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sábado, 25 de abril de 2015

Soneto da Mulher Amada




                  Cyro de Mattos


Do amor me dizes no sal de teu corpo
E de beijos sob  um sol que me tem
Em mar tão meu. E revelas teu sexo
Em que navego sedento, mergulho,

Sou tragado, mas não morro. Retorno
A  teus seios que beijo tantas vezes
Pra matar essa fome  que me mata
De ardores e gemidos como sempre.

As palavras, tremores,  mil carícias
Provocam um susto, indescritível,
É o gozo que me tem em tuas mãos.

Nessa chuva que molha nossa pele
Então desejo que as dunas andem
E vejam nosso amor além do mar.



Entrevista com Cyro de Mattos

CIRCUITO DAS ARTES 2015


                    Sante Scaldaferri – entre ex-votos e meninas


Sobre o artista

A vida de Sante Scaldaferri já deu um livro... aliás, vários livros! Nascido em Salvador em 1928, filho de italianos, Sante viveu parte de sua infância, até os oito anos de idade, numa pequena cidadezinha da região de Basilicata, no sul da Itália perto do mar Tirreno. Depois voltou para a Salvador, morando por muito tempo na Ladeira dos Aflitos. Fez o curso primário na Casa d’Itália e o secundário no Colégio Sophia Costa Pinto com outros futuros artistas, como Genaro de Carvalho, seu grande amigo.
Começou sua formação artística nos anos 1950 na Universidade Federal da Bahia, primeiro na Escola de Belas Artes, onde se formou em Pintura em 1957, com mestres como Mário Cravo Jr., e, logo em seguida, estudando cenografia com Giani Ratto na Escola de Teatro. Influenciado pela disciplina "Estudos Brasileiros", ministrada por Hélio Simões, Carlos Eduardo da Rocha e Cid Teixeira, começou a desenvolver interesse pela cultura popular e artesanato do Nordeste. Porém, seu engajamento com o meio artístico foi anterior à Universidade.
Desde os anos 1940, participava de movimentos, salões de arte e atividades culturais junto a vários artistas e poetas da chamada "Geração MAPA", inclusive fez editoração da revista MAPA. Fez parte da famosa turma do Campo Grande, acompanhando todo tipo de manifestações e convivendo com muitos personagens populares. Mais tarde, colaborou com Glauber Rocha e o Cinema Novo como cenógrafo e ator. Foi assistente de Lina Bo Bardi à época da criação do Museu de Arte Moderna da Bahia, no Solar do Unhão, onde também foi professor de educação artística para crianças. Segundo Sante, foi com ‘Dona Lina’, entre 1958 e 1964, que “aprendi a ser profissional”.
No princípio da carreira, em Salvador, implantou e dirigiu os Centros Artesanais do SESI (Serviço Social da Indústria) no Largo do Papagaio e no Retiro, do SESC (Serviço Social do Comércio) em Nazaré, e do IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia) no Pelourinho. Assim, nos anos 1970, teve destacada participação em projetos de educação artística vinculados a programas sociais.
O repertório de referências filosóficas, teóricas e artísticas de Sante decorre de muitas vivências, viagens e, principalmente, de estudos sistemáticos de arte e de dedicação ininterrupta à pintura. Fez a primeira exposição individual na Escola de Belas Artes à qual se seguiram umas 40 individuais até hoje e mais de 80 coletivas, realizadas no Brasil e no exterior. Recebeu uma dúzia de premiações e vários críticos, poetas e artistas renomados escreveram sobre sua obra, de Jorge Amado a Umberto Eco. Participou em inúmeras feiras de arte e salões nacionais e internacionais. Expôs três vezes na Bienal de São Paulo, além da II Bienal de Pintura de Cuenca (Equador), I Bienal de Buenos Aires (Argentina), III Bienal de La Habana (Cuba), Bienal Interparlamentar do Mercosul (Uruguai), dentre outras grandes mostras. Mais de 25 instituições e museus no Brasil e no exterior tem obras suas.
Dentre as inúmeras publicações e referências ao trabalho de Sante, destacam-se as seguintes obras monográficas que resumem sua trajetória: “A Cultura Popular na Arte de Sante Scaldaferri” (1977), o catálogo em comemoração aos trinta anos de profissão nas artes plásticas (1988), “Sante Scaldaferri – Pop/Bienais” (2011) e “Sante Scaldaferri – baiano, nordestino, brasileiro, universal” (2014) de Claudius Portugal e editado pela Assembléia Legislativa da Bahia.
Desde início dos anos 1980, o trabalho de Sante foi influenciado notadamente pelo Neo-expressionismo, a Transvanguarda e a Pop Art, consolidando uma fase da produção artística que o próprio artista denomina “Fase Antropomórfica” a partir da criação de figuras volumosas e inspiração nos traços dos ex-votos. Nos anos 1990 começa a desenvolver pinturas com inserção de objetos (sobretudo pequenos bonecos de pano e continuando com ex-votos) e a explorar a infogravura associada à manipulação de imagens com auxilio de softwares, trabalho que realiza até hoje em sua bela casa em Itapoá na companhia inseparável de sua querida Marina.




