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segunda-feira, 30 de julho de 2018





  Poeta em São Paulo: Álvaro Alves de Faria

                     Cyro de Mattos


Da “Geração 60” dos poetas de São Paulo, Álvaro Alves de Faria é o único que circula por diversas escritas literárias. Publicou romances, novelas, ensaios e peças teatrais encenadas em várias capitais brasileiras. Organizou antologias e praticou o jornalismo literário, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti de Imprensa por duas vezes, em 1976 e 1983.
Ao fazer o lançamento de O Sermão do Viaduto, no Viaduto do Chá, na capital paulista, durante noves recitais, que lhe deram  cinco detenções, até que foram proibidos pelo DOPS por motivos políticos, sob a alegação de que realizava manifestações subversivas, o poeta Álvaro Alves de Faria instalava um comportamento poético diferente do que se estava acostumado a ver nos meios culturais de São Paulo. A geração antecedente de poetas vinha aprisionando a vida nas torres da arte. Outros grupos daquela época demitiam da poesia a intuição, propondo uma sintaxe visual com o mínimo de palavras e a valorização do espaço em branco  na elaboração do poema.  Ao reduzirem o conteúdo à estrutura visual do poema,  suscitavam dúvidas quanto à sua fecundação: a repetição de uma só palavra gerava ausência de criatividade, derivando para um automatismo que desligava a linguagem das matrizes perspectivistas, carregada de símbolos e conotações no discurso  imanente.
Qual profeta moderno, o poeta revolucionário   recorria ao sermão para atar as pontas da vida e da poesia nas grandes e desertas  planícies. Manipulava a metáfora, a alegoria e a parábola na via pública até perder-se na noção de sua altura, exatamente naquele ponto no qual  se busca reencontrar  uma morada antiga. Seus versos cheios de verdade compareciam  na paisagem de incertezas sob o tom luminoso para resistir  aos rumores e tremores do abismo. Com uma dicção bíblica feita de imagens corajosas, sábias,  enfrentava o poeta visionário  a ordem política atemorizadora, que bania o amor, galopava nas trevas, como se a solidariedade fosse coisa inútil e o absurdo do déspota, a única tecla. A voz de uma beleza profunda propagava-se no intuito de iluminar de esperança os desertos. Repercutia com seu ramo de luz no tema da pobreza e  da criatura indefesa. Do coração sensitivo do poeta atuante ofertava-se o trigo vindo dos longes comovidos para os sem voz num campo de mágoas.
Já em  20 Poemas Quase Líricos e Algumas Canções para Coimbra, o poeta do sermão no Viaduto do Chá conduz o coração para o transe lírico da memória. A forma do poema, o ritmo que flui do dizer poético reiterativo sobre seres e coisas  aderem ao fluxo lírico de forte teor emotivo. O coração acordado do poeta pulsando no presente  fere a “memória da memória”,  assinala a ensaísta portuguesa Graça Capinha.,   da Universidade de Coimbra. Atravessa lugares do imaginário e do real na medida em que a viagem inexplicável vai sendo empreendida pelos caminhos do tempo. O coração do andante solitário transpira momentos que lhe são caros, e a memória veste-se de  imagens com passagens puras e ardentes. Situações  que chegam de rostos, sombras,  lugares superpostos  liberados do subconsciente, coabitam no poeta,  trazendo  daquela zona suspensa  do azul o tempo que perdura no afeto.
A emoção do poeta cresce nas gradações do amor que a cidade revela nas ruas, becos, ofícios que afloram de outras idades, degraus que não têm fim, telhados acumulados de ausência, janelas fechadas, portas  que não se abrem.  Circula nas alusões aos poetas nos cafés, resvala no efêmero ante o eterno que desce no rio Mondego. Oscila  entre memória e coração avivando as  paragens dos antepassados, o pai nasceu em Lobito, Angola, a mãe em Famalicão, Portugal.  A memória aflora do que há de mais amoroso, o coração pulsa  candente no que há de mais sensível e essencial. No encontro agitado da sensibilidade produzem  uma poesia palpitante nas fissuras cósmicas, pendendo de remotas raízes portuguesas.
Permanente registro de atração por uma cidade que o chama, o poeta em densidade lírica a atravessa no olhar e se deixa invadir de impressões, ilusões, visões doloridas de secreto caminhar, através de sustos que não se decifram, porejando ternuras no imaginário  que delira. E, do ardor no sermão em viaduto, no fluxo mediúnico que verte o comportamento da linguagem inserida no discurso,  ao soluço lúcido do caminhante solitário, faz e refaz  andanças do mesmo todo, tentando compreender determinada realidade escamoteada sob a máscara do que foi e no que é visto com suas  verdades essenciais. De qualquer modo, travessia.


