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segunda-feira, 25 de julho de 2016

    


      Pequena Antologia Poética  
                                            

               Cyro de Mattos
                                       
                                               
         Hebel Ediciones, de Santiago, Chile, oferecem ao público amante de boa poesia a antologia Según  Voy de Camino, do  poeta peruano-salmantino e Professor da Universidade de Salamanca, Espanha,  Alfredo Pérez Alencar,  contendo dez poemas de fácil compreensão, motivados por  vários assuntos. A antologia  assim com dez faces contribui para o conhecimento de  uma poesia que  tem como fundamento a vida. São instantes imaginativos do verso,  ora impregnados de encanto, ora entranhado de sabedoria e  verdade. A obra apresenta-se com tradução para quatro idiomas:  bengalês por Mainak Adak; grego por María Koutentaki; chinês por  Huaping Han, e para o  inglés por José Ben Kotel (com revisão de Gretchen Abernathy).
Emprestando mais uma vez a palavra ao sonho para iluminar o ser, o poeta peruano-espanhol  tem em  sua companhia, nesta oportunidade, o artista plástico cubano-espanhol   Luis Cabrera Hernández (La Habana, 1956),  professor da Escola  de Grabado e Desenho Gráfico da Real Casa da Moeda de  Madrid, dono de  um  currículo exemplar em que se registram inúmeras mostras individuais e exposições em importantes eventos internacionais.  Esta é a segunda vez que a parceria acontece para o bem da poesia, quando então o poeta da palavra e o artista do discurso no grafismo  dão as mãos para que a vida se torne viável.
         Essa pequena antologia do poeta peruano-salmantino, já traduzido em  mais de uma vintena de idiomas, reúne poemas  simples em sua expressão,  porém,  com uma riqueza de conteúdo que só os legítimos poetas possuem. Poesia é qualidade, perfeição na palavra eficiente e certeira, na ideia harmoniosa e dialética,  que diz do mundo à humanidade,  sem  banalizações e equívocos pueris. É forma de conhecimento da vida, que se apresenta  essencial  no mundo como  o  amanhecer.  É fruto do talento e da vocação, da sensibilidade e da  crença, condições sem as quais o poeta não sobrevive na matéria verbal executada  como o solitário gesto do ver. 
        É o que sentimos quando lemos um poeta de alto nível  como Alfredo Pérez Alencart, mesmo que isso aconteça em apenas dez poemas, como se dá agora.   Lendo esses dez poemas,  vemos como o conjunto ritmado de significações importantes encaixa-se  naquilo que os gregos preconizam quando afirmam  que quanto maior a extensão menor a compreensão e quanto menor a extensão maior a compreensão. 
Esses dez  poemas são suficientes para transmitir com densidade o encanto mesclado com  assombro que o menino teve  quando na infância vê pela primeira vez os vaga-lumes, lanterninhas de Deus acendendo e apagando seu mistério a quem vê.  Em similar visão, a capacidade de assombro e encantamento  estará com o poeta ao se deparar com o voo delicado  do colibri, no qual ele leu  “ en el gran cielo un mensaje hecho de miel y de ceniza”
“ Santo Ofício” é uma declaração de amor a Salamanca, onde o poeta foi acolhido, constituiu uma família digna e se tornou, por entre atividades importantes,  um disseminador de afetividades poéticas. Ressalte-se que ele organiza  o Encontro de Poetas Iberoamericanos, com êxito e repercussão internacional em sucessivas edições. O poeta peruano-espanhol  sempre guarda algum tesouro para os que por lá chegam, para que não manchem  a mesa que acolhe quando está a servir mãos alheias.
A poesia quer invenção da vida, não a opressão que anula, não  a humilhação  dos desvalidos na vergonha. Quer transmitir o bem, sem que seja panfletária e piegas, apesar da aparência enganosa da  simplicidade.  Nos poemas  “Humillación de la pobreza”, “‘Cartel”, “Mientras se derrumba Wall Street” e “Honestidad”, formula-se no verso apurado as  desigualdades muitas vezes engendradas  pelo sistema social organizado.  Esse protesto manso, de sabedoria  lendária, é uma das vertentes da  poesia de Alfredo Pérez Alencart. Vem de sua filiação confessa   ao amor  ofertado pelo Cristo, o bem-amado salvador da humanidade.
Por outro lado, três versos de um  dos  poemas referidos  anotam: «Ser honesto/ es la debilidad/ que te hace fuerte». Não hesito em afirmar que poucas vezes vi em tão enxuto versejar  o questionamento   com tanta intensidade da condição precária e contraditória na qual todos estamos inseridos. “Orfandad” é um  poema capaz  de identificar o leitor com sua orfandade em qualquer país que esteja. “Perder un padre es perder una luz que no tiene principio ni fin.”  Já “Vuelta a casa” traduz o quadro que fere o forasteiro como ser gregário em seu crítico ser-estar no mundo. 

