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quinta-feira, 30 de junho de 2016

                               

                                          Poemas Iberoamericanos


Inédito ainda no Brasil, nosso  livro Poemas Iberoamericanos foi publicado em Portugal pela Editora Palimage, de Coimbra,  na coleção Palavra Imagem (www.palimage.pt). Este é o quarto livro que publicamos  pela Palimage, enquanto os  outros são Vinte Poemas do Rio, com tradução para o inglês  do poeta Manuel Portela, Doutor em Cultura Inglesa pela Universidade de Coimbra, prefácio da professora Graça Capinha, Doutora na área de Poesia; Ecológico, poesia, prefácio  da professora e escritora Helena Parente Cunha, Doutora na área de Letras, e Vinte e Um Poemas do Amor,  com ilustrações de Edsoleda Santos.  
Poemas Iberoamericanos é dedicado ao artista plástico Richard Wagner, de saudosa memória nos meios culturais baianos,  em especial na  Região do Sul da Bahia. Traz  prefácio do poeta e escritor Carlos Moisés, da USP, e  é dividido em três partes: poemas brasileiros, poemas portugueses e poemas espanhóis. Segundo o autor do prefácio,  “estes  Poemas Iberoamericanos em boa hora nos trazem de volta  o poeta de Itabuna,  cidadão do mundo, na posse de sua arte discreta e verdadeira.”
Publiquei quarenta livros pessoais no Brasil e nove no exterior, sendo quatro em Portugal, três na Itália, um na França e outro na Alemanha. Além disso, alguns de meus textos em prosa e verso foram publicados na Dinamarca, Rússia, México, Espanha e Estados Unidos.
Organizei ainda e publiquei oito antologias de  conto e  de poesia no Brasil.  Do livro Poemas Iberoamerticanos é o  poema “Canção de Itabuna”. Leia a seguir: Uma canção de Itabuna/ Ressoa nessa estrada/ A essa altura comprida/ Vem de dentro da infância,/ Nesses ventos da aventura.// Pelejando nos campinhos,/ pelejando nos quintais,/ são meninos como sonho,/ Cada um quer ser herói,/ Nesses ventos da esperança.// Todos eles um rio conhece/ Nos mergulhos do verão, / Nos acenos da aurora/ Que desponta radiante/ Nesses ventos da ilusão.

 O livro Poemas Iberoamericanos custa 12 euros,  encontra-se disponível em www..palimage.pt.

terça-feira, 28 de junho de 2016



                                          Professor Dorival de Freitas Nos Deixa


Faleceu hoje o  professor Dorival Freitas, que era membro da Academia de Letras de Ilhéus e lecionou Filosofia na Universidade Estadual de Santa Cruz. Cidadão de muitas virtudes, era dono de uma oratória que chamava   a atenção pelo brilho da palavra no discurso sábio.  As despedidas ao mestre estão sendo realizadas  na Igreja São João Batista,  no bairro do Pontal, em Ilhéus. O sepultamento será na tarde de quarta-feira, 29 de junho de 2016.


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Professor Dorival de Freitas
            
                                              Maria Luíza Heine




"Lembro-me de Dorival de Freitas desde a década de sessenta. Gostava muito de ouvi-lo falar, da emoção que colocava na voz, quando discursava. Mas me aproximei dele, quando se tornou meu professor de Cosmologia, na antiga Fespi. Hoje somos amigos e participamos da mesma confraria, a Academia de Letras de Ilhéus.

Dorival de Freitas nasceu na cidade de Santa Inês, estado da Bahia, a 8 de dezembro de 1932, filho de Cantídio de Freitas e Julieta Leal de Freitas. Com o falecimento de seu pai em fevereiro de 1933, sua mãe e filhos vieram residir em Ilhéus no então, arrabalde do Pontal. Portanto, podemos afirmar que Dorival é um ilheense nascido em Santo Inês. O curso primário foi realizado no Grupo Escolar Barão de Macaúbas, tradicional escola pública do município.

Em 1946, iniciou seus estudos no Seminário Central da Bahia – Humanidades, no Seminário Menor, e filosofia e teologia, no seminário Maior, ordenando-se sacerdote em 6 de dezembro de 1959, na Igreja Matriz de São Jorge.

Nos 7 anos de ministério sacerdotal, exerceu os cargos de Diretor Espiritual e Reitor do Seminário São Jorge dos Ilhéus, Secretário da Cúria Diocesana e Capelão do Hospital São José. É desse tempo que me lembro de sua bela oratória.

Mas, nem sempre, os caminhos dos homens são os caminhos de Deus; o que não impede que os novos caminhos sejam santos, também. E o caminho do amor humano tem lá suas razões, que a “própria razão desconhece”. Dorival, mesmo sendo um sacerdote dedicado a Deus, sempre foi um homem honesto e coerente com seu coração. Pediu licença do ministério Sacerdotal em 1966 para casar-se, em 1968, com Marita Maria Ocke de Freitas, e assim, dar início a uma nova caminhada. Do casamento nasceram três filhos: João Paulo, Inês Maria e Dorival Filho. A família continua crescendo, agora enriquecida com a chegada de três netos.

Nosso homenageado estudou filosofia na Faculdade de Filosofia de Itabuna, concluindo o curso em 1969, sendo o orador da turma, como não podia deixar de ser. Posteriormente fez o curso de direito na Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna (FESPI), concluindo-o em 1978, e foi o orador da turma. Fez concursos para o Magistério Médio do Estado da Bahia, para Português em 1968, e Psicologia Geral em 1970, passando em 1o lugar nos dois concursos. Exerceu ainda os cargos de Diretor do Instituto Municipal de Educação, IME, Vice-diretor do Colégio Estadual de Ilhéus, diretor do Centro Integrado de Educação Rômulo Galvão, Gerente de Seleção e Orientação na UESC, chefe de Gabinete da Reitoria na UESC e diretor de Revisão da Editus, Editora da UESC.

Foi professor na Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC – de História da Filosofia, Antiga e Medieval e Metafísica e Professor de Direito Constitucional; foi titular de Cosmologia do Curso de Filosofia e professor de História da Filosofia no Instituto de Teologia de Ilhéus (ITI) É membro da Academia de Letras de Ilhéus, ocupando a cadeira n° 11. E eu gosto muito de dizer-lhe que, quando o ouço falar, o que fala parece música para o meu ouvido".