 * O texto “Poeta em São Paulo: Álvaro Alves de Faria” pertence ao livro A Leitura Lembrada, ensaios, em andamento.

sábado, 28 de julho de 2018


OS BONS TEMPOS DO CINEMA EM ITABUNA

A  Sétima Arte teve seus dias de glória em Itabuna. Além das casas de espetáculos – cinemas -, alguns itabunenses tentaram entrar para o seleto grupo de consagrados diretores, mas não alcançaram o sucesso esperado. O cinema em Itabuna foi objeto de monografia de especialização em história regional, escrita pela professora Iolanda Brito Costa, que pesquisou esse tipo de lazer havido na cidade durante  quase 80 anos.
Informa a professora Iolanda Costa que nessa época Itabuna pode contar com aproximadamente  15 cinemas, alguns espaços para projeções cinematográficas e outros dois clubes de cinema. “ Como uma das principais formas de lazer e entretenimento  de uma cidade que se fez  à  sombra dos cacauais e da riqueza de suas safras, o cinema seduziu, mostrou o mundo, disseminou idéias, ditou comportamentos”, revelou  a professora.
Tratava-se de uma novidade. Em 1908, um cinema ambulante já conseguia desviar a atenção do público que participava da Santa Missão pregada pelos padres capuchinhos. Porém,  foi somente em 1915 que o fotógrafo Omar Cana Brasil instalou um Pathé e o filme: “Os Últimos Dias de Pompéia” fez sua estréia em um armazém situado na Travessa  Oswaldo Cruz, 29. Como ainda eram projeções mudas, aconteciam acompanhadas  de músicas tocadas pelos  músicos locais.
Em 1918,  Antônio da Silveira inaugurou o Ideal Cinema com o filme “Madame Bovary”, estrelado por  Póla Negri. Ainda não havia casas apropriadas para os espetáculos. No Ideal Cinema também eram apresentados atores locais. Nessa época também foi instalado, pelos padres vicentinos, o Cinema Recreio, com o objetivo de angariar recursos para a construção de um asilo.
Uma das curiosidades pesquisadas em livros e na imprensa local,  citadas na monografia da professora Iolanda Costa, foi o sonho de fazer a sétima arte em Itabuna por amadores. Arlindo Silveira e Brasilino Nery projetavam filmes de atualidades, notícias e reportagens, como também faziam filmagens, que passavam em reuniões sociais. Uma dessas filmagens foi uma batalha entre o Tiro de Guerra e os bandidos Cauaçus, que   certa vez tinham invadido a cidade.
 O Cine Ita surgiu nos idos de 1925, na rua Quartel Velho, hoje Rui Barbosa, próximo à Padaria Modelo. Por ficar situada em local próximo à zona do meretrício, ficou conhecido como “Cinema Cai Nágua” e “Poeira”. Seus freqüentadores eram, em sua maioria, vadios, bêbados, arruaceiros e analfabetos. Os assentos eram do tipo “galinheiro”, como os de circo, e muitos filmes eram legendados. Devido a isso, pessoas letradas como Otoni Silva faziam a leitura e recebiam a entrada como pagamento.
Os filmes eram alugados em Salvador e vinham para serem projetados em vários cinemas ao mesmo tempo. Primeiro eles passavam no Ideal ou Elite,  e logo depois um portador corria para entregar a fita para ser exibida  no Ita. Quando havia qualquer contratempo, a platéia ameaçava com um “quebra-quebra”. Localizado na atual Avenida do Cinqüentenário, onde funcionou a loja Os Gonçalves, o Elite Cinema ficou conhecido  pelo fato costumeiro de o seu gerente anunciar os próximos filmes: “Amanhã vai passar o cowboy na sessão da noite. Tem porrada como  corno!”
Com a chegada do cinema falado,  musicais com os cantores  Martha Egerth e Dick Powel, românticos com Greta Garbo e John Gilbert, o anúncio  dos filmes passou a ser divulgado em jornais da época. As sessões com filmes de nudez eram projetadas somente para homens e em horários especiais. Enciumadas, as mulheres perguntavam umas às outras, bo círculo das amigas íntimas,  se os maridos  tinham ido realmente ao cinema naquela oportunidade para assistirem cenas imorais.
No final da década de 30 foi construído o Cine-Teatro Itabuna, inaugurado em    1* de janeiro de 1940, pelo empresário Arlindo Valverde,  considerado como o grande empreendimento da época. O Cine Odeon  nessa época apresentou filmes de renome como “Gavião do Mar” e “ E o Vento Levou”.
Nas décadas de 50 e 60, existiu o Cine Portugal, que funcionava no Bairro de Fátima, junto à atual Igreja de Nossa Senhora de Fátima. Era de propriedade dos portugueses. Suas instalações eram precárias, a platéia se acomodava em bancos, cadeiras e latas de biscoito, que existia em abundância, como um dos produtos comercializados pelos portugueses. Apesar da falta de comodidade, eram exibidos filmes de sucesso.
De todos os cinemas de Itabuna, o que funcionou por mais tempo foi o Cine-Teatro Itabuna, vendido para a Igreja Universal do Reino de Deus. Era um dos mais modernos e possuía dois pavimentos, com capacidade para 840 lugares. Como foi adaptado para teatro, possuía palco, cortinas e camarim, e nele se apresentaram artistas famosos como  Ângela Maria, Nelson Gonçalves, Emilinha Borba, Francisco Carlos, Mayza, Orlando Silva, Rodolfo Maia, Procópio Ferreira, Pedro Bloch, dentre outros.
