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quarta-feira, 28 de junho de 2017




Escritas em Trânsito retorna em 2017, trazendo a Salvador Alice Ruiz
Autora de mais de 20 livros e parceira em letras de sucessos da música popular brasileira ministra oficina  de 26 a 28 de julho. Inscrições abertas



O projeto Escritas em Trânsito chega à quarta edição. A retomada do projeto se dá justamente a partir de julho, em comemoração ao Dia do Escritor, 25 de julho. Entre os meses de julho a setembro serão realizadas oficinas literárias gratuitas, ministradas por renomados autores de língua portuguesa. Alice Ruiz ministra a primeira oficina da série, HAIKAI, de 26 a 28 de julho, no Memorial do Teatro Castro Alves. Inscrições gratuitas pelo https://goo.gl/reEpbQ até o dia 7 de julho.

Poeta, haicaísta, letrista, tradutora, publicitária, com mais de 20 livros de poemas e haikais publicados, participa também em várias antologias nacionais e internacionais. Como letrista, Alice tem parcerias musicais com Itamar Assumpção, Arnaldo Antunes, Waltel Branco, Zeca Baleiro, Zélia Duncan, Alzira Espíndola, Chico César, Zé Miguel Wisnik, Iara Rennó, Na Ozzetti, Luiz Tatit, Estrela Leminski, João Suplicy, Natalia Mallo, Rogéria Holtz, dentre outros.
A oficina que ela ministra em Salvador se propõe a familiarizar os participantes à técnica e prática do haikai - poesia mínima de origem japonesa. Com introdução à “filosofia” zen, preparando o espírito para que os participantes se coloquem emestado poético”, passando pela abordagem da técnica e forma, o que inclui algumas noções da escrita ideogrâmica, até chegar aos exercícios de tradução e criação em conjunto e individual.

Inscrições - As inscrições para as oficinas da quarta edição do projeto ficarão abertas desta segunda-feira, 26 de junho, até 7 de julho. O formulário está em https://goo.gl/reEpbQ. O Escritas em Trânsito é uma realização da Coordenação de Literatura/Dirart, da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), entidade vinculada à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SecultBA).
Autores de diversas origens e representantes de vários estilos e formatos vêm participando do Escritas em Trânsito, qualificando o trabalho de escritores baianos, bem como de novos interessados em desenvolver habilidades na área. Nas edições dos anos 2012, 2013 e 2014 foram realizadas 23 oficinas em Salvador, para um total de 432 participantes.

Artistas do interior – Para participar das oficinas da próxima edição, os interessados devem se inscrever através do formulário disponível na página www.fundacaocultural.ba.gov.br. As vagas serão limitadas, com turmas de até 30 pessoas. A carga horária de cada oficina será de 12 horas.
A novidade deste ano é que “serão reservadas quatro vagas para efetivar a possibilidade de participação de artistas da palavra do interior do estado, nas oficinas”, anuncia Karina Rabinovitz, coordenadora de Literatura da Funceb. Serão arcados custos com transporte e diária destes participantes do interior.
Os critérios que serão considerados para o preenchimento das quatro vagas reservadas são que o artista da palavra candidato realize atividade literária em sua cidade; e que seja multiplicador de literatura, em sua cidade.

Diálogo com sociedade – O projeto é resultante do diálogo entre a Coordenação e a sociedade civil, em diversos encontros setoriais e eventos literários, nos quais foi enfatizada a necessidade de se ter acesso às discussões e diálogos que movimentam a cena literária nacional.
Consideradas em sequência, as oficinas realizadas em 2012, 2013 e 2014 equivaleram a uma formação continuada inédita para novos escritores, que experimentaram várias turmas desta diversificada oportunidade de troca de conhecimentos.
Até agora alguns autores (as) que passaram pelo Escritas em Trânsito: Ricardo Aleixo, Fabrício Corsaletti, Carlito Azevedo, Angélica Freitas, Verônica Stigger, Ricardo Chacal, Marcelino Freire, Marina Wisnik, Allan da Rosa, José Luiz Passos, Noemi Jaffe, Paulo Henriques Britto, Carol Bensimon, Ricardo Domeneck, Marília Garcia, Antonio Cícero.
As próximas oficinas serão divulgadas a partir de julho.