Texto escrito por Maria Luiza Heine, no blog Ilhéus com Amor, em 08/12/12
Veja o original clicando aqui 


quinta-feira, 23 de junho de 2016



Lançador de Fundo de Panela



                             Cyro de Mattos





Depois que fui ao cemitério e vi a cara da morte, no outro dia fiquei em casa. Não tinha vontade de sair para brincar com os amigos. Era tempo de férias de fim de ano, o sol de verão acendia todas as coisas lá fora, convidando os meninos para as brincadeiras costumeiras. Como jogar bola no campinho da beira-rio, roubar fruta madura nos quintais espalhados na cidade, pescar e tomar banho no rio.
Mas a cena daquela mulher passando a mão na cabeça do marido morto no caixão, lá no cemitério,  não saía de dentro de mim. O choro dela  permanecia nos meus ouvidos. Sentia que uma tristeza tomava conta de mim como nunca havia acontecido, impedindo que eu fosse brincar com os amigos lá fora  na manhã ensolarada. 
 Minha mãe perguntou  o que era que estava se passando comigo, pois em qualquer dia das férias eu não costumava ficar dentro de casa. Andava pelo mundo com o punhado de amigos queridos, divertindo-me nas aventuras que a vida oferecia na manhã pura com o céu de nuvens como flocos de algodão. Respondia que não estava acontecendo nada, apenas tinha amanhecido sem querer ir brincar com os amigos, com um enjôo diferente  na barriga,  que me tirava  até a vontade de fazer a refeição da manhã. Aquilo ia passar logo.
Com a falta de apetite, mal cheguei a tomar a xícara de café com leite e comer uma pequena fatia do requeijão. Deixei de lado o pãozinho quente, a batata doce cozida, nem quis ver  o bolo de aipim, iguaria que mais gostava. Não dispensava esse tipo de bolo quando mamãe de vez em quando fazia para acompanhar a refeição matinal.
Fiquei em casa mais dois dias, sem coragem para andar solto na vida lá fora, sob o sol do verão. Tinha nojo de tudo. Dava vontade de vomitar. Apressado ia até o banheiro. Metia o dedo na garganta, vomitava, mas  não conseguia tirar aquela coisa visguenta  que só incomodava lá dentro de mim.  Tentava afastar para longe aquela sensação misturada com   terra e defunto  deixada pela morte,  desde que visitei o cemitério pela primeira vez para ver uma pessoa ser enterrada.
Escutei minha mãe  dizer na cozinha para a empregada que aquela falta de apetite e nojo das coisas que eu estava tendo era por causa das lombrigas que deviam estar comendo minhas tripas. Já estava na hora de eu tomar o remédio de óleo de rícino para botar as lombrigas para fora da barriga. Aí  fiquei alarmado, senti que não podia ficar mais em casa dando a entender à minha mãe que minha falta de apetite era por causa das lombrigas na barriga. Tratei logo de arranjar disposição para ir brincar com os amigos em qualquer canto da cidade.
Então, no terceiro dia depois que tinha conhecido o cemitério e visto  o homem ser enterrado, saí de manso lá de casa,  sem que a mãe percebesse. Fui  encontrar com os amigos na Praça Camacã, onde havia o campinho de futebol junto a uma das margens do rio. Como sempre fui de  calção de mescla azul, , camisa aberta no peito, pé no chão. Quando comecei a pisar o chão barrento da praça, desviando das poças de lama deixadas pela chuva que caiu à noite, vi por  fora da terra uma parte  do  fundo esmaltado  da panela, a outra estava enterrada. Apressado, peguei um pedaço de ferro que encontrei ali mesmo,  enfiei na terra, fazendo força para  desenterrar a outra parte do fundo da panela. Fiz tanta força, que parecia que eu ia romper alguma veia do pescoço. Fiz isso várias vezes. Até que enterrei o pedaço de ferro mais fundo e consegui  desenterrar o fundo da panela.
Tive  aquela alegria forte  quando finalmente desenterrei o fundo da panela, que nem lhe conto. Aí comecei a lançar o fundo da panela para o alto e acompanhar seu giro como se fosse um disco ligeiro atravessando as camadas transparentes  do ar,  brilhando na manhã de sol esplêndido.Várias vezes lancei  para o alto, tentando fazer com que o fundo da panela chegasse cada vez mais longe, como uma vez vi um menino fazer no areal deixado pela cheia do rio Cachoeira. O apelido do menino  era Bigodinho porque já estava começando a aparecer nele uma sombra no lábio superior, o que lhe dava um ar de orgulho. Ele gostava de dizer aos outros meninos que por causa daquele risco escuro  ali no lábio superior já estava ficando homem. Claro que ele era maior do que eu. Mas tinha confiança em mim. Embora menor do que ele,  aquela brincadeira de lançar fundo de panela para o alto também sabia fazer. Era só aparecer  a primeira oportunidade.
Esperava que daquela vez o fundo da panela fosse  subir mais alto. Quando o lancei como um disco bem  para  o alto, com todas as forças que pude reunir, mal tive tempo de olhar ele atravessar célere o espaço de cima, brilhando como um espelho na manhã com seus raios de sol que flechavam a terra. Voltou mais célere ainda do que quando foi lançado e desceu como se quisesse me atingir. Tudo foi bem rápido. Senti o corpo balançar quando ele me atingiu na testa. O sangue desceu pelo rosto,  cambaleei e caí. Botei a boca no mundo, chamando por minha mãe. Não conseguia me levantar. Rolava na terra úmida. Gritava que não queria morrer.  
            Soube depois que seu Isaías, que tinha uma oficina para consertar bicicleta no beco perto da padaria,  foi quem me levou nos seus braços cabeludos para minha  casa. Quando acordei, escutei a empregada dizer que cheguei desmaiado, a cara toda melada de sangue. Minha mãe  prometeu que se eu escapasse daquela, ia  fazer uma promessa para São Francisco.
Felizmente não era daquela vez que ia morrer. Ainda meio tonto, abri os olhos com dificuldade e vi o médico limpando com o algodão embebido no iodo  o sangue que escorria do talho na testa. Deu doze pontos para fechar o talho na testa. Cobriu-o depois com gaze e esparadrapo. Aplicou-me uma injeção oleosa para combater o tétano. Senti uma dor terrível quando o líquido da injeção  penetrou minhas carnes, mas daquela vez não chorei, não urinei nem borrei as calças.
           Prometi à minha mãe que nunca mais ia jogar fundo de panela para o alto, só porque queria fazer o mesmo  que menino maior do que eu sabia fazer. Pedi que ela não fizesse a promessa a São Francisco porque tinha sido salvo pelo santo, como ela acreditava. Não queria  vestir aquela roupa igual a de um frade franciscano, parecendo mais um vestido folgado  de mulher. O cordão grosso amarrado em volta da barriga, crucifixo grande de madeira no peito,  pendendo na corrente. Vestido nesse traje, sabia que  os amigos iam ficar mangando de mim.