Sobre a obra

Da produção das três últimas décadas de Sante Scaldaferri há pelo menos dois elementos que emergem claramente como componentes essenciais de sua gramática artística: os ex-votos e as volumosas figuras femininas – que eu chamei de ‘meninas’ e Sante adorou!
Os ex-votos, denominação originada pela abreviação latina de ex-voto suscepto – traduzido como "voto realizado" ou “voto cumprido” – são objetos como pinturas e estatuetas doados às divindades pelo fiel como forma de agradecimento por um pedido atendido.  Segundo Sante, “a pessoa quando recebe a graça e vai pagar a promessa, ela mesma pode esculpir em madeira a parte do corpo que ficou curada, pode encomendar a um artesão especializado tanto a escultura como uma pintura, narrando o milagre. O que antes era o ‘voto’, após a obtenção da graça e pagamento da promessa, com a entrega, transforma-se em ‘ex-voto’”. As formas mais conhecidas de ex-votos são de madeira, mas existem também ex-votos de cerâmica e fundidos em metal e, atualmente, ex-votos industrializados feitos em parafina e plástico a partir de moldes. As peças apresentadas na sala menor do ICBA são bons exemplos da produção mais recente inspirada pelos ex-votos em infogravura em diálogo com a prateleira com peças originais – parte da coleção de David Glat gentilmente cedida para esta exposição.
As ‘meninas’ de Sante são figuras femininas, volumosas, exuberantes e nuas que depois de um tempo ganharam um rabinho, reforçando uma feição porcina em muitos casos. Nesta sala, escolhemos trazer para o público um repertório de ‘meninas’ em desenhos realizados no início dos anos 1990, mas que nunca foram expostos. Acrescentamos algumas pinturas de elaboração mais recente, em escala maior e mais familiares do meio artístico, para acompanhar as séries de desenhos.
Sobre suas figuras, a exemplo das ‘meninas’, Sante enfatiza: “não é gorda, gordinha, gorduchinha, fofinha ou fortinha. É uma arte muito séria e forte, possuindo um conteúdo profundo. São os ex-votos assumindo a condição humana para expressarem suas dores, angústias, invejas, ódios, ressentimentos, ciúmes, paixões, amores, mentiras, poder, alegria, medo, pavor, terror, corrupção de todo tipo, violência, assassinatos, enfim, tudo inerente ao ser humano. É a verificação plástica/visual do bem e do mal.” Ainda, segundo Frederico Morais, “não é que a miséria se desvaneceu, como por milagre, ou que a corrupção dos sentimentos tenha sido extirpada do ser humano. O que Scaldaferri parece ter percebido é que por mais perversa que seja a vida do homem, não importa o grotesco ou o ridículo das situações, existe ainda dignidade e esperança”. Esse ‘humanismo santiano’ o inspira a pintar "gente com cara de ex-voto, e não ex-voto com cara de gente" como reconhece o próprio artista.