 “Un perro olfateó mi ropa de forastero tras largo viaje. No es visión pasada. Ayer llegué a la entrada del pueblo, pero el perro no me deja pasar, aunque le muestre ternura o la foto del abuelo que era de aquí. Hundo las manos en esta tierra y luego me embosco entre las ramas del recuerdo.”
    
     Da leitura dos dez poemas de Según Voy de Camino, vemos na sua melhor e maior compreensão, em função da menor extensão do conjunto,  que a  poesia  estende-se com sentidos eternos  quando  elaborada com maestria para dizer da  beleza e da verdade.
       Tanto quanto a planta quando  se abre e brota  a flor.


quarta-feira, 20 de julho de 2016




Enquanto a Noite Durava


  
               Cyro de Mattos



   Deitava-me na cama com o rosto para o céu, antes de pegar no sono. Como se fosse um astronauta sonhando acordado,  percorria   o céu cintilante de estrelas .pela janela do quarto. Deus era muito poderoso, pensava. O fazendeiro mais rico aqui na terra podia  ser o dono de um sem-fim de fazendas,  mas não possuía uma estrela sequer das que Deus pregava no Seu telhado para brilhar na imensidão da noite. A professora informou na aula de geografia que era impossível saber o tamanho exato de cada estrela, todas elas estavam muito longe da gente. Havia cada uma que a terra comparada não passava de uma bola pequena. Existiam bilhões de estrelas espalhadas no sem-fim do céu, mas ninguém sabia a quantidade delas.
Uma brisa ligeira visitava meu rosto. Levantava da cama e ia  até a janela. Dali avistava  o alfaiate Mafrisio trabalhando na sua tenda, que ficava na subida da travessa. Era costume trabalhar até alta hora da noite na tenda iluminada à luz de lampião.  Cortava com a tesoura o pano que ele havia riscado em cima do balcão. De lá vinham vozes no rádio. Escutava  o locutor dizer que os soldados brasileiros da Segunda Guerra Mundial tinham desfilado mais uma vez na parada de Sete de Setembro, receberam muitos aplausos  quando passaram na avenida.
No quintal do vizinho, o vento  tocava música com seus dedos invisíveis nas palhas do coqueiro. As estrelas, todas elas iluminadas, desciam do céu para piscar em meus olhos,  tontos  de sono.  Uma noite tive um sonho  que eu era um astronauta  Pela janelinha da nave, uma que tinha a cor de leite,  agora  contava as estrelas espalhadas na imensidão do céu como rosários de luzes.
          Na viagem que fazia pelo céu em minha nave cor de leite, não encontrei habitantes na Lua nem em outros astros. Mas fiquei de voltar para continuar a viagem pelo espaço na minha  nave “O Lobo Branco”, até encontrar extraterrestres. Talvez tivesse mais sorte na próxima viagem e encontrasse habitantes   nos planetas Netuno, Plutão ou Saturno. Ou numa estrela que encontrei com  o brilho cor de ouro, onde não cheguei a pousar com a minha nave porque já era muito tarde da noite e tinha que voltar à terra, antes que  o dia amanhecesse.. Batizei aquela estrela dourada  com o nome de Solano.
             Contei aos amigos  o sonho que tive numa noite de verão. Argumentei que um dia o homem ia viajar  numa nave e  conheceria outros planetas. Observei, do alto de meu saber sobre coisas do céu, que provavelmente o homem  ia encontrar vida noutro planeta.  Se não fosse como a nossa, outro tipo de vida, com outra gente diferente de nós. Deus não ia criar tantas estrelas, planetas,  astros e  colocar a vida apenas aqui na terra. Isso era um mistério muito grande, todo mundo achava,  mas um dia o homem ia desvendá-lo. 
              Outra noite  sonhei  que era pássaro, voava acima das casas, dava várias voltas por cima da cidade. Parava de vez em quando, pousava na torre da igreja e  ficava olhando lá de cima a cidade  embaixo toda  iluminada. Imaginava então que as pessoas estavam nas suas camas ferradas no sono, cada casa onde moravam parecia agora  um bicho pesado encalhado na noite..
Enquanto a noite durava costumava acordar com o canto dos galos ou quando o guarda apitava na ronda noturna. O canto de cada galo vibrava no silêncio da noite, repetia-se de quintal em quintal. Escutava o guarda apitar na esquina e o outro responder na rua do comércio. Eram apitos demorados e, como no canto dos galos, feriam o silêncio da noite. Reconciliava-me com o sono, sabendo que cada apito que o guarda dava era um aviso para que o ladrão não andasse ali perto, podia ser preso imediatamente, caso  fosse flagrado roubando uma casa ou loja.
               O guarda Hilário fazia a ronda  noturna lá na rua. Era um preto gordo, que não dava vida boa a  ladrão. Vestia uma farda cáqui, o cinturão grosso de couro em volta  do blusão com dois bolsos grandes. Calçava coturnos pretos, que andavam sempre limpos. Quando pegava algum ladrão, no outro dia saía com ele desfilando pela Rua do Quartel Velho até chegar à cadeia num outeiro. O ladrão tinha a cabeça raspada, andava com as mãos segurando as calças. Um grupo de meninos atrás acompanhava o desfile do guarda e o ladrão pela rua onde gente curiosa aparecia no batente das portas e nas janelas.
           Quando acontecia que uma casa fosse roubada, o soldado Hilário não demorava em prender o ladrão. Em pouco tempo ele se tornou  um herói do meu coração e de outros meninos.
             