terça-feira, 14 de junho de 2016






Discurso de posse de ALAOR BARBOSA na Cadeira 29 da ACADEMIA BRASILIENSE DE LETRAS, na sede da Associação Nacional de Escritores (A.N.E.), em Brasília, Distrito Federal, no dia 23 de maio de 2016, às 20 horas.  

Minhas Senhoras. 
Meus Senhores. 

Já contei esta história. Não bem história, e sim uma pequena experiência, que, no remoto ano de 1948, na minha cidadezinha natal, Morrinhos, no Sul de Goiás, se repetia com alguma frequência. Eu tinha então oito anos de idade e era aluno do segundo ano do curso primário no Grupo Escolar Coronel Pedro Nunes – o único na cidade. Na sala de aulas, existia um mapa do Brasil, mais ou menos comprido, pendurado à parede, ao lado do quadro-negro, um pouco acima de meia altura. Eu gostava de olhar, com atenção, no mapa. (Nasceu então, com certeza, meu hábito de ler mapas, que me tem proporcionado a agradável sensação e confortante percepção de que sei bem onde se situam os diversos lugares do mundo.) Desde a primeira vez que me postei diante dele, eu reparava em um quadradinho colocado entre os limites do Estado de Goiás, com estas palavras dentro: FUTURA CAPITAL FEDERAL. Eu via aquela mensagem, e me enchia de esperança, um tanto prejudicada pela dúvida: Será que um dia mudam mesmo a capital do Brasil pra cá pra Goiás? Apesar da minha idade bastante tenra, eu já sabia bem o que é capital: uma cidade mais importante e principal, onde fica o governo. Ali em Morrinhos falava-se muito na nova capital de Goiás, Goiânia, uma cidade muito nova construída mesmo para ser a capital do nosso Estado de Goiás e que eu conhecera de passagem três anos antes (em julho de 1945) em uma viagem, com toda a família – meu pai, minha mãe e dois irmãos – à cidade de Trindade, aonde fomos por causa da Festa do Divino. Meu pai sempre se referia a Goiânia não pelo nome, mas pela condição de “nova capital”. Goiânia ocupava e excitava a minha imaginação também como cidade muito desenvolvida, moderna e propícia para gente jovem estudar, pois lá estudava, desde 1947, meu irmão Geraldo. Quem quisesse se desenvolver tinha de ir morar em Goiânia. 
O multifacético pioneirismo concretizado em Goiânia depressa assumiu também, é preciso lembrar, uma certa liderança no movimento de luta em favor da mudança da Capital Federal. Coerentes com esse fato, e com a tradição dos goianos de participarem desse movimento, foram dois parlamentares goianos, Diógenes Magalhães (nascido em Alagoas) e Guilherme Xavier de Almeida (este, natural de Morrinhos), que conseguiram inserir no texto da Constituição de 1946 a norma que previa e ordenou a mudança. É preciso registrar também que existia em Goiânia, se não me engano desde 1947, uma rádio de poderoso alcance, a Rádio Brasil Central, fundada pelo governador Coimbra Bueno, cujo lema era mais ou menos este: “Uma emissora da Fundação Coimbra Bueno dedicada à defesa da mudança da capital do Brasil”.  
A futura capital federal precisava de nome, e eu entrei a ver o nome Brasília, que me agradava muito, referido de vez em quando, uns quatro ou cinco anos depois daquela época em que eu estudava no Grupo de Morrinhos. Acho que a primeira vez foi em 1952 ou 1953, em um encarte denominado Ingra, em formato tabloide, do Correio da Manhã, um dos mais importantes jornais do Rio (que meu pai assinava mais para obter papel de embrulho na sua venda). As duas ou quatro páginas centrais do suplemento Ingra eram dedicadas à defesa da causa da mudança da capital federal para o Planalto Central. Quem as editava era uma jornalista goiana residente havia muitos anos no Rio de Janeiro, Dayse Porto (que eu vim a conhecer em 1956, na Associação Goiana do Rio, e de quem me tornei, posso dizer, amigo). 
Tudo o que se referisse à mudança da capital federal me interessava muito. Esse era um assunto que raro aparecia na imprensa do País. Mas, iniciado o governo do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, em janeiro de 1956, passou a existir uma certa expectativa de que ele cumpriria a promessa, feita em Jataí, de mudar a Capital Federal.  E eis que, de repente, em setembro ou outubro de 1956, saiu, em manchete da primeira página do jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, a notícia de que Juscelino Kubitschek decidira tomar efetivas providências e medidas para construir Brasília e transferir a Capital Federal para o Planalto Central. Se não me engano, uma dessas medidas foi o envio, ao Congresso Nacional, de um projeto de lei, assinado na cidade de Anápolis, em Goiás, para a constituição da empresa construtora, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital, NOVACAP. Eu já morava no Rio, para onde me transferira também em janeiro daquele ano, a fim de estudar. Ainda caminhando em direção ao apartamento onde morava, na rua Corrêa Dutra, no Flamengo, decidi escrever uma crônica sobre o que significava para Goiás e o Brasil aquela mudança que eu considerava profundamente transformadora. Incontinenti a redigi e despachei, pelo correio, para o meu irmão Eurico, em Goiânia, para que ele a publicasse no semanário Jornal de Notícias, do deputado Alfredo Nasser, no qual Eurico colaborava. A crônica foi publicada poucos dias depois, mas eu só soube disso bem mais tarde.   
E o Presidente Juscelino entrou a trabalhar, com rapidez e inaudita eficiência, para realizar aquela que se tornou logo a principal, a mais importante, a mais emblemática de todas as suas metas. Juscelino tinha pressa, pois julgava que a mudança não se consumaria senão se feita por ele mesmo. Eu acompanhei, muito atento a tudo o que acontecia, a marcha da construção. A cada acontecimento positivo naquela história épica, eu vibrava de entusiasmo. Na Revista Goiana, que ajudei a ressuscitar na Associação Goiana, no Rio, em 1958, publicamos, na capa bastante colorida, uma belíssima fotografia do Palácio da Alvorada, já pronto, ou quase pronto. E uma das matérias principais daquela edição tinha por objeto a construção de Brasília: um texto poético elaborado pelo jornalista José Asmar, um jornalista goiano muito talentoso residente também no Rio havia muitos anos e que trabalhava no jornal O Globo.  Convém observar que os jornais mais importantes do Rio quase não falavam do assunto Brasília.
E a mudança se consumou. O que era coisa imaginária virou realidade concreta – e se existe realidade a que se ajuste bem o adjetivo concreta, essa é naturalmente a nossa cidade de Brasília. 
O ficcionista que tenho sido há muito tempo mora dentro dessa realidade concreta há trinta e dois anos.  Uma experiência riquíssima. Sou um deslumbrado com Brasília. O meu alumbramento se renova e repete a cada manhã, quando saio do meu apartamento e caminho através das superquadras residenciais da Asa Sul, depois de, por dez anos, havê-lo feito na Asa Norte. Um prazer imenso, caminhar entre tantas árvores bonitas da minha terra goiana, experimentando, com frequência, uma singularidade brasiliense: muitos dos caminhantes se cumprimentam uns aos outros, com bom-dia, boa-tarde, boa-noite. O prazer de contemplar continua quando me desloco através das amplas avenidas do Plano Piloto, e reparo, com muita atenção, quase como se os visse pela primeira vez, nos panoramas das sucessivas quadras e blocos sempre novos e surpreendentes nos seus ângulos e matizes ricos em cambiantes notavelmente bonitos e vejo, lá em cima, o espetáculo alumbrador do céu azul e límpido, que, conforme sabemos, se constitui, já faz algum tempo, em um dos orgulhos do povo de Brasília. 
