almas do pecador que não tenha cometido os males piores no lado de cá desta vida. E há quem diga que as almas que vivem no paraíso não se misturam com as que estão no  purgatório.  E do purgatório minha alma não vai poder sair para visitar a de minha avó, que certamente  estará  vivendo para sempre  no paraíso,  entre os  santos e os anjos. 
Mas tenho certeza que ela dará um jeito nisso tudo. E como nunca falhou nessas horas, irá me visitar no purgatório, levando os doces mais deliciosos que costumava fazer para o neto.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Morre o Escritor James Amado

                                          
Morreu em casa, vítima de falência múltipla dos órgãos, em Salvador, na Bahia, neste domingo último,  aos 91 anos, o escritor James Amado, irmão caçula do romancista Jorge Amado (1912-2001). Foi sepultado às 17 horas de segunda-feira, ontem,  no cemitério Jardim da Saudade,  em Salvador, onde o corpo foi velado  na Capela F.
Segundo Paloma, sobrinha de James, o último domingo foi de dor e saudade.
— Estou completamente destroçada. Meu pensamento está todo voltado para minha tia Luiza, mulher formidável, e para meus queridos Janaína, Inaê, Maurício e Fernanda, mais que primos, irmãos muito amados, ela completou.
Terceiro e último filho de João Amado de Faria e Eulália Leal Amado, desbravadores da Região Cacaueira Baiana, na época da conquista da terra, James Amado nasceu em Ilhéus, em 1922,  no sul da Bahia. Ele era o último irmão vivo de Jorge Amado. Membro da Academia de Letras da Bahia desde 1990, ocupou a  cadeira de número 27, cujo patrono é Francisco Rodrigues da Silva e que antes foi ocupada pelo jornalista Antonio Loureiro.
James Amado escreveu o romance  Chamado do Mar, que tem como cenário Pontal dos ilhéus, no sul da Bahia, que serve de fundo para a exibição de conflitos interiores e sociais vividos por pescadores numa colônia de pesca. É um  dos romances mais vigorosos da ficção brasileira que tem como motivação o mar e sua gente,  narrado com a técnica moderna  dos ficcionistas norte-americanos, que trouxeram para a estrutura do romance após a Segunda Guerra Mundial o uso do contraponto e do tempo desmembrado. Até hoje guarda o segredo da perene atualidade. James Amado foi também  o responsável pela edição das Obras Completas de Gregório de Matos, publicadas pela Editora Janaina, Salvador. Além de escritor como o irmão Jorge, James também foi tradutor e jornalista no Rio. Era formado em Sociologia e Política.
Foi casado  três vezes: com Jacinta Passos, com Gisela Magalhães e também com Luiza Ramos Amado, filha do escritor Graciliano Ramos, sua última mulher. Deixa quatro filhos: Janaína, Inaê, Maurício e Fernanda.
- Somos da mesma região e temos tradição de luta e esforço pelas causas sociais. Ele era um grande amigo, afetuoso. Toda semana, nós nos encontrávamos na “Ceasinha”, nas quintas do Edinho para conversar, lembra o escritor, poeta e membro da Academia de Letras da Bahia, Florisvaldo Mattos. 









Dois Centenários Grapiúnas:
Sosígenes Costa e Nelson Schaun

                                            James Amado


Duas personalidades que se marcaram no perfil do mundo cultural sul-baiano, Sosígenes Costa e Nelson Schaun, têm centenário de nascimento este ano. Seus trabalhos e paixões impõem-se à rememoração. Sosígenes Costa, que teve a poesia por destino, imaginou uma mítica história de sua terra e sua gente, mas datou-a “do tempo do onça, em que o rio não tinha cacau” e misturou nesse enredo os deuses do Olimpo e os que ele criou na sua mitologia indígena, aboliu o néctar e a ambrosia do banquete dos gregos e os substituiu pelo suco da polpa do cacau: E o cacau foi chamado o alimento do céu.

A origem divina dessa lavoura se mostra, com clareza, quando nasceram Sosígenes e Nelson, e por sobre a imensidão da floresta que ia da foz do rio Cachoeira à barra do Jequitinhonha, terá havido a cimeira dos deuses. Não somente os locais, mas todos eles num congresso de ventos. Maravilhados com a beleza do mar e da mata virgem, deitaram sobre ela uma bênção consensual. A bênção divina foi rapidamente levada à prática e dois novos elementos se juntaram ali: um odor denso, moreno, cobriu toda a região, encheu todos os peitos do mesmo anseio, todas as cabeças do mesmo e único sonho.