           

















domingo, 10 de julho de 2016


POESIA DE FLORISVALDO MATTOS




Em bom momento deste mês, em que Itabuna completará no dia 28 mais um ano de emancipação política,  a poesia de Florisvaldo Mattos chega até nós  para avivar o imaginário. Poeta de linguagem expressiva e conteúdo fraterno,  de lastro clássico em seu discurso coeso, um dos mais importantes nas letras contemporâneas brasileiras, nascido em Uruçuca, Florisvaldo Mattos é também jornalista,  professor aposentado da UFBA, membro da Academia de Letras da Bahia. Publicou livros de poesia e ensaio, sendo os dois últimos Poesia Reunida e Inéditos (2011) e Sonetos elementais (2012); tem no prelo Estuário dos dias e outros poemas, seu oitavo livro de poesia, do qual constam estes abaixo  em homenagem a Itabuna, onde viveu, de 1945 a 1958, mas sempre presente em sua memória. (Cyro de Mattos)



OS HEROIS
(Infinita memória de Tabocas) 

A Cyro de Mattos e em memória de saudosos amigos itabunenses: Agostinho, Carlito Barreto, Dedé, Edson Cordier, Eraldo Cerqueira Gomes, Fernando Menezes Dantas, Dr. Gervásio Santos, Hélio Nunes, Hélio Pólvora, Manoel Leal de Oliveira, Raleu Baracate, Ruy Cedar Fontes, Telmo Padilha, Vidal, os irmãos Vitório e Zequinha Carmo.

