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terça-feira, 29 de maio de 2018








        Antônio Torres e Seu   Querido Canibal 
                           
                                      Cyro de Mattos

Antes da chegada do branco europeu  por aqui, os nativos eram os donos desse  Brasil imenso.  Exerciam  um ritual próprio de vida, que aprenderam dos antepassados. Viviam na tribo, cercados pela natureza intacta.   Viviam em liberdade na Baía de Guanabara ou em qualquer praia do Rio de Janeiro, no século XVI, como de resto no vasto  território brasileiro. Na paisagem natural da Baía de Guanabara, as mulheres banhavam-se no rio Carioca,  preparavam uma bebida com o milho ou a mandioca,  o cauim, que a tribo apreciava.  Como os donos  da terra e das águas,  caçavam e pescavam.  Viviam em comunhão com a  natureza, daí serem vistos  no início pelo branco invasor como o modelo do bom homem em seu estado selvagem.
 Em outro momento foram observados como objeto de dupla finalidade da colonização europeia. O europeu colonizador queria tirar proveito econômico do estado selvagem do índio,  aproveitando-o como mão de obra gratuita e necessária, enquanto a catequese desejava  fazê-lo como o novo habitante do  reino cristão, libertando-o do paganismo. O índio servia assim como elemento de observação por gente que vinha de mares nunca antes navegados  e  de crítica no campo literário.
Na sua famosa Carta de Achamento, o escrivão Pero Vaz  Caminha  inicia toda a série de crônicas e de literatura descritiva, tendo como abordagem um  Brasil nascente em estado primitivo.  Esse primeiro encontro através do  escrivão luso e os nativos   informa sobre uma gente de boa aparência, mansa e atraente  na sua pureza para a conversão.  Ao escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral, seguiram-se outros cronistas tratando do assunto com  material mais amplo,    e,  entre eles, Gabriel Soares de Sousa, Pero de Magalhães Gandavo,  Pero Lopes de Sousa e Hans Staden.
      O tema do índio em  Meu querido canibal (2000), de Antonio Torres, tem novo significado  e representatividade romanesca  na  literatura brasileira. Se bem que em outro contexto, o texto que resulta deste  romancista consagrado, moderno, de técnica  modelar,  pende para o herói derrotado, e, nessa constatação, em que impera a linguagem acessível  para delinear   a crônica no espaço do descaso histórico com o drama e a   tragédia dos nativos,  mostra o índio como uma criatura  sem saída  em sua heróica atitude guerreira,  transformadora de  sua comunhão com a natureza.  Opera  como  um dos elementos de uma nova concepção de civilização, que resiste ao conquistador, mas que termina por ser exterminado. 
        Em José de Alencar, as qualidades do nosso primeiro habitante são  idealizadas e executadas como compensação. Elege-se a exaltação romântica  das virtudes individuais e sociais, os sentimentos de orgulho,  lealdade,  amor à liberdade,   valentia, que o transformam no herói nacional, moldado assim com caracteres próprios, distantes das adaptações europeias. 
          Com Adonias Filho, o assunto lembra até certo ponto o índio de José de Alencar no  que diz respeito ao tratamento digno que lhe é conferido, embora  as visões sobre o mesmo tema  se afastem no plano da elaboração e execução ficcionais do mundo porque nascidas em épocas diferentes, contextos distantes, ajustando-se  cada uma delas às suas peculiaridades e metas. No indianismo adoniano,   o herói trágico mostra-se na trama vinculada à selva,  na infância da região cacaueira baiana,  penetrada por forças obsessivas do destino, como elemento da ação ou que impulsiona o episódio. As determinantes coincidentes do  naturalismo situam esse herói à maneira de um percurso imutável, em que o trágico fixa suas garras de horror e infortúnio, tendo como proposta final a catarse, que chega impregnada do alívio. Ou encontra saída na ressurreição, naquela dimensão que não é desta vida.
           Em Antonio Torres,  a personalidade do índio Cunhambepe se faz conhecer através de  própria conduta marcada  no gesto primitivo, entre a naturalidade da existência e a oposição ante o invasor europeu.  Os nativos são vistos pelo autor  através de observações sensatas,  pesquisa ampla   nos estudiosos do assunto, em documentos, revistas e jornais.  A essência dessa personalidade do nativo chega de  zonas críticas,  que se vai formando nas  lembranças do rito,  rastros da desgraça,  nas vozes do embuste e da farsa histórica,  na repercussão  do som e da fúria, que, vinda do passado, está  como vestígios no presente.