Nelson Schaun e Sosígenes Costa, dois legítimos grapiúnas, nasceram no primeiro ano do último século do milênio. O cacaueiro, que nenhum deles plantou, até já teria deixado de produzir, mas seus trabalhos e paixões são ainda palpáveis, mesmo que, para alguns, possam parecer de duvidosa utilidade. Neste relato, que agora se faz pedestre, retomo da memória suas figuras num mesmo dia-a-dia sem aventura, diferentes uma da outra mas que se aproximam e se assemelham no lastro comum que animou seu pensamento.

Nelson nasceu em Ilhéus, Sosígenes chegou de Belmonte aos 16 anos. Nunca saíram dali, a não ser por raros e breves dias; Ilhéus era o núcleo urbano central do mundo cacaueiro, dali a lavoura subira os rios para o interior. Num movimento inverso, a ela chegavam as cargas de amêndoas secas, nos vagões de brinquedo da ferrovia dos ingleses, transferidas em alvarengas aos cargueiros estrangeiros que ancoravam diante da avenida da praia, pois o porto somente recebia embarcações de pequeno calado. Ilhéus era o centro nervoso do processo de produção, cofre dos primeiros bancos, comprava e pagava à vista, com seus agentes por todo o interior, o cacau miúdo dos posseiros e burareiros e as safras numerosas dos grandes fazendeiros.

Era ela com seu mar e suas colinas, e era nova em folha, ao tempo de Nelson e Sosígenes; de discutível antigüidade tinha apenas a igrejinha de São Jorge; dispensava fortes coloniais que lhe recordassem antigos canaviais, donatários ou senhores de engenho. Renascera capitalista, por seus caminhos corria dinheiro vivo, nada lhe perturbava a riqueza, tanta e tão acessível. No imaginário popular, Deus fora rebaixado a simples corretor da esperança que levaria o alugado à eminência da estátua dourada do Coronel, figura emblemática da bem-aventurança. Nelson Schaun e sua cidade eram amantes e contentes. Ele a tratava com a intimidade alegre e sem restrições do namorado nascido, criado, vivido e disposto a morrer ali onde bate seu coração e seu sangue reconhece cada esquina e seu rosto é reconhecido em todos os momentos por todas as pessoas.

De acordo com sua vocação de figura pública, ele se fez professor. Sua escola estava em toda parte, estava no mestre sempre disposto à lição. Na sala de sua morada com Vanja (nome raro, suave sussurro), primeira casa da rua do Sapo, a das moças sem maridos, mas com filhos, aos quais ele ensinou gratuitamente a “ler e escrever corretamente a língua portuguesa” (...). No bar do fim de tarde, era onde se tornava aluno da intimidade, apenas murmurada, com um sorriso maroto, dos segredos que todos saboreavam: o Maraú, do comandante italiano, havia chegado e apitara longamente para avisar a Cremilda, no alto de São Sebastião, que seria seu parceiro-coronel para a noite de amor; ou o afundamento do iate no gargalo da barra, de onde escapara a professorinha de Itapira, beata e virgem, passando graxa de sapato em todo o corpo para esgueirar-se pela vigia estreita - e a garotada se assanhara com a visão.

Sosígenes Costa nasceu na ponta sul da região, foz do Jequitinhonha e trouxe para Ilhéus todo o seu cabedal: o conhecimento dos sinais do sistema morse e uma bela caligrafia, bens úteis e requeridos dos telegrafistas. Aprendeu o Boudot, que imprimia em fitas estreitas de papel as mensagens telegráficas. Estes eram os laços mais estreitos que Sosígenes Costa mantinha com a comunidade, pois a ele cumpria ler, corrigir, cortar e colar nos formulários cumprimentos, ordens, pedidos, declarações sucintas, nascimentos e óbitos, e quanto mais lhe revelasse, na brevidade dessas comunicações, a vida da cidade.  Ele preservava, rigorosamente, sem concessões, seu direito à privacidade, sua necessidade de comunicação tinha canais próprios, dispensava o contato físico e a conversação, câmbio de sentimentos e pensamentos. Raramente era visto em locais públicos. A caminho da agência do telégrafo, transitava por ruas pouco freqüentadas e, assim, quando retornava ao seu quarto-e-sala, improvisado num edifício comercial, sua oficina de trabalho noturno, onde fazia e refazia, numa escala de tempo muito particular, seu verso maravilhoso. Ilhéus era, também, a sua cidade, e ele seu produto, ali aprendeu, com rara percepção crítica, os motivos de sua poesia tão especial, sem parentesco a não ser, pela excelência da qualidade, com os poucos grandes poetas universais da língua. Ali aprendeu os ritmos populares das festas de largo, e reinventou a linguagem dos alugados. Sobre o longo poema da origem mítica da lavoura, esclarece: “Começa com versos livres, soltos como menino no pasto, pula num samba, emenda por um coco, cai de novo no samba e termina falando como a gente fala”.

Às tardes, na Associação Comercial, secretariava e reportava em atas formais, com sua letra cuidada e clara, as semanais reuniões da Diretoria. Nos outros dias, ele supervisionava o cuidado dos jardins da casa imponente, que ornamentava com flores raras, e tratava pessoalmente de algumas dezenas de gaiolas de passarinhos canoros, que os meninos da redondeza pegavam e lhe traziam, em troca de algumas moedas. A casa e a praça enchiam-se de trinados de canários, cardeais e pintassilgos. Um pássaro preto, que imitava o canto dos demais e repetia a primeira fase do Hino Nacional, andava atrás dele, esvoaçava pelas salas do andar superior e às vezes pousava na mesa grande das reuniões. À noite, quem passasse pela praça e os jardins diante da Prefeitura, ouvia, vindo do salão de festas da Associação Comercial, o som das músicas que o poeta tirava no piano de meia-cauda, entremeando peças clássicas e populares.  
O mal dos deuses é terem fé nas criaturas que os criaram. Na região cacaueira, o sonho único da riqueza geral foi rapidamente burlado: o lavrador estabelecia a sua posse no meio da mata, plantava sua rocinha, vivia com a família da caça e da pesca abundantes. Certo dia, aparecia o fazendeiro, que havia comprado do governo, ao preço de um centavo o hectare, a terra devoluta. Pagava ao posseiro a benfeitoria feita ao chão, contratava-o para fazer uma roça muito maior e, quando a plantação começava a produzir, assumia a sua propriedade, pagando ao lavrador um tostão por árvore. A “operação” repetia-se muitas vezes, o lavrador alugava seu braço e sua intimidade com a lavra, vivia e morria miserável, sem dinheiro e sem terra, proibido de comer cacau, perdido de seu sonho.

Nelson Schaun e Sosígenes Costa, grapiúnas urbanos, sem machado ou foice para derrubar pau e ciscar o solo, um deles professor e extrovertido, o outro poeta e introvertido, pareciam não cruzar seus caminhos no espaço exíguo da cidade pequena. Uma vez, ao menos, estiveram juntos. Schaun reuniu seus poucos companheiros e, sem os cuidados que a situação de clandestinidade impunha ao seu sonho, estruturou o primeiro comitê do movimento comunista em toda a imensa região cacaueira. Durante algum tempo aquela mínima unidade orgânica foi sozinha na cidade de Ilhéus, sozinha no mundo inteiro. Vista desde hoje, sete décadas passadas, tão longínqua, é um pequeno e singelo momento da mais alta grandeza humana. O sonho era devolvido à população grapiúna, sonho antigo e desgastado, mas renovado em termos modernos, um século antes. Nelson Schaun gostaria de haver encerrado o ato simples com o verso oratório de um poeta de sua predileção (mas ainda por escrever): Um fantasma assombra a Europa, o mundo*/ Nós o chamamos Camarada.

Sosígenes Costa, infenso a reuniões de quaisquer tipos, soube do ocorrido e fez um pequeno poema, como se fosse ele o professor (leia o poema na pág. 8). Depois, muito depois, aqueles deuses simpáticos e benfazejos, que doaram aos grapiúnas a bênção do cacau, aborrecidos com tanto caxixe, fizeram uma breve reunião de controle da situação e resolveram mandar a praga da vassoura de bruxa dar fim à história.