                                                          



I
Ao redor de um jequitibá 

A mata vai gemendo, e a terra estremece...
                            E o matagal cortado em fúria desfalece.
                                               Nataniel Ruben Ribeiro Gonçalves (1960)

Com as flores de mil novecentos e onze,
Saúda-se uma construção dos homens,
Primeiro trem-de-ferro em Itabuna.
Estação branca e verde, vigamentos
E colunas fundidos na Inglaterra.
Logo se juntam ventos mensageiros.
Plataforma apinhada de murmúrios,
Espargem-se no ar gestos que meu pai
Fazia, quando moço, certamente, 
E amargara na terra em que buscava
Tolhido fruto ao sonho retirante.
Lá, de gravata e colarinho duro,
O Intendente rodeado de comparsas
Bufa contentamento sob o fraque
E manda um telegrama ao Presidente
Alcovitando o feito dos ingleses.

Aprumando o Latim das Escrituras,
O Padre vem benzer o prédio novo.
Ajusta os paramentos de seu culto
E fala aos fiéis do bem que é o Progresso,
Quando mansa a alma se volta para os céus.
Discute-se o futuro dos transportes,
O quanto servirão a safra e ganhos.
O Juiz exalta a força do vapor,
A do carvão e da eletricidade. 
Especula-se a sorte do aeroplano,
Ou do que irão chamar de zepelim,
Maior glória não há por entre nuvens.

A fé republicana abrasa as mentes.
Lábios estrugem matinal vanglória
De batalhas vencidas, que devolvem
Trajetos de remotas aventuras,
Apegadas ao nome do arraial.
No ardor de lúbricas fruições, desfraldam
Firmamento de audazes fundadores:
Firmes rostos e nomes que até rimam
(Félix Severino do Amor Divino,
Constantino, José Firmino), e passos
De claro curso que celebrizaram
Valentias e força de trabalho.

Hálito de matas e aldeias índias,
As sílabas percorrem de Tabocas
Mágico som jorrado de uma física
Tertúlia de músculos e pulsos
Contra espesso e imperial jequitibá,
Regência de machado em fortes mãos, 
Espelhadas em pedregoso rio.
Embora calem pássaros e ramos,
Abençoa-as um céu de cores grandes
E corpos vibram de tenacidade.

Teve também os seus Eneias essa 
Laboriosa extensão de apenas terra,
Que se atribui nascida pátria da honra,
Isenta de alegrias musicais,
Sem artes de alma e ardências, sem violões,
Sem canções que não as da natureza;
Somente árvore e sombra, em dura faina,
E o cabedal de lutas intestinas.
Uns ridentes, outros compenetrados,
Entretém-se, conversam e confabulam.
Há um novo sol no século que se abre,
Vozes em eco, unânimes, consagram
Passado que resume um sonho plástico:
Charcos que foram e serão depois
Ruas e praças, casas e sobrados,
Matas vencendo, derrubando cercas,
Auras que são tributo da coragem.

A estação miram com olhos do presente.
O trem-de-ferro logo chegará.
“Para cá virão tropas e tropeiros,
Os que passam agora e passarão
Outros que sejam por manhãs e tardes”.
Dali saem e vão jogar bilhar,
Ou simplesmente ao coito com donzelas,
Um conhaque talvez no Elite Bar.
Ruge o inverno nas roças de cacau,
Esplende a lama cevando jatiuns.

II
Aurora com Zé Nik

                   CONTRA NATURAM
                   Trouxeram putas para Elêusis
                   Meteram cadáveres no banquete
                   A mando da usura.
                                               (Ezra Pound, Canto XLV)

José Nik a este mundo não pertence.
Jamais seria alferes dessas hostes;
Era mais personagem que um ser físico.
Vinha de pai honrado fazendeiro,
Gozou de lar e escola, tinha letras,
Mas como herança de satyricons,
Pela trama dos dias e das noites, 
Ganhou fama de mestre em diabruras.
De onde vem como fauno endinheirado,
Ilhéus lhe impôs coroa de valente.
Dispensa o trem-de-ferro e, em montaria,
Tabocas é o destino, a terra nova
De áulicos e de belas raparigas, 
E vai se divertir no Ponto Chic,
Áureo templo de bródios camaradas.
Todos esperam que chegue o endiabrado.