Serviço
Escrita em Trânsito
Oficina de HAIKAI, com Alice Ruiz
Onde: Memorial do Teatro Castro Alves
Quando: 26, 27 e 28 de Julho
Inscrições gratuitas:
https://goo.gl/reEpbQ
Mais informações: Coordenação de Literatura
(71) 3324-8507
literatura.funceb@funceb.ba.gov.br


Assessoria de Comunicação
Fundação Cultural do Estado da Bahia – FUNCEB
asc.funceb@gmail.com |(71)3324-8565
Claudia Pedreira - claudiapedreirajornalismo@gmail.com | (71) 98879-7994
www.fundacaocultural.ba.gov.br


domingo, 25 de junho de 2017

                   



                        A Única Briga
                   
                       Crônica de Cyro de Mattos



Só brigou uma vez no internato. Foi com um menino que jogava de ponta-esquerda no time de camisa branca. Jogando como lateral direito no time de camisa azul,  ele dava uma marcação implacável àquele menino troncudo, baixo, braços musculosos.  Em compensação era menor do que ele, que sempre se antecipava para tomar a bola dele, um  atacante arisco, bom no drible curto, precisando ser marcado de perto.
 Era um duelo à parte entre os dois quando o time de camisa azul enfrentava o de camisa branca.
Na última partida, o marcador e o atacante  chocaram-se na grande área, temeu-se que os dois contendores tivessem se machucado gravemente. Houve bate-boca, dedo em riste no rosto, da próxima vez eu lhe quebro a canela, jogadores dos dois times apartaram os dois para evitar a briga. Terminado o jogo, atracaram-se e a briga não continuou porque o Irmão Já-Morreu trilou o apito várias vezes, pedindo a seguir  que os dois rivais lhe acompanhassem.
Adiante, no campo vazio, ao lado da parede alta atrás de um dos pavilhões do colégio, o Irmão ordenou:
- Agora podem brigar à vontade. Ninguém vai apartar.
Brigaram mais de uma hora. Nos lances com murros desfechados um ao outro, ele procurava evitar que o rival agarrasse o seu corpo. Se tal acontecesse, seria derrubado, e, no chão, dominado,  massacrado,  não teria  a mínima chance para vencer a briga.
A certa altura do duelo, os brigões mostravam cansaço, mas nenhum deles  recuava, não pensava em correr.  O irmão mais velho disse para ele que, se um dia brigasse com um dos meninos internos, fosse até o fim, nunca corresse. Tomasse pancada, mas agüentasse, mesmo que tivesse de ser o  perdedor. Quem corria em qualquer briga, era chamado de frouxo, ficava sem merecer o respeito dos outros. 
Exatamente o que ele fez, retirou forças de onde não mais existia,  e, com as recomendações do irmão na cabeça, desferiu  uma saraivada de golpes na barriga do menino troncudo, que não resistiu, rodopiou e caiu, gemendo.
O rosto inchado, corte na boca e no supercílio. Apresentou-se com o rival  ao Irmão Já-Morreu, que ordenou, vão  tomar banho e mudar de roupa, depois desçam  para o refeitório.  Aconteceu depois que o derrotado  na briga ficou proibido de sair do internato quatro domingos,  o mesmo castigo foi dado a ele.