Cidade que, por ser em si mesma uma portentosa obra de arte, e que, singularmente propícia à criação intelectual e artística, fez-se rapidamente, já nos seus primórdios, um extraordinário e fecundíssimo ambiente e viveiro de artistas de todas as artes, Brasília me ajudou muito a construir, durante este tempo em que aqui tenho vivido, a parte mais significativa da minha obra literária de ficcionista, que é, para mim, convém declarar, aquela que verdadeiramente importa. A concretitude e onipresença da beleza desta urbe tão original, que concretizou e que documenta a criatividade do gênio brasileiro, e que, enquanto obra mormente humana, é também uma Cidade Maravilhosa, fecundou minha criatividade, me proporcionando condições favoráveis a recompor meus contos já prontos, a escrever outros tantos e a construir os meus romances, que antes de Brasília receava muito não ser capaz de realizar.  
E hoje, agora, neste momento, assinalo e registro, com muita e natural emoção, este fato para mim extraordinário: aquele menino que em uma pequena cidade do interior de Goiás, sessenta e oito anos atrás, se perguntava se algum dia a capital federal viria mesmo pra Goiás, aquele menino está hoje adentrando e sendo generosamente recebido nada menos que na Academia Brasiliense de Letras, uma entidade representativa do escol da inteligência, da cultura, do espírito, da criatividade do povo que habita esta cidade tão fecunda e fecundante. Um acontecimento para mim grandioso, memorável, marcante, por tudo o que evidentemente significa em si e para mim em particular, inclusive o reconhecimento, de que todo homem necessita. E que se soma aos  outros atos de reconhecimento, a mim generosamente proporcionado poucos anos atrás por duas outras entidades culturais de Brasília igualmente importantes: o Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e a Academia de Letras do Brasil, que também me fizeram seu membro efetivo. Vou parafrasear o grande mestre que foi Machado de Assis, dizendo que o reconhecimento, sinônimo de solidariedade e apoio, fortalece e estimula, além de ser o que “eleva, honra e consola”. 
Devo dizer que o reconhecimento que hoje se realiza em meu favor, nesta cidade, vem somar-se também ao extenso rol de ações de igual significação reconfortante que me foram proporcionadas também na terra onde nasci: em Goiás, me tornei membro da Academia, por eleição unânime, há exatos trinta e sete anos.
Preciso falar agora do patrono da cadeira, a de número 29, que venho assumir hoje na Academia Brasiliense de Letras. Confesso que, ao ouvir a sugestão, feita por esse fraterno amigo que é José Jerônimo Rivera, no dia da sua eleição para esta Academia, de pleitear também eu uma cadeira nela – sugestão logo reforçada pelo apoio espontâneo de outros amigos a quem devia e devo extrema consideração, dentre os quais tenho o dever de salientar Fábio de Sousa Coutinho e Anderson Braga Horta – muito influiu, na minha decisão de a aceitar, esse fato de ser a cadeira, que eu poderia vir a ocupar, patroneada por esse escritor extraordinário que se chamou Hugo de Carvalho Ramos, o qual, ainda na puberdade, na adolescência e na juventude, produziu um valoroso livro de histórias – intitulado Tropas e boiadas – e que, pouco depois de o publicar, decidiu, dramaticamente, ausentar-se deste mundo por suas próprias mãos, aos vinte e seis anos de idade. 
Falemos dele, mas com a brevidade que a circunstância impõe. 
Hugo de Carvalho Ramos nasceu em 21 de maio de 1895 na Cidade de Goiás, um pequeno burgo decaído de sua antiga grandeza de centro de produção de ouro, mas riquíssimo em cultura, em fecundas tradições, em valores humanos de extraordinária importância, e que ainda cumpria o papel de Capital do Estado.  Ele formou o seu espírito lá mesmo em Goiás, nas escolas, na convivência com meninos e rapazes da sua geração, e em andanças através das zonas rurais com o seu pai, Manoel Lopes de Carvalho Ramos, um baiano de estirpe literária que, formado em Direito na tradicional Faculdade de Recife, se transferira para a longínqua província de Goiás a fim de exercer o cargo de Promotor na comarca de Torres do Rio Bonito, atual Caiapônia, na zona centro-oeste da província. Era poeta, esse Manoel Lopes de Carvalho Ramos. A principal produção do seu estro foi o poema épico Goyania, que conta em versos camonianos a história do descobrimento de Goiás pelo bandeirante paulista Bartolomeu Bueno da Silva, o primeiro Anhanguera, no último quartel do século XVII. O longo poema – que anos mais tarde forneceu o nome da nova capital do estado – foi editado em livro, em Portugal, em 1896, e trazido para Goiás em longas viagens de navio: um que veio de Lisboa a Belém do Pará e outro, que subiu os rios Tocantins e Araguaia  até alcançar o porto de Leopoldina, no rio Araguaia. Desse lugarejo, hoje cidade de Aruanã, o livro foi transportado para a cidade de Goiás, é fácil presumir que em carro de bois ou em alguma tropa que costumava fazer o trajeto Leopoldina – Goiás.   
Com dezessete anos de idade, em 1912, após os estudos fundamentais e os médios, Hugo se transferiu para o Rio de Janeiro. Enquanto fazia, com um talento intelectual notado por  alguns colegas, mas sem bastante empenho, o curso de Direito, ele se empenhou na sua atividade literária escrevendo contos e poesias. 
Aos vinte e um anos de idade, em fevereiro de 1917, publicou o seu primeiro e único livro de ficção, Tropas e boiadas, cujas histórias revelam a sua profunda identificação com a terra em que nascera. Dos catorze contos e do romance Gente da gleba, que o integram na edição definitiva preparada por seu irmão mais velho, Víctor de Carvalho Ramos, nenhum discrepa dessa identificação telúrica – uma tendência literária, aliás, predominante na época. Tropas e boiadas participa do conjunto de livros configuradores de uma literatura regionalista que então se desenvolvia no Brasil, e que se representa muito clara nos extraordinários romances do baiano Afrânio Peixoto e nos belíssimos contos do gaúcho Simões Lopes Neto, em continuação da literatura muito bem produzida pelo cearense José de Alencar, o mineiro Bernardo Guimarães, o fluminense Visconde de Taunay, o maranhense Aluízio Azevedo, o pernambucano Franklin Távora, o maranhense Coelho Neto, o mineiro Afonso Arinos, o paulista Valdomiro Silveira, o paraense Inglês de Souza, o cearense Oliveira Paiva, o baiano que viveu em Goiás, Crispiniano Tavares, o maranhense Graça Aranha, e, pode ser incluído, o fluminense Euclides da Cunha, e que prosseguiria, em parte, nos contos do paulista Monteiro Lobato e nos contos e romances do fluminense Adelino Magalhães. Há quem vincule o livro do nosso autor goiano diretamente ao belíssimo livro de contos Pelo sertão, de Afonso Arinos, o grande filho de Paracatu, município confinante com terras goianas deste nosso Planalto Central.  