Acendendo relâmpagos nas pedras,
Por uma dessas portas chegará
O cavaleiro de rosto amorenado.
Conhaque de alcatrão e Vinho do Porto,
Gim e aguardente espalham-se nas mesas.
Envolto em lumes, ele enfim chegou,
Com seu chapéu de feltro e aba larga, 
Camisa em listras, largo cinturão;
O revólver de cabo madrepérola,
O punhal e o rebenque encastoado. 
Pisara em flores sobre lama e lodo.
O punho forte segurando as rédeas,
Apeia-se da mula e entra no bar.
Pede conhaque com açucena e, sério,
Bebe de um gole um quarto de garrafa.
Já veio bambo e, após os cumprimentos, 
Senta-se. Logo se levanta e brada:
“A canalha está em festa, a raça espúria.
Quero que morra a nata apodrecida,
Que nem mesmo vale um tostão furado”.
Da audiência refletida nos espelhos,
Tanto quanto as garrafas de bebidas,
Abre-se o riso em luz de acetileno,
Sobre as pedras de silenciosa rua.
Entre um gole e outro, a frase aguda,
Os olhos presos no mármore da mesa,
Sabe-se que vem ébrio; entanto, todos
Querem ouvir o oráculo das matas.

Vivas estalam em rolhas de champanhe,
Entre os cristais do bar estrelejado.
Logo debulha os vícios da República,
Que homizia um rosário de maldades.
E, ante ávida plateia, alinhavava:
Os deputados a bico de pena,
A moral de rapina, o chão de ratos,
Astúcias no silêncio dos cartórios, 
De notários e fátuos advogados,
Venalidades e querências surdas;
Os enfatuados donos do dinheiro,
Nas casas compradoras de cacau,
Com estrangeiros de rosto avermelhado,
Tramam revoltas e terras ocupam,
Expulsando posseiros a chicote;
Os caxixes, o exército de agiotas
(A usura participa do cenário),
Balas e assassinatos de tocaia.
Transpiram calma e cálculo, astros são
De um conservadorismo abençoado,
Cujas filhas fornicam nos quintais.
Divertem-se liberando ansiedades.
À noite nas sessões de jogatina,
Entorpecidos, jogam bacará
E sete-e-meio e pôquer apostado.
Privam também com suas concubinas,
Em bordéis e mansões; arreiam tropas
E transportam cacau pela alvorada.
Tensas mulheres em lençóis de seda
Libertam-se de sexo reprimido,
Entre cortinas de um amor furtivo,
Vezes muitas por trás de um naipe de ouros.

Olhos vívidos miram os cristais,
Um gole a mais, o cálice no ar.
(Escrevente Manoel Fogueira observa 
Ovações e estridências do espetáculo).
Todos lembram o instante em que Zé Nik
Destratara um Juiz em calma rua
E a noite em que, em pleno Quartel Velho, 
Tonto, se defrontou com três maçons;
Mandou que abrisse o bolso cada um,
Enfiando neles moedas de um vintém.
Chovera. O céu de estrelas semelhava
Um lago que espelhasse pedrarias.


III

Noite com Zé Nik

                   Na cinquentenária avenida
cinquenta anos te espero:
foste herói impossível de um dia
que não vingou nos anos vindouros.
                            (Telmo Padilha)

Horas havia, à noite, em que o peito arfava,
O coração media em derredor.
Destravando as amarras do pensar,
Cogitava outro passo, outro caminho.
Sonhava que estivesse num jardim,
Entre flores e amigos, num coreto,
A dizer-lhes que o mundo é bem diverso
Do que ruminam eles, do que sonham,
Como talvez lutar no Contestado, 
Soldado ser no Rio de Janeiro,
Viver na terra como um desastrado.
Rugas na testa evocam movimentos,
Em paragens longínquas, alistado,
Araucárias e verdes pinheirais,
De árduo escudeiro, de anjo protetor.