O tempo que ficou no internato, o menino troncudo evitou falar com ele. Passava de cara enfezada  quando o  encontrava  em qualquer lugar do colégio. Ao contrário, ele não guardou raiva  do seu adversário, até estava disposto a fazer as pazes com ele, deixando a rivalidade para dentro do campo quando o  time de camisa azul fosse jogar mais uma partida contra o de camisa branca. 

sábado, 10 de junho de 2017

                                A Casa de Heloísa Prazeres
                          
Cyro de Mattos
                                                 
          Depois da estreia com Pequena História (2014), antologia pessoal, a baiana (de Itabuna)  Heloísa Prazeres retoma seu processo poético com um segundo volume, A casa onde habitamos (2016),  formado de consistente união entre inspiração e transpiração,  intuições e reflexões, imaginações  e registros. Nesse segundo volume, com a  ilustração da consagrada arte fotográfica de Jamison Pedra, a poeta usa a palavra simbolizada para metamorfosear o discurso da vida como resultado de trabalhos de bastidor, achados nas zonas suspensas do sonho, fiações de interiores sob o teto da terra, memórias para alcançar o  entendimento no mesmo chão de suas origens.
            Há nos oitenta e dois poemas que compõem essa casa, tecida com o labor do sonho, um ritmo que conduz a ideia através de versos bem construídos para  o preenchimento dos vazios no mundo. Assim, nos domínios onde a atribuição a um autor é a boa literatura mesclada com instrumental crítico suficiente, o emprego de linguagem eficaz deixa  ver que aqui estamos diante de uma construção poética  segura, de signo adornado pelo som na cadência musical própria do poema,  que diz de emoções chegando da  memória ou da razão, como se fossem sensações que na imagem iluminam o ser.   
        Numa lírica moderna ressoa o uso do vocábulo estrangeiro,  a boa referência a poetas e escritores de predileção pessoal, mas  em especial o tempo que, na alma enlaçando afetos e afinidades,  busca outro tempo, marcado  através de experiências,  revelações tantas  perante a existência.  Dividido em quatro partes, Trabalhos de Bastidor, Antessala de Sonho,  Sob o Teto da Terra e Mesmo Chão, podemos dizer que, nessa casa onde o eu lírico traça projetos efêmeros ante o eterno que perdura, a chave para o seu conhecimento, distribuído em compartimentos delimitados pelo assunto  ou tema, que homenageia à vida,   está na epígrafe de Sophia de Mello Breyner Andresen, tão esplêndida poeta portuguesa quanto luminosa contista, quando diz:

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
                
         Quando a reconstrução do mundo no verso é convincente,  faz pensar logo como a vida é falha, repleta de contradições dentro de certo peso que impõe suas vozes agudas permeadas da  ambigüidade na passagem do tempo. Sendo falha, para equilibrar-se nos vazios, o poeta  recorre à   linguagem literária para inaugurar  novos sentidos, lembrando assim que na quimera  e na divagação, na pureza  de dicção superior, criativa, a vida torna-se viável. Utiliza por isso  lições plasmadas em  linguagem específica para discorrer  sobre o espanto da vida e assim prosseguir     na litania do verso,  que em si mesmo se sustenta e encanta. 
              O poeta quer dizer com isso que o seu gesto de ler o mundo põe claridade nas partes escuras  que ocultam o mundo. O verso supre a deficiência crítica, repleta de limitações,  que envolve aos humanos perante a experiência da vida em que entra a solidão, o tédio, o azar  e a tristeza.  Embora existam as flores, sabe-se que elas somem, mal surgem. Ao  poeta Heloísa Prazeres, o  milagre para que sempre sobrevivam consiste em vê-las com a sua teimosia no deserto, em tácito entendimento das altiplanas  montanhas de Nevada,  como as encontramos no afetuoso “Poema para os meus Amigos”. Lembre-se então que, ressoando larguras e profunduras,  em  mínimas cosmovisões de ternuras, disse  Neruda que a flor da alma na alma flora.
          Na geografia íntima da casa abandonada,  Heloísa Prazeres  não sabe “dizer se havia/consentimentos, apelos/de viagens dominavam/ vontades. Seguro apenas/ o mandato da aventura.” E, porque o desafio consiste em ultrapassar a aventura do viver, o  tempo dos legítimos poetas é outro. Decide-se com os reclamos da alma, rumores urdidos  com “mala fixa e estética”,  emoções e conceitos movendo sempre a permanência de surpresas, cismas e perplexidades.  É o que percebemos, por exemplo,  no discurso singular do poema  “Trópico do Capricórnio”.
         Até mesmo no poema “Familiar”, os versos livres de Heloísa Prazeres, quase automáticos, de uma rapidez e visibilidade, síntese e concisão, como quer Italo Calvino,  fixam a cena com assunto moderno, extraído do mundo internético de hoje, o qual, instalado  no grupo, faz com que cada um fique hipnotizado no seu recurso, na cerimônia ao deus TIC - Tecnologia da Informação e Divulgação.
        Esse modo de estruturar o verso nos tempos de hoje, embalado do eletrônico  que não se ajusta ao sol  na manhã com esperança,  só comprova que  nessa casa de Heloísa Prazeres, aqui e agora, com leveza e graça,  densidade e clareza, a poesia está em tudo. O  poema não engole o poeta quando  provido de linguagem adequada e percepção  do mundo.