Desde a estreia em 1972,  com o romance  Um cão uivando para a Lua, o  baiano  Antônio Tores chamou a atenção da crítica e leitores do melhor ambiente  literário como um romancista  que chegava para ficar com destaque no corpo das letras brasileiras contemporâneas.  O  consagrado romancista, que nasceu no povoado do Junco, atual município de Sátiro Dias, na Bahia, no início foi jornalista  em São Paulo. Ao longo de sua carreira literária, produziu, entre outros,   os romances Os homens  dos pés redondos ( 1973), Essa Terra (1976), Balada da infância perdida ( 1986), Um táxi para Viena d’Áustria (1991),   O cachorro e o lobo (1997) e Meu querido canibal ((2000).
      Seus livros têm freqüentes reedições.  Um deles, Meu querido canibal ,  já alcança a décima segunda edição. Nestes tempos velozes da tecnologia,  apetência constante  dos  meios eletrônicos, primazia da imagem visual, em que se propala que o romance impresso tem seus dias contados, o caso de Antonio Torres desdiz  a afirmativa das posições unilaterais, precipitadas.   É o testemunho de que não é bem assim. Muda-se o suporte do livro, mas o romance impresso, de boas qualidades literárias,  visibilidade, densidade, rapidez, como quer Italo Calvino, precisão no que pretende dizer,  linguagem acessível, sem ser vulgar, conteúdo rico, imaginário esplêndido,  continua vivo.
      Em Meu querido canibal, numa sacada inteligente,  Antonio Torres reinventa-se em escritor-cronista moderno para, de peito aberto, como um neorromântico, mostrar-se indignado com a memória de um herói verdadeiro,  perdido no tempo, “mesmo tendo demarcado um território e inscrito nele a sua legenda”.   No capítulo 2, alerta que esse herói, de nome Cunhambepe, que quer dizer  homem de fala mansa, era  um guerreiro. Situado no tempo da pedra polida, viveu numa região paradisíaca batizada de Rio de Janeiro. Pertencia à nação tupinambá, que significa Filho do Pai Supremo, povo de Deus,  oriunda do grande tronco tupi-guarani.
       A leitura desse romance em que, desprovido do tom panfletário, gratuito e irresponsável,    denuncia o extermínio do índio brasileiro, eram cerca de seis milhões quando por aqui aportou o português aventureiro, ávido de riquezas, tendo como abono os jesuítas, melhor dizendo, a espada numa mão e a cruz na outra, permite, sem esforço, considerar que Cunhambepe é o primeiro herói de um país cujos rastros terríveis vieram das pegadas truculentas de aventureiros,  degredados, traficantes, corsários,  contrabandistas e corruptos.
     Fácil perceber que a história de Cunhambepe não é do edênico bom selvagem, dono das selvas e das águas,  dos sonhos advindos da natureza em estado puro, vivendo nu como quando se vem ao mundo, na era da pedra lascada,  contemplando-a e tentando adivinhá-la nos seus profundos e assombrosos  mistérios.  Não é a do herói dos brancos e traidor dos índios. É a de quem estava do lado de seu povo, levando-o a lutar  até o último gemido, porque era melhor sucumbir  do que ser submisso ao invasor escravagista. Nisso residia o sentido de quem estava numa guerra estupidamente desigual, entre o canhão avassalador do branco europeu e  a flecha banida  da taba para rolar na mancha das  águas, que  envergonha. .
         Com sua biografia restrita a referências mínimas,  sua história reduzida a poucas linhas, mesmo assim entregue ao sabor das traças,  esse querido canibal herói encontra em Antonio Torres uma reconstituição brava e eficaz  resultante da motivação digna do imaginário e da transpiração eficiente na escrita comprometida com  a verdade. Colhida e corrigida  esta em estudiosos do assunto, tantas vezes equivocados, quando dotados    de preconceito e superficialidade   omitem  a figura nativa na galeria dos heróis autênticos da história desse país, porque   em   conluio com  o embuste no tratamento oficial do tema.
         Adorável canibal, esse guerreiro, herói verdadeiro,  encontrado por Antonio Torres para o bem da literatura brasileira,  retirado da nebulosa de nossa história com   traços firmes na escrita ágil e atraente.       