Tarde de sol venal e de cansaço,
Na hora em que búzios desertam o dia, 
Entre nuvens de excesso e perdição,
Olhos de azeite e voz tonitruante,
O desastrado irrompe no terreiro
De uma fazenda calma e preguiçosa. 
Aguardente de cana na mão trêmula,
Com todos grita, acusa, execra e xinga.
Depois arruma alforjes nos arreios,
Emborca um gole a mais, apruma o corpo
E deita, despedindo-se do dia.
Entre restos de selva e serrania,
O Rio Almada exaure-se em canções,
Prenunciando auroras e crepúsculos
De uma saga que nasce nele próprio.
Zé Nik dorme o sono da inocência.
É quando, alma que veio do Nordeste,
Para sumir nos eitos do cacau,
Colecionando injúrias, lavrando ódios,
Arreando tropas, o Amarelo espreita.
Com a mesma mão que arreia as alimárias,
Doa a um machado os sonhos de Zé Nik
E ao Juiz disse que matou sem cúmplices,

Na tarde de incógnitas infinitas.
Foi-se sem um rugido, mesmo um sopro.
Fechados olhos como que de ausência, 
Do corpo pendem-lhe mãos de escultura,
Da boca e queixo, um terno e rubro líquido,
Sangue que peito cobre e alaga o chão.
Arreado está, arreado ficará.
“Ai! Que anjos o levem, jamais Caronte”,
Imploram os varões do Ponto Chic.
Astros e deuses logo o levarão
Pelo moroso céu do que se finda.
Adiante passam burros, passam tropas,
Verdes matas prosseguem expectantes,
Talvez nos ramos pássaros gorjeiem.
Ansiosa desde sempre a terra vibra,
Em pouco alegre chuva a encharcará.
O outono vem com nuvens de cetim.
(O rio Almada corre silencioso,
No seu fado de eterna testemunha).
Já pelo ar calmos ventos anunciam:
Por milagre talvez ou santas mãos,
Sobe na Bolsa o preço do cacau.
Gritos se ouvem, nas águas, nos caminhos,
Em mil novecentos e vinte e sete.
Personagem de conto fin-de-siècle,
Aqui se finda a história de Zé Nik,
Em nada parecido com um ser físico.

IV

Alvorada renascida


Ah! Como eu sou feliz e me sinto orgulhoso
De um dia ter nascido em teu seio faustoso,
Sob o esplendor de um céu de beleza tão rara!
                                               José Bastos (1905-1937)


A luz que escorre sobre um rio morto
Ainda derrama cores e nos alerta
Que o passado vivido que passou 
É passado lembrado que não passa.
(Ó sonoro Guillén, disseste-o bem,
Ecoando suados rastros de conquistas,
Com voz de bardo hispano-americano:
“O passado passado não passou”).*
O tempo foge, gasta e desconcerta.
Os caminhos da vida têm cancelas,
Que se abrem, quando emergem na memória
Com os ecos de machados retumbantes,
Força e fervor de braços sergipanos.
Não só de sóis a letra é devedora,
Das estrelas menores é também.
Sumiu Tabocas, o arraial primeiro,
Matas de cedros e maçarandubas.
(Só não sumiu o amor pelo cacau).
As noites moldam novas alvoradas,
Enquanto nuvens pelos céus bendizem
Terras heroicas sobre as quais ainda hoje
O vento sopra despejando flores,
Saudando todas as criações e luzes,
Os caminhos acesos de Tabocas,
Que ainda fosforescem e cintilam,
Em chão de orvalho e lidas que retornam
A esperanças vividas e sentidas.
Dessas auras, contrito, me despeço.
Itabuna venera seus Eneias,
Que dialogavam com jequitibás.
Tabocas nunca esquecerá Zé Nik,
Que foi seu outro lado incandescente.

(SSA/BA, 1982-01.05.2016) 

*Oh aurora dos tempos, incendida!
Oh mar de sangue, mar que desbordou!
O passado passado não passou.
A nova vida espera nova vida.

(Nicolás Guillén, in “Elegia a Jacques Roumain, tradução de Manuel Bandeira).