sexta-feira, 2 de junho de 2017




Contos Bem Exemplares

          Cyro de Mattos
         

Retorno em tarde sem Sol (2016) é o  décimo livro de ficção do escritor baiano Aramis Ribeiro Costa.  O volume reúne quinze narrativas  de desenvolvimento ficcional breve,  mas com larguras e profunduras no que o autor diz sobre  a condição humana com as suas dimensões trágicas, desencontros patéticos, desapontamentos nos quais não se vê caminhos para a solução de situações impregnadas de contradições  na vida diária.
Cada autor tem sua marca digital na massa do que foi escrito. Aramis Ribeiro Costa é desses contistas que envolvem o leitor com uma linguagem sedutora, que flui com espontaneidade e, na sua simplicidade encantatória,  vai dando prazer a quem lê. De trecho para  trecho a linguagem prende,  na exposição de cenas convincentes e movimentação dos personagens que interferem no momento oportuno. De conto para conto,  não é preciso fazer o intervalo para tomar fôlego e seguir na leitura, como ocorre no diálogo que o leitor crítico estabelece com o texto de uma  escrita complexa. Em sua construção formal, os contos de Aramis Ribeiro Costa sempre  operam a generosidade  de transmitir com espontaneidade a comoção final da escrita bem cadenciada, desenvolta, harmoniosa, na qual revela quase sempre as tristes notas de uma experiência humana.  
Mas não se trata apenas de um autor prazeroso nas suas criações, como se vê novamente nesses  quinze contos reunidos em Retorno de tarde sem sol.  Se o fetiche da linguagem nas formas novas de narrar uma história não o atrai, longe de estarmos diante de um autor pobre no uso da palavra e pueril no universo criativo da ideia. Tudo em Aramis Ribeiro Costa funciona nos modos estruturais de inventar uma historia, nada é inútil, do título à palavra, da linguagem  à ideia, do ritmo ao assunto, do personagem à circunstância inusitada. Nada é gratuito na enunciação do texto, que depois de enunciado faz pensar, às vezes chega a continuar  com  outra  história no pensamento do leitor. Isso é visto em “Cabaré”, quando podemos indagar qual seria a história verdadeira de Norma Morales, a rainha da noite,  aquela  em  que é vista nas suas exibições de bailarina que se despe,   de causar pena na cena nua e crua,  ou a que se oculta nos seus interiores, como dá a entender  quando, aos gritos, a personagem alega que estava sendo perseguida, algozes vão lhe matar,  e na fuga desesperada  encontra a morte  ao ser atropelada por um pequeno caminhão.      
O contista logra tirar bons efeitos do recurso de deixar no vazio uma história que poderá ser o desdobramento da que é exposta aos olhos do leitor,  acontecendo na realidade exterior, vivida  pelo personagem  em vários casos,  com os acordes  ásperos     de uma música chamada solidão. Essa técnica de embutir na história narrada  outra história, que fica por conta da imaginação do leitor, encontramos também em “Dona Amália”, uma mulher viúva e solteira, que só tem uma amiga íntima, a   Estelinha. O que acontecerá quando a sua empregada doméstica anunciar que vai deixar o emprego para se casar? O drama da situação adversa que irá provocar na viúva solitária, quando a notícia nada agradável for dada,  fica no vazio para que o leitor de novo volte a imaginar outra história.
Vida, morte, solidão,  os temas focados nesses contos  primorosos de Aramis Ribeiro Costa, reunidos agora no volume Retorno em tarde sem sol. A tragédia estampada nas tintas do horror está presente em “Partida”, conto que deixa entrever como viver é arriscado, vive-se sob um cerco perigoso, de imprevistos e cenas absurdas, que podem ser desfechadas no ímpeto inconcebível quando menos se espera. Em alguém, por exemplo,  que decidido a partir para sua cidade de origem, no interior, em busca de dias mais sossegados,  é assassinado naquele instante de despedida, pelo simples fato de gostar de tirar fotos e um indivíduo não gostar de estar sendo fotografado.
Dolorosa também é a nossa precária condição humana que se mostra no quadro em que o pai se sente apunhalado pelo filho quando soube que o mesmo havia dado um desfalque na firma do padrinho. “Sentia-se traído. De nada tinham valido as lições, os conselhos, o exemplo da própria honradez, de nada valera ter construído  um nome honesto e respeitado.”  Um mundo sólido feito de princípios e atitudes éticas, inabalável,  veio abaixo devido à vergonha, que  não tinha tamanho,  como nunca o pai havia sentido. O filho disse que ia embora, esperando que houvesse o milagre do perdão. Do lado de fora da casa, “o filho colocava as malas no seu carro quando ouviu o estampido”.
São contos exemplares esses reunidos em Retorno em tarde sem sol, não porque abracem uma ética em que o autor busque transmitir lições baseadas em ideias e princípios moralizantes, lições corretas de vida para que sejam impingidas ao leitor, no intuito de contribuir para a formação de padrões,  visões e leituras fundamentais da experiência humana. Não estão aqui enfeixados como exemplos para se ter consciência do bem e se afastar do mal, optar pelo correto no lugar do errado.  Esses contos são bem exemplares em razão de uma estética do comportamento humano sustentado pelo autor através da amostragem de instantes agudos da existência com os seus grandes conflitos. È sobre a condição humana circunstanciada pelas contradições da vida, com seus eventos inusitados, que esses contos demonstram, sem nunca forçar a nota,  o quanto a vida perturba na sua estupidez. Daí, como não poderia deixar de ser,  a presença da solidão em vários deles,  da morte, da incomunicabilidade, do trágico, do patético, das convenções estereotipadas para se comemorar uma data,  e outros momentos críticos que nos acompanham e esfacelam  no difícil gesto do viver. Todas essas falhas da vida estão presentes  nesses contos de fatura exemplar, tanto na concepção como na execução, na forma espontânea da linguagem,  no clima absurdo que geram cumplicidades que ferem  o diálogo estabelecido entre leitor e personagem, intensamente permeados  de tristeza e golpes duros, armados pelo ilógico da existência.  
Demonstram que a literatura é forma de aludir à vida como forma solidária, como ela sabe transmitir beleza e verdade  quando nos faz cúmplices da fraqueza que nós os  humanos protagonizamos na experiência de cada existência.  Ela tudo dá e nada toma, devolve a nós mesmos o que nos pertence, razão e emoção da  união geral  na constante canção do viver. 
Entre os excelentes  contos desse Retorno em tarde sem sol, dois chamaram-me mais  a atenção: “Dinamarca” e  “O Aniversário da Avó”. No primeiro,   o tema da insatisfação humana faz-se visível na comemoração de cem anos de um velho bem-sucedido, orgulho do bisneto, alvo de admiração de parentes e de muitos que estão na festa, esbanjando alegria, brindando uma data redonda, rara de ser alcançada, a não ser pela  proeza daquele homem, já decrépito, trazido ao salão numa cadeira de rodas, juntamente com a esposa, também idosa e numa cadeira de rodas.  Um homem ímpar,  que, juntando uma fortuna, tornara-se uma pessoa  importante.  “Um homem que vivera um século e construíra alguma coisa grande” e que naquele ambiente de entusiasmo só podia estar feliz.  Quando a repórter de televisão, insistindo na pergunta, procurou  saber se ele estava feliz, rodeado de tanta alegria, surpresa escutou um não, um grito de quem afirmava ser um homem incompleto porque não tinha ido à Dinamarca.  A desconcertante resposta,  em sonoro não,  mostrava o quanto a vida é curta e falha, incapaz de realizar tudo que desejamos, indiferente ao que pensamos e atuamos segue marcada de frustrações,   traumas constantes que consegue imprimir na rotina de cada um.
Em “O Aniversário da Avó”, narrativa para homenagear “Feliz Aniversário”, famoso conto de Clarice Lispector, incluído no livro Laços de família (1960),  revela o quanto um contista singular trata de assunto já desenvolvido por escritora maior, tornado clássico em nosso conto, sem que se faça  um imitador, um infrator indevido da imaginação do que veio  primeiro para ficar em texto  original sobre assunto projetado  de maneira pessoalíssima. Nessa variação de conto sobre a eterna velhice, a   ética do comportamento criativo de Aramis Ribeiro Costa salta à vista,  começando  na epígrafe que retira do conto de Clarice Lispector, É preciso que se saiba que a vida é curta. Que a vida é curta,  e coloca no seu,  antes de expor a sua leitura secreta em torno da infelicidade,  que se apresenta com as cores da  felicidade nas cenas formadas naquele dia especial  de aniversário.
Em “Feliz Aniversário”, de Clarice Lispector, ao invés de  uma comemoração prazerosa, nota-se  que não só Zilda, mas todos os parentes, os familiares estão apenas cumprindo tarefas, todos também estão sendo manipulados pelo dever. Em “O Aniversário da Avó”, de Aramis Ribeiro Costa, a solidão vem acompanhada na ausência de ternura por partes de filhos, que não comparecem, nem tampouco os filhos deles,   para abraçar a aniversariante na data em que completava oitenta anos. Como fere a atitude humana quando se faz necessário o afeto para que a vida acorde no coração  o encanto no lugar do desencanto.  É o que se afere nas entrelinhas desses dois contos magníficos, que mergulham fundo na relação complexa da solidão acompanhada, vivida em família. 
Em ambos os contos,  a vida é recortada em instantes perturbadores e brutais  do que somos em nossos relacionamentos, como é enganosa no que parece se mostrar à primeira vista. São dois contos que colocam à mostra os grandes conflitos do ser humano, explorando-se  com muita sutileza as regiões mais profundas e inexprimíveis da alma, aliando a   razão à  sensibilidade nos seus pontos mais graves,  por meio de uma linguagem visceralmente  poética em Clarice Lispector, cativante em Aramis Ribeiro Costa.  Ressalte-se que cada contista nas  histórias similares  tem a sua voz, seu acento, sua impressão, sua invenção que resulta da capacidade que tem a literatura de fixar as imensas proporções da  experiência humana.  Nesses dois casos, do micro no macro através do conto. 
A literatura opera desses milagres em que às  vezes nos deparamos com a ficção e a realidade entrelaçadas naquele ponto nodal em que a mentira, beleza da ilusão projetada com a palavra, não passa da verdade a pulsar sensibilidades provenientes dos nervos da vida concreta. Sensação que passamos quando da leitura dos contos bem exemplares enfeixados por Aramis Ribeiro Costa nesse  Retorno em tarde sem sol.


REFERÊNCIAS


COSTA, Aramis Ribeiro. Retorno em tarde sem sol, Editora Kalango, Simoes Filho, Bahia, 2016.

LISPECTOR, Clarice. Laços de família, contos, Editora Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1960.