REFERÊNCIAS

TORRES, Antônio. Meu querido canibal, Editora Record, Rio, 2016.
ALMEIDA, José Maurício de. A tradição regionalista no romance brasileiro. Editora Achiamé, Rio de janeiro, 1981.
CÂNDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1964, segundo volume.
MATTOS, Cyro de. As criações de Adonias Filho, Publicações da Academia Brasileira de Letras, Rio, 2017.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira.  José Olympio Editora, Rio,  1960.

*Cyro de Mattos é contista, poeta, cronista, ensaísta, romancista, organizador de antologia,  autor de livros para crianças e jovens. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.  Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Tem livro publicado em Portugal, Itália, França, Alemanha, Espanha e Dinamarca. Conquistou o Prêmio Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, o  Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras,   Associação Paulista de Críticos de Arte   e o Prêmio Nacional Pen Clube do Brasil. 



quarta-feira, 23 de maio de 2018





           O Pior Time do Mundo
         
                   Cyro de Mattos 
             

Cafuringa Futebol Clube. Da cidade de Pilão Danado. Só interessava perder. Perder, perder, perder. Ganhar nem pensar. O pior time do mundo. Encontrasse um time pior, estivesse ganhando o jogo por um a zero, os defensores dessem um jeito, antes que o juiz trilasse o apito final. Fizesse logo dois pênaltis, um atrás do outro, a derrota não escapasse ao apagar das luzes. Torcedores iam ao delírio. Foguetes pipocavam. Gritos e gritos e gritos. Ê-Ô, Ê-Ô,  Cafuringa  é Perdedor! Ê-Ô, Cafuringa é perdedor.
O grito de guerra ecoava no estádio.
Costumava perder de goleada. Dez a zero a última, o auge da emoção, torcedores choravam, abraçavam-se.  Noticiário com manchete empolgante na mídia. Plantão de notícia.  A TV estampava. Mais Uma Derrota do Pior Time do Mundo.  De goleada: treze  a zero. O Cafuringa Futebol Clube não deu trégua ao Arempepe Esporte Clube, um que gostava também de perder, mas nem tanto como o rival. 
O pior em campo: Gol-Contra.  Zagueiro especializado em fazer gol contra. Na goleada última fez três.  Um de cabeça, outro de bicicleta, o terceiro de bicuda, furou a rede.
Era a glória. Não cansava das derrotas. Não tinha jeito.  Nasceu para perder, até a última gota de  sangue.
 Pergunta do repórter ao atacante Zé Velho: 
- Vai acabar hoje  a série centenária de derrotas contra o Pedrada Futebol Clube?
Sem hesitar,  resposta contundente:
- Perder,  perder, perder, uma vez perder, perder até morrer.
Bandeiras desfraldadas.  Retrato dos ídolos tremulando. De arrepiar. Furão, Perna de Pau, Pereba, Azavesso, Frangueiro, Bola Murcha, Chulé. Os mais ovacionados. Ídolos sem igual.  A foto na camisa do torcedor,  rosto sorridente do craque Azavesso, desdentado, cabeludo. No álbum de figurinhas, disputado a peso de ouro pelos colecionadores.
Novos jogadores. O time rejuvenescido. Ganhou de repente por um a zero, a zebra aconteceu contra o Bagunça Futebol e Regatas. Ganhou outra, a terceira seguida. Não era possível! Meu Deus, tem pena da gente,  o presidente suplicou, as  mãos rogando  para o céu.  Demitido o técnico. 
Os torcedores inflamados, sonoro protesto,  passeata aos gritos.  Desaprovação  geral no estádio. De-Canela, ex-astro do time, hoje chefe da torcida organizada, chegou a queimar a camisa do time.
O time entrando no gramado, apupos, xingamentos, ameaças. UM HORROR! Segundo turno, ocupava o primeiro lugar. Podia ser campeão. Aberração, Calamidade. Tragédia.
Até que retomou o rumo certo. Melhor dizendo, o errado, o costumeiro.  Voltou a perder,  uma partida atrás da outra, engordando o famoso vicio. E o refrão voltou a ecoar no estádio: “Eê! Ê! Ê! Perder Pra valer!  Quem quiser venha ver!” Abraços, choro incontido. Fogos de artifício, foguetes, berros, histerismo.
O pior time do mundo na manchete. Com o seu trio de atacantes inesquecível: Mudo,  Zoinho e Surdo.  Ovação geral do torcedor empolgado. Convicto.  Eternamente.