É bom esclarecer que Hugo de Carvalho Ramos, apesar de sua condição de precursor e pioneiro no conto regionalista brasileiro, não foi o inaugurador do conto regionalista em Goiás. Antes dele, houve o valoroso escritor baiano, que acabei de citar, Crispiniano Tavares, o qual viveu em Goiás na zona sudoeste – na cidade de Rio Verde – e publicou, em Uberaba, um importante livro de contos, intitulado Contos, fábulas e folclore. Também em 1910, ano em que parece ter sido publicado o conto O saci, de Hugo de Carvalho Ramos, que não tinha mais do que quinze anos de idade, saiu, no Anuário Histórico, Geográfico e Descritivo do Estado de Goyaz para o ano de 1910, do Professor Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, um conto, intitulado Tragédia na roça, de autoria de uma jovem (com vinte e um anos de idade) autora da Cidade de Goiás, Cora Coralina, que muito tempo depois, a partir do ano de 1965, se tornaria bastante conhecida em quase todo o Brasil, principalmente por causa da sua produção poética. 
Vou transcrever o segundo parágrafo do primeiro conto deTropas e boiadas, “Caminho das tropas”, para dar uma pequena amostra do estilo e linguagem das narrativas de Hugo: 
O Joaquim Culatreiro, atravessando sem parar o piraí na faixa encarnada da cinta, entre a “espera” da garrucha e a niquelaria da franqueira, desatou com presteza as bridas das cabresteiras, foi prendendo às estacas a mulada, e afrouxou os cambitos, deitando abaixo arrochos e ligais, enquanto um camarada serviçal dava a mão de ajuda na descarga dos surrões.”
Esse vocabulário bem marcado e o ritmo cadenciado e vigoroso constituem a tessitura e as principais características da linguagem e estilo e Hugo de Carvalho Ramos em todas as suas narrativas, que retratam com fidelidade o meio rural e o das pequenas comunidades sertanejas da terra goiana. Nelas se verifica ter ele pagado o preço da sua juventude, com algumas passagens o seu tanto imaturas e aqui e ali açamoucadas, com lapsos e impropriedades, mas sem prejuízo do notável e sempre presente vigor narrativo e de um extraordinário senso das proporções. Cada história possui a extensão necessária. Isso se verifica não apenas nos contos, mas também no pequeno romance, ou novela, como se queira, Gente da gleba, que é certamente uma pequena obra-prima na linguagem e estrutura e pela originalidade temática. Gente da glebaconstitui talvez a primeira narrativa brasileira que apresenta o drama do trabalhador rural brasileiro, e, note-se, com uma veracidade quase documental, que não se encontra na nossa literatura senão nos romances posteriores a 1930: nela se verificam as duras e perversas relações de dominação e injustiça existentes entre os donos da terra e os homens que nela trabalhavam. Um extraordinário exemplo é a cena da castração que o latifundiário – sempre chamado apenas de Coronel – executa no pobre e indefeso rapaz que ousara defender contra ele a posse exclusiva de uma bela mulata do arraial de Curralinho. É bem sabido em Goiás que essas situações ocorriam na realidade no duro mundo da vida rural.  
Ao construir as suas narrativas, Hugo de Carvalho Ramos exercitou, é fácil observar, a forte influência do estilo da prosa da época, construído, com muita densidade, principalmente por Coelho Neto e Euclides da Cunha, dois autores que Hugo de Carvalho Ramos leu muito e certamente absorveu com intensidade de uma certa época em diante, conforme nos conta Víctor de Carvalho Ramos no rico perfil biográfico que escreveu sobre o irmão mais novo. De Coelho Neto recebeu ele muito do estilo, a técnica de narrar, o gosto da minúcia. De Euclides, a visão sociológica, que se mostra em algumas passagens que parecem inserções estranhas em um texto de narrativa ficcional. Uma delas, julgo necessário transcrever, apesar de um tanto longa: 
Geralmente, o empregado na lavoura ou simples trabalho de campo e criação, ganha no máximo quinze mil-reis ao mês. Quando tem longa prática no traquejo e é homem de confiança, chega a perceber vinte, quantia já considerada exorbitante na maioria dos casos. É essa a soma irrisória que deve prover às suas necessidades. Gasta-a em poucos dias. Principia então a tomar emprestado ao senhor. Dá-lhe este cinco hoje, dez amanhã, certo de que cada mil-reis que adianta, é mais um elo acrescentado à cadeia que prende o jornaleiro ao seu serviço. Isso, no começo do trato; com o tempo, a dívida avoluma-se, chega a proporções exageradas, resultando para o infeliz não poder nunca saldá-la e torna-se assim completamente alienado da vontade própria. Perde o crédito na venda próxima, não faz o mínimo negócio sem pleno consentimento do patrão, que já não lhe adianta mais dinheiro. É escravo da sua dívida, que, no sertão, constitui hoje em dia uma das curiosas modalidades do antigo cativeiro. Quando muito, querendo dalgum modo mudar de condição, pede a conta ao senhor, que fica no livre arbítrio de lha dar, e sai à procura dum novo patrão que queira resgatá-lo ao antigo, tomando-o ao seu serviço. Passa assim de mão em mão, devendo em média de quinhentos a um conto e mais, maltratado aqui por uns de coração empedernido, ali mais ou menos aliviado dos maus tratos, mas sempre sujeito ao ajuste, de que só se livra, comumente, quando chega a morte. 
Não posso deixar de apresentar mais uma pequena amostra da linguagem e estilo de Hugo de Carvalho Ramos, transcrevendo um pequeno trecho de Gente da gleba: 
A madrugada amiudava. Já as barras vinham quebrando e no cabeço dum serro, mui branca e tremeluzente, a estrela-d’alva minguara o seu clarão lacrimejante, anunciando o romper do dia. 
Rédeas encurtadas, a niquelaria da cabeçada retinindo festivamente, Benedito deu entrada no arraial no trote picado da mula, que frechou direita ao rancho dos tropeiros.
Finalmente, devemos lamentar que Hugo de Carvalho Ramos venha caindo no esquecimento, tal como tem acontecido a um grande número de escritores brasileiros, não só da sua época. Seu livro Tropas e boiadas nunca mais foi republicado, depois que mereceu uma bela edição, a quinta e última, em 1965, com um valioso estudo introdutório elaborado por Manoel Cavalcanti Proença. O mesmo se diga do volume das suas Obras Completas, editado bem antes da quinta edição de Tropas e boiadas, calculo que na década de 1950, o qual incluiu, naturalmente, a sua produção poética, a qual, ao meu ver, não é de modo algum despicienda. Convém apresentar uma pequena amostra dessa produção: o poema “Sonho desfeito”, incluído por Veiga Netto na sua preciosíssima “Antologia Goiana”, editada em Goiânia no ano de 1944, com a informação de ter sido “Encontrado entre as páginas de um livro no Gabinete Literário Goiano”:
 
E, contudo, também eu trouxe para a vida
Uma grande expressão de calma e de harmonia,
Que a tristeza do mundo aos poucos asfixia 
Dentro dalma a sangrar pela dor mal-ferida. 

Era um hino de paz, na apoteose do dia,
Erguendo para o céu campanários de ermida
Onde fosse rezar a prece mais sentida
O devoto de amor que dentro em mim jazia.

Mas depressa rasgou-se o hinário da esperança,
As páginas, então, dispersaram-se ao vento
E do passado esplendor já não há mais lembrança. 

Ficaram para sempre enterrados no peito, 
Ecos, sumida voz, que exalo num lamento
Ossuário de ilusões do meu sonho desfeito...

Julgo-me no dever também de falar do primeiro ocupante desta Cadeira 29, o ilustre biógrafo e historiador baiano Luiz Viana Filho. 
Nasceu ele, acidentalmente, em Paris, na França, em 28 de março de 1908, e faleceu na cidade de São Paulo, em 5 de junho de 1990.  Político desde jovem, participou das assembleias nacionais constituintes de 1934 e de 1946, foi governador da Bahia de 1967 a 1971, ministro de Estado, senador da República, membro da Academia da Academia de Letras da Bahia, da Academia Brasileira de Letras e desta Academia Brasiliense de Letras. São consideradas clássicas as suas biografias de Rio Branco, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Machado de Assis, José de Alencar e Eça de Queiroz.  
No seu discurso de posse na Academia Brasiliense de Letras, ocorrida em 3 de dezembro  de 1982, Luiz Viana Filho focalizou a personalidade literária do patrono, Hugo de Carvalho Ramos,  apresentando um  bom perfil biográfico,  do qual constam reveladoras citações de cartas que Hugo remeteu a uma irmã, e um paciente levantamento da surpreendente fortuna crítica, unanimemente positiva, que alcançou o livro Tropas e boiadas. Vou transcrever um pequeno trecho do discurso de Luiz Viana Filho: “Não nos estenderemos sobre as apreciações com que a crítica recebeu Tropas e boiadas. Mas, não podemos silenciar haver Viriato Correa lido três vezes o livro, tanto este o empolgou. E Jackson de Figueiredo afirmou cheio de entusiasmo: ‘Digo sem medo de errar que, dos escritores da nova geração, nenhum se apresenta assim, à entrada da vida literária, com tantas e tão formosas qualidades artísticas, tão segura técnica de um gênero difícil ou, pelo menos, raramente cultivado entre nós.’ Ao mesmo tempo em que, para o irreverente Antônio Torres, ‘Mágoa de Vaqueiro’ é quase uma pequena obra-prima”. 
É preciso – digo eu – ousar corrigir o severo Antônio Torres, afirmando que “Mágoa de vaqueiro”, pungente drama de um sertanejo que morre de paixão por ter sua filha fugido com o namorado,  é, sim, uma perfeita obra-prima – e não é a única em Tropas e boiadas. Também se pode assim classificar ao menos mais três das narrativas curtas: “O saci”, “A alma das aves” e “Ninho de periquitos”, e o romance Gente da gleba. 
Também o meu antecessor imediato, Kurt Pessek, ao se empossar nesta Casa, no dia 25 de setembro de 1991, na condição de sucessor de Luiz Viana Filho nesta Cadeira 29, se referiu a Hugo de Carvalho Ramos, com concisão mas com bastante justiça. Disse Kurt Pessek que Hugo de Carvalho Ramos “surge vulcânico, a arrostar a crítica, a se impor. Firme e engenhoso,  faz nascer criaturas que parecem respirar”. E arremata: “Sentar na cadeira de Carvalho Ramos dignifica qualquer um”. 
Falando de Kurt Pessek,  devo informar que nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1934, e faleceu em Brasília, em 2013. Seguiu a carreira militar, ingressando no Exército, no qual alcançou o posto de coronel. Atuou também na Aeronáutica. Participou do governo federal, na presidência do General Ernesto Geisel. Foi também jornalista, tendo dirigido o jornalÚltima Hora em Brasília. De sua atuação política é justo e necessário salientar que prestou valiosa contribuição ao processo de redemocratização do Brasil, ao participar, em 1984 e 1985, da campanha eleitoral do governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, candidato a Presidente da República, e que, eleito pelo Colégio Eleitoral, faleceu antes de tomar posse do cargo. 
Pessek escreveu vários livros, entre os quais se salientam:Espada, Terço e Trabuco, Os patriotas e Os descaminhos da Liberdade, ambos os três de ficção histórica.  O primeiro, no dizer de Cassiano Nunes, “descreve as primeiras décadas do século XIX no Ceará, as lutas entre os Melos e os Mourões e personagens ligadas à Igreja e ao Exército. Informa mais Cassiano Nunes: “O volume, baseado em documentos fidedignos, demonstra que a grande luta, no Brasil, foi sempre a luta pela posse da terra, pela grande propriedade, problema que continua atual no sertão, no campo. A obra, com serenidade e imparcialidade, demonstra também que a nossa história real – não a oficial, versão rósea dos fatos – está marcada pela violência e pela crueldade”. Os patriotasreconstitui um breve momento – entre o início de outubro e o decurso de dezembro de 1711– da história do Brasil: o episódio de uma quase revolta popular contra a Coroa Portuguesa. Os patriotas, premiado em 1984 pela Fundação Cultural do Distrito Federal, foi editado em 1985. Os Descaminhos da Liberdade é um romance que reconstitui a chamada Inconfidência (que sempre prefiro chamar de Conjuração) Mineira.  
O trabalho literário que certamente assegura a Kurt Pessek segura permanência no concerto dos autores brasileiros é oDicionário de Palavras Interligadas, Analógico e Ideias Afins, editado, em Brasília, em 2010. Obra de extraordinário fôlego, contém 809.075 verbetes, muitos deles definidos e exemplificados de modo muito minucioso, em mais de uma página. Esse livro exigiu do autor mais de quarenta anos de pesquisas e mais de trinta anos de trabalho na fase da escrita. Para escrevê-lo, recorreu a sessenta e oito obras de outros autores. Que eu saiba, antes desse dicionário de Kurt Pessek só apareceram, no Brasil, dois outros da mesma natureza: o primeiro, intitulado Dicionário Analógico da Língua Portuguesa (Ideias Afins), de autoria de um professor secundário da Cidade de Goiás, Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, e que, embora elaborado ainda no início do século passado, somente veio a ser  editado após a morte do autor,  já na década de 1940; e o outro, denominado Dicionário Analógico (Tesouro de vocábulos e frases da língua portuguesa), escrito pelo sacerdote jesuíta Carlos Spitzer, alemão criado, a partir dos cinco anos de idade, em Porto Alegre, onde foi professor – lente catedrático –, no Colégio Anchieta, e que faleceu com apenas trinta e nove anos de idade, em 1922. Seu dicionário foi editado também postumamente, em 1936, em Porto Alegre. 
Tive a satisfação e privilégio de conhecer Kurt Pessek em pessoa, em um encontro único, ocorrido em um almoço do Clube dos 21 Irmãos Amigos, nesta Capital, a que fui generosamente convidado pelo meu saudoso amigo Dario Abranches Viotti, valoroso escritor e jurista mineiro-paulista de quem tive a honra de ser colega de trabalho na Consultoria Legislativa do Senado Federal. Durante o almoço, realizado, calculo que em 2002, ou 2003, no restaurante do Clube de Golfe de Brasília, sentei-me à mesa ao lado de Kurt Pessek. E conversamos. Ele se revelou um conversador inteligente, culto, agradável, generoso. Eu ainda não sabia, então, que ele escrevia. Depois é que o soube, presumo que por informação de Dario Viotti. 
Possuo também de Kurt Pessek uma palestra, de cunho filosófico, gravada em um documento audiovisual, sobre o temaVida, que ele pronunciou em 2008 no mesmo Clube dos 21 Irmãos Amigos, e que me foi gentilmente proporcionado, junto a um exemplar do romance Os patriotas, pela sua viúva, Neuza Pessek, a quem devo, mais uma vez, agradecer, desta vez de público, por suas bondosas atenções.   
Kurt Pessek ingressou nesta Academia no dia 25 de setembro de 1991, tendo sido saudado pelo professor, ensaísta e poeta Cassiano Nunes, um paulista de São Vicente que escolheu Brasília para viver a parte mais madura e a derradeira da sua vida. Devo transcrever, do discurso de Cassiano Nunes, estas palavras: “Senhor Kurt Pessek! Vós chegastes ao vosso lugar! Aprestai-vos para as campanhas incruentas do intelecto, para o mutirão em que o espírito nacional já está transformando o presente em futuro! Brasília é o lugar ideal para concretizar esse sonho de missão intelectual”. 
Do discurso de posse de Kurt Pessek, considero relevante apresentar um expressivo trecho: “Meus senhores e minhas senhoras, sou a dizer-lhes, em nome da gratidão, que apesar de ter escrito por anos a eito para outros, minha verdadeira oportunidade surgiu na querida Fortaleza, pela mão do Presidente da Academia Cearense de Letras, Cláudio Martins. A ele, e só a ele, devo a publicação do meu livro Espada, Terço e Trabuco, no qual tento mostrar a atuação das três grandes forças que formavam o Brasil monárquico. 
“Há mister encerrar o discurso. Se sou com os confrades desta Casa de cultura, sou por galhardia de seus notáveis membros. Saibam ter sido esta a maior venera que a vida me ofereceu”. 
Mais adiante, depois de informar: “Procurei exaustivamente no regionalismo brasileiro o exemplo de fé capaz de dizer o quanto me vai n’alma”, declarou Kurt Pessek: “Ainda no regionalismo, uso do verso que encontrei no livro Mil Quadras Populares Brasileiras, Carlos de Góes (1916). Serve-me bem de encerro:

Eu vou dar a despedida 
Como deu o São José
Foi saindo, foi dizendo
Té amanhã, se Deus quisé.


Concluo, enfatizando minha gratidão muito profunda a todos os membros da Academia Brasiliense de Letras que tiveram a bondade de sufragar meu nome para compor este sodalício que tanto honra e valoriza a vida cultural de Brasília e do Brasil. Preciso agradecer de modo bastante enfático o apoio, em que se mostrou infatigável, que me prestou o meu amigo Fábio de Sousa Coutinho. 

segunda-feira, 6 de junho de 2016








        O Grande Chefe       


             Cyro de Mattos




 Cada menino tinha um apelido na turma Havia Gasolina, Peito de Pombo, Vigário, Piroca, Lorota, Balaio, Porroló, Alfinete, Catroca, Caneta, Fininho e Pixote. Cada um desses apelidos soava com o seu acento poético. Cada menino ficava como chefe da turma por uma semana ou um mês. Natural que fosse o escolhido aquele que se mostrasse mais corajoso e esperto para superar os desafios em cada aventura.
 As aventuras consistiam em roubar fruta madura nos quintais das casas espalhados na cidade, caçar passarinho com estilingue no jardim da Prefeitura ou nas roças próximas, pescar de rede no rio e jogar bola no campinho da beira-rio quando então se enfrentava times de meninos de outras ruas. Na verdade, as aventuras não passavam de brincadeiras alegres, nas quais ninguém queria deixar de participar. Nas aventuras havia uma regra a  que todos deviam obedecer até as últimas conseqüências: um por todos, todos por um. Quem não obedecesse estava fora da turma para sempre, considerado um imprestável, uma porqueira de amigo.
              Para se tornar chefe durante um mês era preciso vencer uma prova difícil.  Por exemplo, ficar andando mais tempo no muro do quintal da casa do delegado, sabendo que, se caísse no lado de lá, ia ser abocanhado pelo cachorro Nero, uma fera, quase do tamanho de uma onça. Outra prova era atravessar o rio a nado. Quem chegasse primeiro ao outro lado do rio seria eleito para chefiar a turma durante um mês.
            O chefe, entre outras coisas, ditava as aventuras de que a turma devia participar a cada dia. Roubar pedaço de carne charqueada pendurada no cavalete dos armazéns de portas largas, na rua do comércio, era uma das preferidas pela turma. O pedaço da carne charqueada devia ser cortado com canivete, e rápido. Depois era repartido entre os que participassem da aventura. O chefe até podia ficar fora das aventuras, se quisesse, mas ganhava sempre o pedaço maior do bolo. Daí o interesse de cada um em querer ficar como chefe da turma durante um mês.
           Daquela vez o desafio a ser enfrentado para que fosse escolhido o chefe da turma durante um mês não era perigoso, mas nada agradável, não cheirava bem.  Ninguém sabia dizer direito de quem partiu a idéia. Era para ser provado numa colher de chá o gosto que tem a bosta da galinha. Isso mesmo, aquela pasta mole e repelente. Quem engolisse primeiro o petisco seria o vencedor e, claro, o chefe por um mês. Teve menino que torceu o nariz, mas topou encarar o desafio para não fazer feio. Havia um prazer especial em ser o chefe da turma durante trinta dias. Valia a pena superar qualquer obstáculo.
          A mãe de Piroca mantinha um criatório de galinhas poedeiras no quintal. No outro dia,  lá estava a turma no quintal da casa dele. Havia chegado o momento para enfrentar o desafio do que se tinha combinado. Ninguém teve coragem de olhar para aquela coisa que causava repulsa quando se pensava nela. O impasse criado pelo desafio da prova a ser encarado dava a entender que daquela vez a turma ia ficar sem chefe durante um mês. Ninguém se aventurava agora em provar a apetitosa iguaria. Tudo indicava aos pequenos corações que voltariam ao lugar comum pelo qual a chefia da turma seria exercida apenas por uma semana, com o chefe sendo escolhido pela maioria numa votação democrática. Bom adiantar que a situação de chefiar a turma por uma semana estava ficando sem graça, já que o escolhido para isso não gozava das regalias do chefe que comandava por um mês, como ficou dito.
           E, quando todos já tinham desistido de enfrentar aquele desafio tão difícil, não era nada agradável provar uma coisa que ia causar vômito quando fosse descendo  pela garganta, de repente surgiu uma voz  do meio da turma. Uma voz arrelienta,  bem conhecida de todos.
            - Eu topo – disse Pixote.
            Aí, sem hesitar, ele tirou do bolso a colher de chá e encheu com um bocadinho daquela pasta que a galinha pedrês de pescoço pelado havia acabado de soltar no canto do quintal. Engoliu o troço de uma só vez, sem fazer careta, não sentindo nada. Ninguém queria acreditar no que acabava de acontecer ali mesmo diante dos rostos sérios. Logo ele, o menor da turma, só fazia atrapalhar, era admitido nas aventuras porque era o dono da bola de couro, que ele emprestava para as peladas no campo esburacado da praça, que ficava em frente da cadeia. Logo Pixote, uma coisa insignificante, um graveto que ninguém dava qualquer crédito.
             Pixote nunca havia sido chefe da turma uma vez sequer, nem por um dia, quanto mais por um mês, e era o que mais desejava na vida. Reinaria agora por um mês, tendo o direito às regalias que só ao chefe pertenciam. Ele, Pixote, o grande chefe, como de peito estufado gostava de ouvir ser chamado quando começou a dar as ordens para que as tarefas fossem cumpridas pelos seus comandados.
Foi assim que Pixote tornou-se nosso grande chefe na turma de meninos que moravam na Rua do Quartel Velho. Durante um mês. Certos andam os mais velhos quando dizem que com menino esperto, corajoso e renitente até o cão mais feroz tem respeito, fugindo o mais rápido dele.













quinta-feira, 2 de junho de 2016