Apesar de que a maioria dos críticos (a exemplo de Clarival do Prado Valladares e Carlos Von Schmidt) aponta para associações da obra de Sante com o Neo-expressionismo alemão dos anos 1980 e com a Transvanguarda italiana, para mim, grande parte da visceralidade da temática do artista e da feição dos seus personagens remete a um espírito anterior, dos anos 1950: a Arte Bruta, denominação dada por Jean Dubuffet às expressões feitas por autodidatas, crianças, criadores livres da influência da arte oficial, pacientes psiquiátricos e pessoas à margem da tradição e do sistema artístico. No Brasil, Arthur Bispo do Rosário é um dos artistas mais associados com essa produção. Claro que Sante, de formação acadêmica e que sempre esteve inserido no circuito regular da arte, não é precisamente um exemplo do grupo identificado por Dubuffet. Porém, muitas das referências populares às quais sua obra faz alusão, os ecos da “estética do feio”, o caráter por vezes grotesco das formas, a desconstrução do “ideal de beleza” e a fartura das camadas pictóricas que Sante trabalha, dialogam formalmente com trabalhos de artistas do Museu das Imagens do Inconsciente, por exemplo.
Sante consegue conjugar o regional e o universal com rara habilidade, chamando a atenção de artistas como Alex Flemming e Cai Guo-Qiang. Sua temática brasileira, focalizada na religiosidade e na cultura popular do Nordeste, é desenvolvida mediante técnicas pictóricas de linguagem contemporânea. Assim, além da simbiose entre erudito e popular, as referências locais e questões universais aparecem entrelaçadas em criações de uma potencia que se afasta do provinciano para se inserir em contextos muito mais abrangentes. A obra de Sante é um depoimento dos problemas crônicos do sertão e, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a condição humana de qualquer pessoa no centro de Kuala Lumpur. Inspirados nos ex-votos de madeira seus rostos podem conversar tanto com um cordel recente encontrado num mercadinho do interior de Alagoas bem como com as Demoiselles d’Avignon de Picasso no MoMA. Talvez ele nem tenha percebido, mas a densidade de suas encáusticas flerta tanto com a espessura de um Jasper Johns como com os acúmulos de acrílica de Tiago Martins. E tudo isso com uma expressão tão ‘santiana’ que o torna inconfundível!



quinta-feira, 23 de abril de 2015

Centenário de Adonias Filho

                   Por Cyro de Mattos

Comemora-se neste ano o Centenário de Adonias Filho, escritor baiano aclamado pela crítica nacional, nascido em Itajuípe, antigo Pirangi, distrito de Ilhéus, em 27 de novembro de 1915. Deixou  em sua obra de contista e romancista  cinco livros que têm como cenário o Sul da Bahia na época da conquista da terra: Os Servos da morte (1946), Memórias de Lázaro (1952), Corpo vivo (1962), Léguas da promissão (1968), e As velhas  (1975).
Adonias Filho é um autor de livros de ficção que engrandece  a região cacaueira baiana no corpo das letras brasileiras. Legítimo homem da civilização cacaueira baiana sustentou pela vida afora um amor de perdição por suas raízes e histórias de sua gente. Nos últimos anos de vida,  mudou-se do Rio de Janeiro  e foi morar com a esposa  na sua fazenda  Aliança, em Inema. Depois de muito caminhar pela cidade grande, por entre edifícios e gente vinda de todos os lados, retornava aquele homem de voz mansa, cordial, ao chão de seus ancestrais. 
            É sabido que a obra literária motivada por certa região enfoca o peculiar de determinada cultura, tendo por fundo um cenário típico, cujas condições são refletidas no conteúdo da narrativa, conferindo-lhe nota especial. Os estudiosos dizem que o que faz uma obra regional é o fato de mostrar-se presa, em sua matéria narrativa, a um contexto cultural  específico,  que se propõe a retratar e de onde vai haurir a sua substância. Mas isso não a impede de adquirir sentido universal, em função de seu significado portador de humanidades, mensagem  profunda da existência, fazendo com que ultrapasse as fronteiras da região retratada.
          É o caso do consagrado narrador Adonias Filho. Um criador de histórias que tem como cenário a região cacaueira baiana na época da infância quando a selva era impenetrável e hostil. Percebe-se nesse artesão da linguagem uma moderna forma de ser contada a história, harmonizada com a representação das essencialidades da criatura, as quais são retiradas do ambiente onde habitam.   
         Ressalte-se que atrás do homem de determinada região, com sua típica problemática existencial do indivíduo,  seus falares e maneiras próprias de relacionar-se com o mundo,    o que é próprio de qualquer ser humano onde quer que esteja. Razão e emoção, pensamento e sentimento. O pensamento e o sentimento dos personagens de Adonias Filho obedecem às forças cegas do destino, que resultam  de solidões e desesperos impostos pelo ambiente de natureza bárbara. Como seres embrutecidos, primitivos, possuem os sentimentos reprimidos. São índios, negros, tropeiros,  caçadores,  pequenos agricultores arruinados.
           Esse narrador de estilo sincopado e poético é uma das vozes fundamentais da melhor literatura de todos os tempos. Influenciado pelos dramaturgos gregos, Shakespeare, o cinema, do fundo trágico de seus romances, novelas e contos emanam personagens marcantes, em cujos passos e travessias ressoam  os sortilégios da morte através de entonações bíblicas.
Homem culto, simples, ocupou cargos públicos importantes. Foi diretor da Biblioteca Nacional, Editora A Noite, Serviço Nacional de Teatro e pertenceu à Academia Brasileira de Letras. Conquistou o Prêmio Nacional da Fundação Educacional do Paraná, Instituto Nacional do Livro, Jabuti, Pen Club do Brasil  e  Fundação Cultural do Distrito Federal pelo conjunto da obra. Seus romances foram publicados nos Estados Unidos, Portugal, Alemanha, Venezuela e Bratislava. É tão importante  o seu trajeto de vida para o Sul da Bahia que foi instalado em Itajuípe  o Memorial Adonias Filho para preservar sua obra e acervo. O Centro Cultural de Itabuna, da Fundação Cultural da Bahia, leva o seu nome. Ele é o patrono da Academia de Letras de Itabuna (ALITA).
 Depois que a esposa Rosita  morreu em 1990, Adonias Filho caiu em grande tristeza. Ficava deprimido, em seus vagares pela casa-sede da fazenda. Dizem os conterrâneos  que morreu de amor, em 2 de agosto daquele mesmo ano, na casa-sede de sua fazenda, em Inema. O homem criador de romances pujantes e densos não conseguiu suportar a solidão com a perda da mulher amada e companheira.
Agora, no reencontro do legítimo homem do cacau  com a sua paisagem, no seu regresso às origens, o bem vence  o mal. Ultrapassa a morte  pelas mãos do amor  vivido entre Adonias e Rosita.


*Cyro de Mattos é contista, romancista, poeta e cronista. Organizou e prefaciou a coletânea  Histórias Dispersas de Adonias Filho.  


quarta-feira, 15 de abril de 2015

Uma História da Literatura Baiana

                                   Por Cyro de Mattos

A linguagem literária é útil ao próximo na compreensão do mundo.  As obras literárias falam à imaginação e ao sentimento. As científicas, de preferência à razão. A soma da sabedoria humana não está apreendida por nenhuma linguagem e nenhuma linguagem em particular é capaz de exprimir todas as formas e graus de compreensão humana. De todas as linguagens a que mais se aproxima dessa condição é a literária. E tão importante é a literatura na sociedade que quanto mais frágil ela for o povo vive em vias de perder o rumo de sua identidade e do seu país. 
A literatura é a expressão mais completa do homem, como ente que pensa e sente. Todas as outras expressões referem-se ao homem enquanto especialista de uma atividade. Só a literatura concebe e apreende o homem enquanto homem. Sem distinção nem qualificação alguma. É a via mais direta para que os povos se entendam e se encontrem como irmãos. 
Não parece que as instituições públicas do setor na Bahia entendam assim quando se trata da necessidade da elaboração de uma história da literatura baiana. A  literatura baiana vem contribuindo para que as letras brasileiras operem como meio eficaz de comunicação humana em sua função social. No passado com o padre Antonio Vieira, Gregório de Mattos, Castro Alves, Rui Barbosa, Pedro Kilkerry e outros. No amplo curso evolutivo notamos que a prosa de ficção na Bahia revela-se em  diversas áreas, momentos e situações, correspondendo sua expressão estética à percepção individual de cada autor. Xavier Marques, Jorge Amado, Adonias Filho, Herberto Sales, Euclides Neto, Osório Alves de Castro, Hélio Pólvora, Vasconcelos Maia, Sonia Coutinho, João Ubaldo Ribeiro, Antonio Torres,  Helena Parente Cunha,  Aramis Ribeiro Costa,  Guido Guerra, Carlos Ribeiro, Aleilton Fonseca e  Gláucia Lemos     constituem um  conjunto de forte expressão,  que qualifica o estágio de total  identidade e autonomia nacional da literatura brasileira. A lista seria maior se fosse citar outros nomes representativos. 
O mesmo se pode dizer de poetas portadores de um discurso legítimo como fatura estética e sentimento de mundo. Carvalho Filho, Godofredo Filho, Sosígenes Costa, Telmo Padilha, João Carlos Teixeira Gomes, Carlos Anísio Melhor, Ruy Espinheira Filho, Florisvaldo Mattos, Myriam Fraga, Antonio Brasileiro, Capinan, Luís Cajazeira Ramos, Fernando da Rocha Peres, Afonso Manta, Valdelice Soares Pinheiro e José de Oliveira Falcon  são nomes que condizem com esse referencial no campo das letras baianas.
É trabalho de especialistas a confecção de uma história da literatura baiana, dotada de valor crítico e documental, comentários lúcidos da obra na instituição  do cânone. Não faltam intelectuais da melhor estirpe entre nós para participar de um grupo de trabalho com essa finalidade. São muitos os  exemplos de  nomes importantes  para compor o  grupo na execução do projeto, levado em consideração o  instrumental teórico, sensibilidade,  consciência crítica, vivência e convivência  que cada um deles possui no setor.     
Instituições públicas, no âmbito do literário, pedagógico e cultural,  mais se personalizam como órgãos atuantes quando com eficácia produzem, organizam e divulgam. Cometem omissão incompatível com a sua finalidade quando deixam de elaborar projeto para que seja escrita obra importante como a de uma história crítica da literatura baiana. Documento valioso não só para dar uma visão panorâmica de autores e obras no seu processo histórico como para apresentar a vinculação da vida ao patrimônio espiritual de um povo, dentro de um contexto educativo e cultural. A omissão nesse caso não procede, reveste-se, no mínimo, de insensibilidade e negligência.   







terça-feira, 7 de abril de 2015

O Sorriso da Menina

Por Cyro de Mattos



Tive uma infância livre marcada de surpresas  agradáveis. As melhores aventuras com os queridos amigos aconteciam  quando era tempo de férias escolares. Na minha turma  havia menino filho de família rica, mediana  e pobre. A classe social e econômica não nos separava, estávamos sempre um próximo do outro porque as brincadeiras da infância com sustos esplêndidos sempre nos unia e falava mais alto do que qualquer tipo de privilégio, distinção ou preconceito.  Não me lembro de algum menino branco querer ser superior ao amigo porque este era de cor preta.
 Eu era um menino de pais humildes. As diferenças que existiam entre ser rico e  pobre  valiam no mundo dos adultos,  não me interessavam mesmo.  Os sentimentos fraternos nutriam um companheirismo entre os meninos de cada rua ou bairro. Brotavam e cresciam fortes  a cada dia, no jogo de bola, roubo de fruta madura nos quintais espalhados na cidade, pescaria no rio. A vida assim nadava como um peixe ágil por entre  as águas límpidas do rio, que dividia  a cidade em duas partes. Ou  como  um pássaro que dava voos altos, cada um de mais intensa emoção do que o outro.
Não gostava quando meu pai dizia que um dia ia se tornar um homem rico. Para o pai o pobre era igual a cachorro, passava toda espécie de privação. O pai tinha renda modesta, vivia do aluguel das casinhas na avenida que havia acabado de comprar,  depois que vendeu o quiosque, sortido de aguardente, cigarro, doce e biscoito.
Fora esse aborrecimento que o pai me dava, quando abordava esse assunto de riqueza e pobreza, rotulando os  homens de privilegiados os ricos e sofredores os pobres, a infância que tive em minha cidade encheu-me de  alegrias. Digo melhor: só de riquezas provenientes de cada aventura.  A primeira tristeza que aconteceu comigo na infância foi quando soube que a menina  havia sumido,  os pais  estavam desesperados Pediam aos vizinhos, amigos e conhecidos que os ajudassem a encontrar a filha, de repente desaparecera quando brincava sozinha no passeio.
Um acontecimento inusitado, essencialmente absurdo em sua dramaticidade, quando a cidade tomou conhecimento do sumiço daquela menina. Abalou os seus habitantes durante semanas. A menina estava brincando pela manhã no passeio de sua casa, saltando as casas do jogo da amarelinha. Quem teria feito tamanha perversidade?  Não se falava agora  de outra coisa. O  autor de tamanho infortúnio merecia o pior dos castigos quando fosse capturado. A mãe estava prostrada na cama, os olhos inchados de tanto chorar. Murmurava e pedia, a todo instantes, para que Nossa Senhora Perpétua do Socorro  achasse sua filha e lhe desse de volta. O pai na  padaria atendia  os fregueses ora nervoso, ora triste.
Naquele tempo, por ser uma  cidade pequena,  as pessoas tinham suas vidas próximas umas das outras. Podiam morar distantes umas das outras, mas  a vida de cada habitante era conhecida na sua intimidade por muita gente. Ninguém guardava segredo de ninguém.  Na cidade  de pouco mais de 20 mil habitantes, os sentimentos de alegria e pesar que alguém estivesse vivendo pertenciam também a seus habitantes, que comentavam sobre o fato e participavam dele, como se fossem também protagonistas.
Imagine então que um fato grave como o do sumiço da menina correu célere e tomou conta da cidade em poucas horas.
Muita gente na cidade sabia em detalhes sobre o sumiço da menina. Os pais sofriam com o desparecimento da filha. A cidade estava coberta de uma onda de tristeza trazida por acontecimento inconcebível, de tão infeliz  e dolorido. Era a primeira vez que isso acontecia. Os ares da tristeza circulavam em lugares distantes do centro da cidade.   Eu e os queridos amigos ficamos sem saber o que fazer para acharmos alguma pista que revelasse o lugar onde a menina estivesse aprisionada. Um amigo dizia que a menina tinha sido roubada há um mês,  as chances de achá-las iam diminuindo, cada vez  mais ficando pequenas. Outro falou que ela tinha sido vista na cidade  de Conquista, que fica longe no sertão das boiadas, estava sendo puxada pela mão de um homem velho e barbudo. Muito feio, sem dentes na boca, tinha parentesco com o diabo.  
Na minha infância cheia de alegrias, tive que  conhecer a dura hora da  tristeza pela primeira vez com o sumiço daquela menina, que eu vi certa vez na manhã inocente, pulando corda no passeio.

sábado, 4 de abril de 2015

Queima do Judas

     Cyro de Mattos
        
  
O sábado era o dia em que mais gostava na Semana Santa. Amanhecia alegre porque Jesus Cristo ressuscitava nesse dia. Já podia cantar marchinhas no banheiro lá em casa quando fosse escovar os dentes e tomar banho. Já podia  beber leite no café da manhã e comer carne de gado, porco, carneiro ou galinha na refeição do almoço. Podia jogar bola no campinho  da beira-rio, pescar, nadar e mergulhar no rio Cachoeira. Se quisesse, podia ir assistir ao último episódio do seriado de Flash Gordon na matinê do Cine Itabuna.
A cidade voltava a ter sua vida normal, os comerciantes abriam as portas de suas lojas, as pessoas caminhavam  na rua, ora apressadas, ora tranqüilas. A feira atrás da estação do trem voltava a fazer sua festa, com vozes que não paravam de falar, as pessoas comprando tudo que podia se imaginar. O padre Nestor celebrava a missa das sete com entusiasmo na igreja de Santo Antônio cheia de fiéis. Depois que dava a bênção final, bradava que Cristo estava vivo, era o verdadeiro e único  rei dos cristãos, reinou e sempre haveria de reinar, ressuscitava para o bem da vida,  aleluia!
A queima do Judas acontecia nos bairros populares. Para minha alegria e surpresa, dessa vez  o Judas  ia ser queimado lá na rua. Quem preparou o boneco de palha, cheio de bombas na cabeça, tronco e membros, foi seu Filó, o dono da casa que vendia ferro e alumínio na rua do comércio.  À noite, por volta das 19 horas, já havia muita gente diante  do Judas pendurado no poste.
Seu Filó começou a ler o testamento do Judas por volta das 20 horas.

A cabeça vai pra seu Ribeiro,
A dele nunca prestou mesmo,
A do burro vale mais dinheiro.
As mãos espertas e macias
Dou pro açougueiro Berilo
Roubar melhor no quilo,
Cada nádega  é pra seu Augusto
Comer gostoso e soltar arroto,
As pernas finas e compridas
Deixo pro João Monteiro
Andar pra frente e ligeiro,
O chapéu grande de palha
É pro prefeito usar sem as galhas,
A calça velha, a camisa rasgada,
O paletó com  a gravata preta
Vão vestir o Zeca Hemetério
Quando viajar pro cemitério,
Os sapatos furados sem cadarço
Dou pra Luís Bernardo calçar
Quando tiver são ou bêbado,
É da meninada minha barriga
Cheia de doces e lombriga,
O charutão é de seu Tonico,
Bom proveito quando for ao circo,
O dinheiro vai pro seu Aleixo
Gastar no jogo do bicho,
O par de meias  com chulé
É pro padre Nestor fazer rapé,
O que precisa Maria Padeira
É um bocado de pele grossa
Pra ela fazer uma peneira,
Já uma parte da peitaça
É pra Dona Maria Graça,
Se ainda sobrar algum osso
É pra dona Joanísia botar
Na sopa de seu Lindolfo.


Começava  a ser queimado pelos pés, aí o que se ouvia eram os estouros de cada bomba arrancando os pedaços do traidor de Jesus Cristo. Eram lançados para todos os lados. Os estouros das bombas misturavam-se com gaiatices, sorrisos,  gritaria de gente grande e pequena.
Alguns dos moradores da rua achavam graça quando tomavam conhecimento de que tinham figurado como herdeiros no testamento do Judas. Outros ficavam aborrecidos, evitando se encontrar com seu Filó na rua, durante algumas semanas. Seu Ribeiro, o agente dos correios,  exigiu que ele lhe pedisse desculpa, se ainda quisesse tê-lo como amigo e bom vizinho. O prefeito Nazário pensou até em processar seu Filó, velho companheiro de partido. Achava que sua fiel esposa Maria Santinha não merecia ser ofendida por tão  grande mentira, mesmo que se tratasse de uma brincadeira inventada por seu Filó no testamento de Judas. Não levou a idéia adiante porque as eleições municipais iam ocorrer naquele ano. Queria ser reeleito como prefeito. E ele bem sabia  que seu Filó era o seu melhor cabo eleitoral na cidade.   (Do livro Roda da Infância, novela, Editora Dimensão, BH)









quinta-feira, 2 de abril de 2015

Perdão

Ó meu bem-amado
Salvador do mundo. Sempre
Batem em mais pregos.

Cyro de Mattos (abril 2015)