segunda-feira, 14 de maio de 2018


              Dois Craques Grapiúnas  na Elite do Futebol Brasileiro
                        
                                 Cyro de Mattos


Refiro-me a Nandinho e Tuta, dois jogadores grapiúnas que brilharam   na elite do futebol brasileiro,  na  época do pré-estádio do Maracanã. Os jogos mais importantes no Rio eram realizados  até então em São Januário, o maior estádio de futebol carioca. O futebol nacional vivia a transição do amadorismo  para o profissional.  
O jogador Nandinho atuou  no Flamengo, formando com Zizinho e Pirilo o célebre  trio do primeiro  tricampeonato do rubro-negro carioca. No entanto, deu   seus primeiros passos no caminho do futebol jogando pelada no campo das pastagens de Berilo Guimarães, em Itabuna.  Foi para Salvador e ingressou no time juvenil do Bahia onde mais tarde faria parte da equipe profissional. Sagrou-se campeão no time profissional do tricolor baiano em 1940. Quando retornava a Itabuna, treinava para manter a forma no Campo da Desportiva.  Do Bahia transferiu-se para o Flamengo. Depois de passagem destacada no rubro-negro carioca foi jogar no América mineiro onde se sagrou campeão e  se tornou ídolo em  várias temporadas.
O jogador Tuta veio de Uruçuca, antiga Água Preta.  Atuou  no futebol de Ilhéus e  de Itabuna, onde vestiu a camisa da Associação, poderoso time que dominou o futebol amador do  Sul da Bahia na década de  40.  Foi jogar em Salvador no Bahia e, no tricolor baiano,  sagrou-se  também campeão. De lá chegou ao Vasco da Gama, na época em que o   esquadrão de  São Januário   formou  um dos times mais importante de sua história, conhecido como  Expresso da Vitória.  Nessa equipe lendária,   jogavam  Barbosa, Augusto, Ely, Danilo, Friaça,  Ademir Menezes e Chico, que foram servir à Seleção Brasileira de 1950, vice-campeã mundial. 
Importa lembrar que o  grande derby do futebol mineiro era América  e Atlético até meados de 1960. O Cruzeiro ainda não havia surgido como uma potência do futebol brasileiro, com aquele famoso time integrado pelo goleiro  Raul,  os craques Tostão e  Dirceu Lopes, Natal, Zé Carlos e  Euvaldo. O América chegou a se sagrar  dez vezes campeão na época que o seu grande rival  era o Atlético.
Para comemorar a reinauguração do Estádio da Alameda, modernizado e ampliado em março de 1948, de cinco mil para 15 mil espectadores, o América  promoveu um torneio quadrangular, que ficou conhecido como o  Torneio dos Campeões. A disputa reuniu os campeões estaduais de Rio de Janeiro (Vasco), de São Paulo, representado pelo São Paulo, Minas Gerais pelo Atlético, campeão dois anos antes, além do anfitrião América, que se sagrou campeão do torneio e de  Minas Gerais, no final daquele ano. 
Nandinho fez parte do esquadrão do América,  campeão mineiro em 1948, que tinha como técnico o polêmico Yustrich. Já  Tuta jogou no  Vasco da Gama, que tinha como técnico Flávio Costa,  no Torneio dos Campeões , realizado  naquele mesmo ano em Belo Horizonte.
          Enquanto isso,  em 1949 o time  do Arsenal, o mais popular da Inglaterra,   fez uma excursão ao Brasil onde em São Paulo enfrentou o  Corinthians, derrotando-o,  e o Palmeira, que conseguiu um empate a duras penas. Restava enfrentar o Vasco e o Flamengo no São Januário, o gigante da colina.   Na noite de 25 de maio de 1949, uma quarta-feira, São Januário recebeu o maior público de sua história, no amistoso entre o Vasco e o Arsenal.
          A excursão do time britânico era cercada de grande expectativa.  Havia uma mística, que corria no tempo,   alardeando  que o time britânico era o melhor do mundo, e os próprios ingleses julgavam-se  os donos do futebol, pois foram eles os inventores desse esporte.  Por tudo isso, a partida entre Vasco e Arsenal foi cercada de um interesse  enorme, adquirindo até um sabor de decisão de mundial de clubes,  uma vez que,  no ano anterior, o Vasco havia conquistado o título de campeão sul-americano  invicto, no torneio realizado no Chile. Para enfrentar o time da Inglaterra, o  Vasco (foto abaixo) entrou em campo com uma das formações mais fortes da sua história, saindo vencedor da partida  por um a zero, gol de Nestor aos 33 minutos do segundo tempo.
           E o baiano grapiúna  Tuta participou desse time lendário do gigante da colina.
           




*Grapiúna é aquele que nasceu  no Sul da Bahia, na época da conquista da terra e do povoamento. E o que se identifica com uma civilização singular forjada pela lavoura do cacau, ao longo dos anos. 
** Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Membro efetivo  do Pen Clube do Brasil e Academia de Letras da Bahia. Premiado no Brasil,  Portugal, Itália e México. Tem livro publicado em Portugal, Itália,  França, Alemanha e Espanha. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia)