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segunda-feira, 31 de julho de 2017



           A Guerra Lá e Cá

           Conto de Cyro de Mattos


Em primeiro de setembro de 1939. A Alemanha nazista, liderada por Adolfo Hitler, invade a Polônia. Dois dias depois, a França e a Inglaterra declaram guerra aos alemães. Não se fala de outra coisa na cidadezinha perdida no interior baiano. Enquanto dura o conflito, os habitantes são tomados pelo medo. Quase seis anos de fogo. Sombras. Pesadelos. Ventos chegam com seus gritos de horror até o lado de cá, todos os dias. A  qualquer momento, o rádio dá a notícia de como anda o monstruoso sofrimento nos campos da Europa. Conta histórias de luta, fome, desemprego  e perseguições. 
O farmacêutico Ligori espera sua vez na barbearia de seu Nô para  fazer o cabelo e a barba.  O dono da barbearia, um negro de nariz achatado, lábios grossos, treme as pernas quando ouve falar na guerra. Seu Ligori lembra que Hitler, o pequeno homem de bigodinho irascível, quer fundar  o império duma raça branca na Europa  e ser o dono do mundo.  Se ele, na sua crença de ser superior,  conseguir a vitória, o Brasil onde a maioria do povo é formada de pretos e mulatos  será  fatalmente um dos países submissos ao  império do ditador.
Alemanha, Áustria, Itália e Japão. Países do Eixo ou quinta colunistas, como pessoas do  povo gostavam de chamar.  Em compensação, como observa seu Ligori, boa parte do planeta apoia os países aliados, liderados  por França, Inglaterra e, mais tarde, também Rússia e Estados Unidos. O Brasil  não está  entre as exceções. Adere à causa aliada, depois do afundamento de navios de bandeira nacional na costa brasileira por submarinos alemães.
Pela voz do locutor Timóteo, no alto-falante da praça,  a multidão hipnotizada  escuta a notícia de que  milhares de judeus são eliminados pelos alemães num ritmo implacável. Seguem  nos vagões do trem, apertados, amontoados, alguns morrendo sufocados ou de fome no meio do caminho. Faziam no vagão as suas necessidades fisiológicas.
Selecionam homens, mulheres e crianças. Pais são separados dos filhos,  as mulheres dos maridos.  Criaturas indefesas desaparecem sem que possam  dizer adeus com esperança. O locutor Timóteo fala, em sua voz entristecida,  daquelas criaturas que partem nos vagões como boi para o matadouro. Por sua vez, os que participam da missa dominical estão ouvindo atentos  o padre Messias em sua prédica. Ele fala aos borbotões. Suas  veias do pescoço sanguíneo latejam como cordões grossos. A voz alta fere o tímpano dos fiéis, ressoa na igreja em silêncio.
Ele pede para que os fiéis rezem com fervor, roguem  a Deus para que aprisione os quatro cavalos do Apocalipse, ilumine os aliados com o seu espírito salvador para que  o Anti-Cristo seja derrotado em pouco tempo. Só Deus pode impedir que o mundo não acabe  agora em dias de fogo. Ele termina a prédica com os braços abertos,  como querendo proteger  a todos em suas mãos compridas  e aconchegantes.  
O professor Marcelino, ex-seminarista, recebe aplausos em certo trecho de sua conferência que está sendo proferida no salão do ginásio. Sua palavra segura,  próxima da realidade trágica, ressalta  que o ser humano está sendo recuado  para os subterrâneos mais indignos. O bem e o mal coexistem  numa vizinhança das mais imprevisíveis quanto mais niilista. O mal não tem  limite.  Corpos são usados para experiências absurdas. Almas sem clamor e pequenos corações  vivem aterrorizados sob a expectativa de que só vão sair dos campos de extermínio  pela chaminé reduzidos a cinzas.
Sirenes, bombas, torpedos. Explosões, crateras, escombros. Na  enchente a morte. As pessoas imaginam que tudo está acontecendo na Europa de maneira diabólica. A fera ressurge da antiga caverna para galopar nas trevas. Não concede a trégua, bane  a pomba na légua, só quer a selva. O amor é uma coisa inútil, um absurdo a relva. A vida,  sem o som da fúria,   não tem qualquer possibilidade de ser livre, está em ruínas,  numa condenação sem sentido. O que torna possível a construção do monstruoso absurdo? O rádio não para de informar acerca de ganhos e perdas nos dias assoberbados por intermináveis cargas de fogo.
  Em 27 de janeiro de 1945, diante dos soldados do exército vermelho, muita gente morta, pessoas fuziladas,  mutiladas, corpos queimados.
  Naqueles idos de 1945, o menino é  levado pela mãe para aprender as lições de Instrução Moral  e Cívica no prédio escolar. Havia escutado o vizinho dizer para o pai no dia anterior que  uma grande passeata vai  sair pelas ruas clamando pela liberdade, os manifestantes sustentando cartazes de apoio aos países aliados e aos pracinhas brasileiros que estão no conflito.
Um dia,   o sorriso que alarga o rosto  aparece na rua com os habitantes da cidade pequena. Todos eles irradiam alegria por causa da fuga das sombras feitas de horrores nos bombardeios e penúrias de rostos com fome.  A notícia  voa levando por todos os cantos a informação de que as bombas inimigas estavam caladas para sempre nos campos da Europa. Já não existem mais as horas do mundo  cheias de grito  e agonia.  E o menino vai assistir todo feliz  a vitória do amor através do desfile sonoro do povo nas ruas. Os sinos tocam sem parar a canção constante de paz,  antiga, bem antiga,  belíssima. Bonecos, caricaturas,  charges  de Hitler, Mussolini e  o imperador Hirohito  estão nas ruas como monstros ou demônios. A chuva grossa que cai de repente não desanima os manifestantes que percorrem as ruas principais.
O Tiro de Guerra, os colégios, os escoteiros. Associações de classe, autoridades de mãos dadas com o povo. Tambores rufam pelas ruas de chão batido, arrancando intensos    vivas de quem veio participar da festa. As pessoas vibram intensamente nos passeios, portas e janelas. O ponto alto das manifestações acontece com  o comício na praça da Beira-Rio. O coreto do jardim  iluminado tem  um “V” grande da vitória. Foguetes pipocam no céu cintilante de estrelas. As bandeiras do Brasil, da Bahia e da cidade tremulam na  noite agitada. A Filarmônica toca a Marselhesa, hino da resistência dos aliados franceses. Toca depois  canções e marchas militares brasileiras. É ovacionada quando termina de tocar  o Hino Nacional.
 Os oradores desfilam no palanque enfeitado de bandeirolas, cada discurso mais inflamado do que o outro. Felício Brasigóis, o poeta da cidade, octogenário bigodudo, é o último dos oradores. Suas palavras escorrem mansidão por entre rostos atentos,  erguem  um mundo que cativa  com  o braço ao abraço. Segundo os versos do poema que ele diz,  sem a paz é o caos, nada mais vale tanto do que os dias livres das botas impassíveis, os jardins com crianças, os ares frescos da noite bem dormida. Anônimo para muitos, tão perto agora de todos,  o poeta de cabelos brancos, encurvado, recusa  uma senhora diabólica, que arrasa os sonhos, bombardeia projetos, dizima a maravilha, mata a esperança, tritura a ternura. Com suas manadas enfurecidas, pisoteia tudo que nasce do amor.
            Ainda permanece na memória a figura daquele homem, baixote e gordo, à frente da passeata. Levava uma tabuleta com esses dizeres: AUSCHWITZ NUNCA MAIS. Era o gringo Leone Leibowitz, judeu lituano que tinha uma loja de calçado, chapéu e tecido, na rua do comércio. Fora obrigado a migrar  para o Brasil antes de começar a guerra,  vindo  morar  com a mulher no interior da Bahia.                                                                                                                                                               
 Lembro-me dele vendendo as coisas com um preço barato na loja. Ninguém entrava na  Loja Bonamigo  para sair de mãos vazias, sem comprar  um sapato, chapéu, capa, gravata ou tecido. O gringo tinha uma maneira engraçada de cativar o freguês, “tudo aqui é barato, dinara não importa, gringo Leone é bonamigo.” Tornava-se mais engraçado quando falava ligeiro misturando o lituano  com o português das gentes do interior baiano. O freguês demorava entender o preço exato que ele dava a um chapéu ou sapato. Gostava de fumar  “yolanda azul”. O cigarro apagado, esquecido no canto da boca, enquanto atendia o freguês. Todo mundo na cidade sabia  que ele não fazia mal a uma mosca.
Os meninos de meu tempo gostavam muito do gringo Leone. Queriam  acompanhar os pais quando iam fazer compras na Loja Bonamigo. O gringo dava balas de jenipapo ao menino quando o pai ou a mãe terminava de fazer as compras. Um dia recebi uma mão cheia das gostosas balas de jenipapo, que a mulher dele fazia. Acho que eu era  o que mais gostava do gringo Leone, entre todos os meninos. 

*Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Membro titular da Academia de Letras da Bahia e Pen Clube do Brasil. Comenda da Ordem do Mérito da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Publicado em Portugal, Itália, França, Alemanha, Rússia, México, Dinamarca e Estados Unidos. Pertence à Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. 

terça-feira, 25 de julho de 2017






                            Dia Nacional do Escritor





Hoje, 25 de agosto, é dia de homenagear os escritores brasileiros e toda produção literária do Brasil. É também por estas obras que ganhamos experiências e nos empoderamos de conhecimento.
Recebi de minha filha Josefina uma mensagem que muito me comoveu. Transcrevo-a abaixo:

Meu pai,
Hoje comemoramos o dia do escritor.

Parabéns àquela pessoa que torna as nossas vidas mais leves e que consegue transformar o cotidiano em poesia, contos, crônicas, romances.

Parabéns àquele que consegue nos transportar de nossas vidas medíocres e vazias para contos de fadas, para aventuras, para romances,  para viagens distantes, siderais, espaciais. 
Parabéns especial a você meu pai, que não deixou esse sonho morrer, que lutou por ele e conseguiu transformá-lo em realidade.
Por isso, meus sinceros e maiores parabéns.
De sua filha,
Josefina





terça-feira, 18 de julho de 2017



           Versos na Pulseira do Tempo
                       

                               Cyro de Mattos


O baiano Renato Prata nasceu em Itabuna, como sua irmã Heloísa Prazeres, que também é poeta.  Em Breve antologia poética (2017) publica dessa vez uma seleção de poemas extraídos de seus quatro livros:  Sob o cerco de muros e pássaros (2003), A quinta estação (2007), A pulseira do tempo (2012) e Mar Interior (2015), além de outros retirados das antologias  Poetas da Bahia II e III (2003, 2015) e  Outros Riscos (2013). Organizada por Heloísa Prazeres, essa Breve Antologia Poética, prestes a ser publicada pela editora Mondrongo, é  uma amostragem poética da vida em seu claro parentesco com a música, a considerar espaços da  significação ideal do mundo através do verso.
De marcante presença na lírica contemporânea da Bahia,  o poeta de gestos recatados preferiu conviver com o seu projeto estético, em exercício qualificado, durante décadas até que comparecesse em livro. Recolhido ao silêncio de suas criações, não optou  por conviver em grupos, forjar alianças, para desfrutar de certo comércio no setor, muito comum aos elogios mútuos e fáceis. Tornou-se o principal crítico de sua produção poética antes de fazer sua estreia  como um poeta maduro, privilegiado, na sua expressividade, por meio das construções de  formas líricas, tanto nos versos livres como nos de estruturas fixas.
Conquistou alguns prêmios literários importantes na Bahia. Um de seus livros teve a edição do próprio  autor, já  outros três foram publicados por editoras  baianas de porte pequeno, sem atuação no circuito nacional. Mas o que vale é a sua  poesia, que,   de livro a livro, apresenta-se  integrada de linguagem e vida. 
Poeta de ritmo melodioso, desde a estreia em Sob o cerco de muros e pássaros revela que,  se procede dos deuses, viaja com tropeços na claridade. Lê-se no poema “O passado investe nossos passos” que os versos da juventude nem chegaram a ter escritura, “gastaram-se no limbo por decênios”.  Sem cantar “as efusões de um dia,  amadas inúteis, o primeiro encontro com a morte”, a certa altura  indaga da razão dessas impressões líricas, guardando sonhos no que sabem o quanto viver, no fluxo e refluxo do prazer,  têm o passado que investe nossos passos. Leva-nos  à conclusão de que um clima é formado de acréscimos líricos,  que a cada momento formam um corpo concentrado em si de sentimentos, escavações no interior, que são expostas aos ventos. 
É nesse tom essencialmente lírico, participante de momentos com aguda sensibilidade,  que encontramos  um poeta inventor do poema com lastros da miragem, ternuras, purezas, maciez e algum presságio. Toca em nossos ouvidos uma poesia orvalhada de emoções, trinado de pássaro, jogo das ondas no vasto mar de  ideias, que   no seu timbre ritmado de cores, sutilezas várias, corre e voa com a musicalidade de sua composição quando escalavra o vento.  Tece com sabedoria o silêncio marcado pela ilusão, que se  impôs nas trilhas do sonho através do intercâmbio da palavra capaz de  esclarecer o  mundo.
De arguta leitura da vida, compartimentada no verso, como no poema “Rastrear os deuses”, Renato Prata  expõe sua crença na poesia quando afirma que elabora o verso para atravessar divisas da solidão, maneja-o com precisão para capturar sentidos que revelam o mundo.

Eu faço versos mais cedo
Quando arfa o silêncio pela casa
Olhos de neblina e entressonho
Rastreando os deuses da poesia.

         Na poética construída com paciência e consciência do ofício,   nota-se como  o poeta em si concebe esse sujeito que tem veias de vidro para refletir o mundo, esse habitante daquela ilha verde com a aridez dos anos,  expedindo canção e danação, mas desprovido de cupom fiscal. Quando dotado de sensibilidade arguta, constrói belas e verdadeiras estrofes, tentando equilibrar-se entre espantos,  na direção constante de quem incorpora novas opiniões perante a experiência humana no mundo.  

Não guardo moldes e cálculos
Soletro tempos e pássaros
Mas tudo exponho aos ventos.

         Nessa Breve Antologia Poética, de novo percebo as qualidades de um discurso que vaza lucidez, pulsando nas intimidades de suas estações com a pulseira do tempo o eu lírico, em procedimentos de teor filosófico, até mesmo nas  incursões  expressivas metalingüísticas. Nessas suas maneiras alusivas da vida, que são apenas ondas antes de alcançar o cume e espraiar na metáfora, prova ser a sua força a de um lírico autêntico,  a ação quase não se fazendo perceptível,  o poeta caminhando  pelo  interior de espaços que existem independentes de sua forma instrumental,  manifestando-se    com imagens  que se ajustam a uma inventiva formal que só os  poetas experientes dominam.

Contra o silêncio de seres e objetos,  em suas relações instransponíveis ao primeiro golpe de vista, emerge esse  poeta de sentidos e visões  penetrantes do que importa deixar-se ficar, vale tocar e decifrar. Revela, em sua legítima impressão digital, sinais que reverberam solidões, estados de alma por entre cenas  do cotidiano, plasmadas pelas luzes da memória, transes e emoções de quem sabe ser isso a veia e o veio para dialogar com o outro nas incompletudes do tempo,  indiferente ao que nos envolve e habita no trânsito da existência.  Desse ponto de vista, existe sem dúvida uma proposta formulada que chamo de pulsações líricas  no labirinto de Orfeu, que comove nessa coisa afável, diáfana, feita de versos e estrofes para suportar a vida.