Nas décadas de 60 e 70, as portas dos cinemas serviam como  ponto de encontro de namorados e amigos. A garotada ali comparecia  para trocar   no passeio gibi e guri. Nem sempre os filmes trazidos para Itabuna rendiam o lucro esperado, principalmente os considerados com um enredo culto. Os  filmes de mocinho e de aventura eram os que mais agradavam o público e os donos de cinema.
Insatisfeitos com grande parte dos filmes apresentados como de baixo nível artístico,  um grupo de jovens integrado por Adelino Kfoury, Roberto Midlej e José Penedo Cavalcante, entre outros, fundaram o “Clube de Cinema de Itabuna”. Tinha como finalidade o estudo, a defesa e a divulgação da arte cinematográfica. Os sócios se reuniam no Cine Itabuna, em sessões fechadas, para assistir e discutir filmes franceses,  italianos,  americanos como “Casablanca”, “Farrapo Humano” e “ Marcados pela Sarjeta”.
Apesar de não ter vida longa, devido a motivos de ordem econômica, pois as despesas eram rateadas entre os sócios, o  Clube do Cinema tentou  realizar uma produção de longa-metragem sobre a região, denominada “Os Jagunços”. A produção, que homenagearia o cinqüentenário da cidade, tinha argumento de Pedro Baracat e  refletiria a sociedade cacaueira no início do século.
De acordo com a monografia elaborada pela professora Iolanda Costa, o cinema era tão importante em Itabuna por ser a distração de todos,  que, em 1956, estudantes revoltados com a empresa Cavalcante depredaram o Cine Itabuna, tentando fazer o mesmo com o Cine Plaza, o  que foi evitado graças à intervenção da polícia. Reivindicavam melhores acomodações e filmes de boa qualidade. .
Havia insatisfação também com relação ao Cine Glória, depois transformado em Cine Plaza. Em 1959,  uma notícia   publicada no  Diário de Itabuna informava que os alunos da Escola Técnica de Comércio deixavam de freqüentar as aulas para ir ao cinema namorar. Revoltados,   um grupo de estudantes depredou o cinema e ainda levaram todo o dinheiro do caixa.
Naquela época já havia  interesse e preocupação em fazer com que o cinema tivesse uma função educativa. Colunistas como Roberto Midlej, Pedro Baracat, Milton Rosário, Nicolau Midlej, Hermes Magalhães e Carlos Henrique reivindicavam melhores filmes, assentos condignos e fitas  sem cortes. Acusavam a entrada de menores em sessões impróprias e  ainda a insensibilidade com algazarra da platéia diante de um bom filme.
Em 1959, o empresário Teodoro Ribeiro Guimarães anunciou a construção de um luxuoso cinema com capacidade para mais de mil lugares; Era o Cine Marabá. Nesse mesmo ano, no Bairro do Cajueiro, hoje Fátima, foi inaugurado o Cine Oásis, com o filme “Demetrius, o Gladiador”. Como ficava próximo à zona do meretrício, tinha como costume a projeção de filmes de sexo não explícito, embora às quartas-feiras fossem  exibidos filmes de qualidade.
Na década de 60 surgiu o Cine Catalunha,  inaugurado com o filme “Bem-Hur”, uma superprodução épico-religiosa. Pertenceu ao empresário e político Paulo Nunes, também proprietário da Radio Difusora. Aos domingos o seu palco era ocupado com programas de auditório, animados por Titio Brandão e Germano da Silva. Esses programas revelaram  cantores regionais e trouxeram para Itabuna artistas de expressão nacional.
Durante boa parte da década de 60, a cidade possuiu cinco cinemas: Cine-Teatro Itabuna, Plaza, Oásis, Catalunha e Marabá. Nessa época, os empresários Paulo Nunes e Washington Setenta  eram os donos dos melhores cinemas da cidade. Cada um deles queria que o seu cinema apresentasse o melhor filme. Eram trazidos para Itabuna os filmes de sucesso mundial, que formavam filas quilométricas para a compra de ingresso na estréia.
Com a enchente de 1967, os cinemas  Marabá e o Catalunha foram danificados pelas águas. Apenas o Marabá foi reformado, mas não teve  vida longa,  foi transformado em prédio comercial. Restaram apenas o Cine Itabuna e o Oásis,  que começaram a passar filmes de bangue-bangue, Kung-Fu e pornô. A ausência de bons filmes, a crescente sedução  das televisões e do vídeo cassete afastaram as famílias dos cinemas, que, aos poucos,  foram fechando suas portas.
Nos anos 80 restava aos amantes do cinema uma última opção: o Teatro Estudantil Itabunense (TEI), que funcionou como um cine clube. Atualmente o prédio do Cine Itabuna abriga a Igreja Universal do Reino de Deus, e o do Cine Catalunha, o Colégio Galileu. No prédio onde funcionou o Cine Oásis  há uma revenda de automóveis usados. No do  Marabá funciona  uma galeria de lojas e onde foi o Plaza uma academia de ginástica.
Duas modernas salas de cinema foram montadas  em  2001,  no Jequitibá Plaza Shopping, pela empresa Starplex. A iniciativa chegava para desmistificar a concorrência sofrida pelos cinemas  através da televisão e o vídeo cassete. Esses cinemas vêm exibindo filmes de qualidade, com lançamento recente em todo o Brasil. Os que gostam da sétima arte têm  lotando suas salas.  
  

terça-feira, 24 de julho de 2018





    Fim de Carreira  do Goleador 

Conto de Cyro de Mattos

Se pudesse voltar no tempo, nada melhor poderia acontecer para ele  nesse mundo. Gostaria de ver aquele gol de calcanhar  no primeiro campeonato conquistado pelo  Grêmio. Andava desligado do trabalho na carpintaria. Não entregava as encomendas aos fregueses  no tempo prometido. Triste agora  pela casa. Desde que deixou de ser aquele centroavante inteligente, que fazia gols com um toque de  classe,  a torcida levantava e aplaudia de pé. Visivelmente se via no rosto que não estava de bem com a vida.
 Irritava-se com  qualquer coisa insignificante que acontecesse em casa. A comida,  que a mulher  preparava  com arte  e bom-gosto,  sempre elogiada por ele,  não produzia mais aquela sensação  que molhava de prazer o coração. Os olhos vermelhos como se tivesse chorado escondido no quartinho dos fundos.  Deixara de ser o marido carinhoso,  o pai paciente com os filhos, o vizinho admirado por seus préstimos  na hora necessária.  
Ensimesmado evitava falar com os de casa. Sentava na cadeira de vime e ficava na sala com os olhos fixados nas fotos dos times de futebol,  o quadro pendurado na parede com a tinta desbotada, a mancha da umidade em cada canto.  Lá estava a  famosa esquadra da Associação, que deu jogadores para os times do Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Bahia, como naquele tempo era chamado  Salvador. Estreara  no Campo da Desportiva  como centroavante, num domingo de sol, no clássico dos clássicos local,  Janízaros contra a Associação.
 Quase um menino, que não ficava parado, nem temia o zagueiro alto e corpulento. Mexia-se  pelos dois lados, fazia bem  o pivô e deixava o zagueiro preso no lance. Mostrou logo que era   um centroavante inteligente, que veio para ficar entre os bons goleadores do campeonato da Liga.  Formou ao lado de Juca, o professor, uma dupla de atacantes  que se tornou célebre  pelas tabelinhas que fazia com facilidade.
Fez gols espetaculares,  que deixavam o torcedor  pasmo, tirando-o do sério.  Gol sem ângulo, de lençol no zagueiro, por entre as pernas do goleiro.  Nesse tempo  aprendeu  muito  com Juca, que certa vez lhe disse,  bater na bola  era questão de jeito.  O atacante devia estar sempre  no momento certo dentro da área,  receber a bola, não se afobar,   fazer o gol como se estivesse fazendo uma obra de arte.  Não era por acaso que  Juca era chamado de professor, maestro,  mago, milagreiro,  usava bem o  pé esquerdo e o direito, dominando e batendo na bola com inteligência  e  precisão. Era também bom no cabeceio.    
 Fixava o olhar no retrato com o esquadrão do São Cristóvão, o time dos motoristas.  Lá estavam Mudo, Almir e  Mala, este em fim de carreira.  Era um franzino atacante, de pernas compridas,  parecia lento, mas  aparecia  na grande área quando menos se esperava. Desviava-se do marcador com um  drible seco  e entregava a bola a ele para fazer o gol. Fez uma dupla de atacante inesquecível com Mala  quando então se firmara como um goleador implacável no cabeceio. Mala  observava que importante era fazer a bola correr, o jogador não era preciso.  Dizia  que tinha preferência de receber a bola quem não ficava parado no vaivém do jogo como um morcego tirando proveito do esforço dos companheiros.   Lá estava ele ao lado de Mala, um jogador sabido, a  fotografia  amarelecida pelo tempo, pendurada na parede com a tinta desbotada.
A  melhor dupla que armava o jogo para ele foi formada com o alegre Lubião e  o endiabrado Macaquinho. Ele então  jogava no Grêmio.  Lubião  fazia do jogo um show à parte quando driblava ou  lançava com perfeição a bola longa para o companheiro.   Macaquinho era um driblador contumaz,  invejável.  Um  malabarista com seus dribles curtos  repetidos, fazendo  o adversário ter vexames.   Lubião ou Macaqujinho,  municiando a bola para ele,  fez com que tivesse a sua melhor fase de centroavante goleador no campeonato da Liga. Com aquela dupla sensacional, várias vezes fora o goleador do Janízaros no  campeonato. 
O bigode branco, a cabeça calva, triste pelos cômodos da casa acanhada,  erguida numa das margens do rio, no bairro da  Burundanga. Macaquinho, Lubião, Juca, Mala e tantos outros jogadores, que deixaram a sua marca no Campo da Desportiva,  já tinham pendurado as chuteiras, enquanto ele teimava em não abandonar o futebol, mesmo que continuasse parado na pequena área do time adversário, nem precisando ser marcado de perto pelo zagueiro.  Não corria, movimentava-se com dificuldade,  não sabia o que fazer com a bola quando por acaso chegava onde estava  como uma máquina velha enferrujada, sem força.  Quase sempre era flagrado  em impedimento. 
Os  torcedores  não perdoavam sua lerdeza na partida. Rodrigo Bocão  com o seu berro avassalador,  que irrompia na garganta estrondosa,  era quem mais gostava de vaiar quando via Noca,  mal das pernas, sem conseguir pegar na bola. Gritava: “Sai do campo, capacete, lugar de ferrugem é na sucata!” Torcedores apupavam. Um chamava Noca de cabeça pelada, bola de bilhar, campo de aviação. Outro investia sem dó: Toicinho luminoso,  coco verde envernizado,  deixa o jogo, preguiçoso safado!
Jogava agora no Itapé, o pior time do campeonato. Ultimamente dera para jogar com o gorro na cabeça, tentando esconder a careca brilhante em tarde de sol e, assim,  evitar que os torcedores  ficassem chamando-o por aqueles apelidos que tanto o irritavam.
Naquele domingo de nuvens cor de chumbo,  ninguém podia imaginar o que estava reservado para Noca,  na última partida do segundo turno. O  Itapé iria jogar com o Flamengo,  que já havia ganho  o primeiro turno.   Bastava que empatasse com o Itapé para o rubro-negro ganhar o segundo turno e se sagrar campeão invicto no ano em que a cidade comemorava  cinqüenta anos  de emancipação política.
 Era goleada certa do Flamengo, só um milagre poderia fazer que até empatasse com o lanterninha  Itapé. O primeiro tempo terminou zero a zero. Nada que faziam no jogo dava certo para os jogadores do Flamengo, que jogava  parecendo ser um time pequeno e não  o esquadrão rubro-negro temido, o que tinha mais torcida, o maior papão de  títulos no  campeonato do Campo da  Desportiva. Os torcedores inflamados deram para cantar  versos do hino do clube. “ Vencer, vencer, vencer, uma vez Flamengo, Flamengo até morrer...  seja na terra, seja no mar... “
 Durante a sua pior partida no campeonato daquele ano, o Flamengo dera   muito azar,  o  centroavante Juarez frente ao gol acertou a bola na trave por duas vezes. Perdeu um pênalti. Para piorar, no segundo tempo caiu uma chuva forte,    o gramado ficou enlameado em pouco tempo. Os jogadores começaram a escorregar na cancha cheia de poça d’água. Ficavam sujos de lama, tomavam quedas engraçadas quando iam disputar a bola. Os torcedores sorriam e mangavam.
Nos acréscimos da partida, para a infelicidade dos torcedores do Flamengo, a bola chutada pelo médio volante  Brezegue raspou na careca de Noca, desviou a trajetória , impedindo que o goleiro Asclepíades fizesse a defesa:  tomou  velocidade e foi  entrar no gol. . 
Noca,  sem fôlego, desde o começo da partida, como era costume,   contribuiu daquela vez, no final,  para que o Fluminense, que estava na tabela  atrás do Flamengo por um ponto,  fosse o campeão do segundo turno  e se credenciasse a disputar o título do campeonato com o seu  maior rival.  Houve empate na primeira e segunda partida.  Na terceira,  a decisiva, que seria concluída nos pênaltis,  para  conhecer o campeão, caso terminasse empatada no tempo regulamentar,  o Fluminense venceu o Flamengo por um a zero, tornando-se o campeão municipal no ano do cinqüentenário da cidade.
        Depois daquele gol incomum, Noca  decidiu parar em definitivo  com o futebol. O corpo não obedecia mais a um mínimo movimento que a cabeça queria.   Voltou a ser alegre em casa,  afetuoso com a mulher, bom conselheiro dos  filhos, prestativo com os vizinhos. Por fim,  encerrara a carreira futebolística, deixando sua marca histórica com o time do Itapé, o sempre lanterna  do campeonato. Com um gol esquisito,  de cabeça, melhor dizendo, de careca,   no velho Campo da Desportiva,  de tantas batalhas,  de gloriosa e  saudosa memória.
        Quando perguntaram ao velho Noca,   na barbearia do Álvaro, que tinha sido zagueiro na Associação,  por que resolveu jogar sem o gorro naquela partida contra o Flamengo,  ele sorriu e, calmo, não demorou para informar ao distinto torcedor. Disse que  na véspera do jogo o seu colega Macaquinho apareceu em sonho. Com aquela cara de sagüim, olhinhos miúdos, dentinhos nervosos.  Recomendou:  
        - Jogue  sem o gorro, no domingo irás conquistar a glória na  Desportiva!













terça-feira, 17 de julho de 2018





Solidões de Sonia Coutinho  


               Por Cyro de Mattos

Sabemos que a morte é o que temos de mais certo na vida. Nunca nos  acostumamos com o quadro irreversível dessa senhora que não sabe o que é remorso.  Pensei nisso quando tomei  conhecimento  da notícia chocante de que a escritora  Sonia Coutinho foi encontrada morta pela filha em seu apartamento, no Rio de Janeiro.   Aos 74 anos de idade, a escritora baiana morava sozinha.  Comentou-se que havia  comunicado à filha pouco antes um mal-estar.
     .   A visita dessa senhora  cor de luto é amarga.  Em alguns  casos,  quando se vive muito, preenche-se a vida com ganhos, formando-se uma biografia bem-sucedida no plano familiar, econômico e profissional, ocorre o consolo entre os parentes, amigos e conhecidos do falecido. O trauma é atenuado com  o fato  de que não se podia querer mais do morto. A dura lei da  vida foi para ele  recheada de trunfos. Assim, o falecido, de saudosa memória, deixa boas marcas e lembranças.
Com Sonia Coutinho, a traiçoeira invenção da vida não permitiu sob vários aspectos que os fatos acontecessem no lado azul da canção. Mas  não é o momento agora para se falar das amargas que perseguiram essa admirável  escritora baiana.  Se Virgínia Woolf disse que viver é perigoso, verdade que alcança todos nós,  em nossa condição de solitários no mundo,  com Sonia Coutinho, autora de uma obra na moderna literatura brasileira ao nível de Clarice Lispector, foi para lá de lastimável.
Ela nasceu em Itabuna, em 1939, filha do promotor Natan  Coutinho, homem culto, poeta parnasiano, inteligência brilhante, que chegou a ser  deputado estadual na Bahia. Com a família, ainda menina,  mudou-se para Salvador. Na capital baiana graduou-se em Letras pela Universidade Federal da Bahia.  Depois que estreou com Do Herói Inútil, em 1966, contos, pequeno grande livro, que já prenunciava uma ficcionista de boas qualidades na sondagem e exposição contraditória da alma humana, ela foi morar no Rio onde exerceu o jornalismo. Viveu para sobreviver no Sul do Brasil  também como tradutora de grandes romancistas e  deu prosseguimento à sua carreira literária.
Publicou, entre outros,  Nascimento de Uma Mulher, 1971, Uma Certa Felicidade,1976, O Último Verão de Copacabana, 1985, livros de contos. E os  romances: O Jogo de Ifá,  1980, Atire em Sofia, 1989,  O Caso Alice, 1991,  e Os Seios de Pandora, 1999. Era  também ensaísta. Seus textos participam   de importantes  antologias do conto, no Brasil e exterior. Conquistou prêmios literários expressivos, com destaque para o Jabuti da Câmara Brasileira do Livro (SP), duas vezes, o da Revista Status, para literatura erótica, e o da Fundação Biblioteca Nacional.
Sua ficção une arte e documento para situar o real como vínculo de gravidade nas limitações da condição humana. Desenganos,  desencontros, problemas existenciais e psicológicos de natureza aguda na cidade grande, informam o herói em crise, que a autora logra questionar através de cortes e monólogos interiores,  em suas narrativas curtas e longas, de densidade existencial surpreendente.
Sonia Coutinho pertenceu  à geração desse escriba interiorano.  Dizia-se entre os de sua geração  que tinha temperamento difícil no trato com os companheiros de letras na Bahia. Comigo não foi bem assim. Gostava de privacidade. Cultivava o pensamento livre e se  mostrava contrária à atitude postiça da família burguesa em sua maneira de conceber as pessoas no mundo. Sempre quis ser uma escritora com circulação nacional. Em Salvador foi casada com o poeta Florisvaldo Mattos. Quando foi morar no Rio, viveu  aventura amorosa com o romancista Marcos Santarrita e, por último,  Hélio Pólvora, autor de qualidades expressivas  na arte da criação literária, também nascido em Itabuna.  
A  solidão e sua vocação legítima para escrever o bom texto deram-lhe o convívio íntimo e pessoal para erguer  uma  leitura crítica da vida como poucos.  Um ritual doloroso de intensa celebração dos escombros e ruínas humanas ante a  indiferença da existência.  Seu  grande ponto de gravidade para construir uma obra literária de dimensão maior, com uma  estrutura criativa coesa,   encontrou eco numa dura  solidão, que abraçou como maneira de vida e nunca se afastou dela. Criatura incompreendida por companheiros de geração, foi  autêntica na sua maneira particular de sentir os seres humanos em trânsito no mundo. 
Como ícone da moderna literatura brasileira no século XX, há anos ela já é reconhecida,  nos meios avançados  e da melhor crítica.    

  

domingo, 15 de julho de 2018




ESTÁ DECIDIDO: MINHA TELEVISÃO FICARÁ
 DESLIGADA NA FINAL DA COPA DO MUNDO

Por Marcos Caldeira




(Torcer para a França: mas e as obras pilhadas do Louvre?
Querer bem à Croácia: mas e a apologia ao nazismo?)

A França tem Paris, Rodin e Michel de Montaigne e ainda quer triunfar no futebol. Nem pensar, torcerei para a Croácia, firmei assim que os quadriculados alvirrubros dos Balcãs derrotaram a Inglaterra e se garantiram na final da Copa do Mundo.

No dia seguinte li no “Estadão” que torcedores croatas fizeram a saudação nazista no estádio, durante a semifinal, e virei a folha, com um grito na janela: allez les bleus.

“Pergunte aos argelinos se a França é assim tão libertária, ouvirá casos de perseguições e torturas”, ouvi um professor de história franco-argelina na televisão e voltei a torcer para a seleção do goleiro Danijel Subasic, apesar do segundo esse de seu nome ostentar em cima um acento circunflexo de ponta-cabeça, estranheza para a qual meu teclado nem está preparado.

Abri meu Yahoo e recebi de jornalista italiano, correspondente no Irã, “link” para um site de Oslo, na Noruega, informando que o meio-campista Luka Modric foi acusado de cometer perjúrio num acordo financeiro entre ele e Zdravko Mamic, ex-diretor do clube Dínamo Zagreb investigado por fraude fiscal. Irritei-me e, por 48 minutos, voltei a virar francês desde criancinha, condição que descartei logo porque entrou no meu Whats’App, mandada por membro da tribo K’llooo ga kri, no sul da Etiópia, notícia de que o mesmo Modric acusado de mentir à Justiça de seu país doa parte do salário que recebe no Real Madrid para comprar pernas mecânicas doadas a crianças mutiladas em guerra. Depois dessa, só posso ser Croácia, pus fé.

Amigo meu radicado na holandesa Bourtange, porém, me mandou seis vídeos mostrando croatas gozando o Brasil pela desclassificação nas quartas de final. Parodiavam “Garota de Ipanema” e rolavam no chão, mencionando jocosamente nosso camisa 10, com tamanha arrogância que jurei a partir daquele instante empreender grande empenho espiritual para Kyllian Mbappé enfiar quatros gols na final e comemorá-los com dancinha irritante, ao lado de Paul Pogba e Samuel Umtiti. Fui dormir muito francês.

Bateu insônia, liguei o “tablet” para distrair e li texto publicado no Facebook por um monge no alto da montanha Pico de Adão, no Sri Lanka: “A presidente da Croácia, Kolinda Grabar-Kitarović, viajou para a Rússia com dinheiro do próprio bolso”. Gente da política viajando sem atolar a mão na grana do contribuinte? Dado tão impressionante para um brasileiro que só me restou querer bem a esse povo no último jogo do mundial. Agora é sério, não viro mais a casaca, chega, tudo tem limite.

Pensei que seria assim, mas voltei a gritar “avante, azuis” após me emocionar ao ver o Jornal Nacional contar que o volante N’Golo Kanté, quando menino, recolhia lixo nas ruas de Paris. Reiterei o incentivo sonoro ao me lembrar de dois franceses que empreenderam em Itabira: Raoul de Caux, que veio, viu e fez vinho; e Sarah Pauline Charlotte Marie Gayetti, que mudou o nome para Madre Maria de Jesus e fundou o Colégio Nossa Senhora das Dores, educandário que até outro dia tinha o colonizado hábito de tocar a Marselhesa – escutava do meu quintal, quando morei na Penha: "Allons enfants de la Patrie / Le jour de gloire est arrivé!"

“Torcerá para a França mesmo sabendo que o Louvre tem em seu acervo peças originárias de pilhagens da época de Napoleão Bonaparte?”, gritou um anjinho em meu ombro, trajando camisa assemelhada a tabuleiro de damas. “Mas após o cujo se lascar na batalha ali perto de Waterloo, parte das obras foi devolvida aos países”, argumentei, e ouvi: “Você disse bem: parte, não toda. O Egito, por exemplo, nada recuperou. Você, Marcos, como jornalista, tem obrigação de saber que os nazistas se inspiraram nesse militar francês para também saquear obras de arte em países dominados”. Quando abri a boca para novamente confrontá-lo, o diabo do anjinho apelou e me convenceu a canalizar toda energia à seleção dele. “Esqueceu, Marcos, que há galos azuis na camisa da França?” Heréticos galos azuis, nem Francisco de Goya imaginou tamanho horror. Galos azuis, a maior tragédia depois do dilúvio. Fui dormir muito croata.

Situação alterada radicalmente depois que vi, pelo Instagram, na hora do café da manhã, fotografia postada em Kobe, no Japão, de um muro de prédio público pichado em Zagrebe: “Proteja a Floresta Amazônica: queime um brasileiro”. Aí, já sabe, né? Não que eu seja muito influenciável…

Lyon aumentou o preço do pão – viva a Croácia. Em Zadar taxista foi espancado por jovens ultranacionalistas – avante, França. O treinador Zlatko Dalic não quis salário para comandar a seleção – vamos, Croácia. Em Rijeka, berço do lateral-direito Sime Vrsaljko, tremulam bandeiras de cunho racista – dá-lhe, França. Casa em Montpellier, vi pelo Google Earth, exibe faixa fazendo pilhéria com a matriz africana da seleção de Didier Deschamps – vai, Croácia. Telão em Sibenik mostrou jogadores croatas cantando Bojná Cavoglave, música da banda Thompson, acusada de fazer apologia à organização paramilitar fascista Ustasha, atuante na Segunda Guerra Mundial...

Vai pra lá, volta pra cá, comuniquei à família que nossa televisão será desligada na hora de Croácia x França. Assim, ficarei em paz com minha consciência cívica. Foi aí que Aninha surgiu na sala, vinda do quarto dela, onde penteava sua nova boneca: “O mais repulsivo dos covardes é a quele que, em tempos sombrios, opta pela neutralidade”. Essa santinha do pau oco oculta textos de filosofia e de ciência política na barriga da Barbie, só pode.

Desconectei todos os plugues, tirei o relógio e fui caminhar, começando a sentir arrependimento por ter torcido para Neymar Júnior, Philippe Coutinho e Gabriel Jesus. Brasil, um dos últimos países que aboliram a escravidão.

·        Marcos Caldeira é editor do jornal O Trem Itabirano, de Itabira, Minas Gerais.



quarta-feira, 4 de julho de 2018







O Cronista  Cyro de Mattos
       
         Henrique Frendich


É preciso ter vivido muitos anos para saber que a recordação de certos fatos e coisas nada mais é do que saudade da vida que passa com os dias, semanas e meses. As pessoas, bichos, casas e ruas fogem como nuvens, ninguém pode retê-los. Infelizmente. Nesse tempo de mim procuro juntar fragmentos para me suavizar um pouco com essa saudade permeada de fatos, seres e coisas. De longe retorno agora no que houve para latejar sentimentos para mais eu em mim. (Cyro de Mattos)
A introdução da crônica “Esse tempo de mim” bem pode servir como argumento para as outras que compõem “Um Grapiúna em Frankfurt” (Dobra Literatura, 2013), coletânea de Cyro de Mattos, também cronista da RUBEM. Suas crônicas são, justamente, fragmentos em que o escritor, impossibilitado de reter o tempo, suaviza-se através das recordações de histórias e pessoas que lhe marcaram a vida.
Assim é que o cronista revive episódios de uma infância no sul da Bahia, onde os desbravadores e, por extensão, os seus descendentes são chamados de grapiúna (o nome, de origem indígena, pode se referir a uma pequena ave preta que vive às margens do rio ou a um riacho preto, encontrado nas fazendas de cacau da região).
Nesta infância, sem jogos eletrônicos e com ruas pouco movimentadas, quando o trem ainda fazia parte da vida da cidade, Cyro de Mattos se lembra de antigos Natais, dos doces de sua avó Ana, do seu encantamento por Monteiro Lobato, de sua prima Gringa, de um singelo episódio de dor de dente. Mais crescido, o escritor se lembra da Boate ID e, através de uma fotografia amarelecida, recorda-se dos colegas da faculdade de Direito.
Estas são memórias mais pessoais, mas o livro também está recheado de pequenas biografias que contam episódios com personagens locais – às vezes célebres, como o amigo Jorge Amado, às vezes tipos locais, como o doido manso de apelido Jipe. Cyro de Mattos ressalta virtudes e aprendizados que encontrou através dessas convivências, através dessas amizades – e ele tem boas amizades que vêm desde a juventude e outras que nasceram graças ao milagre operado pela literatura.
Nem sempre, é claro, o cronista tem a felicidade de encontrar tipos tão admiráveis. Exemplo disso são os personagens de “Quatro mosqueteiros do mal”, todos tocando forte a clave da vaidade, conforme a metáfora usada pelo escritor em um dos textos mais significativos do livro, a crônica “A negação do outro”.
Embora reconheça que não é um político militante, Cyro de Mattos se diz alguém que teima em dar palavras aos sonhos, como faz em “Utopia dos Palmares”. É também com indignação que comenta a morte do rio de sua cidade enquanto os vereadores não mostram a menor preocupação com o dinheiro público. Em “A cereja do bolo”, faz uma importante defesa da cultura, normalmente vista com miopia pela classe política.
E, não fosse a natureza, é possível que Cyro de Mattos desanimasse de tanto desgosto que encontra o mundo. Mas ele ainda ouve o clarim da garrincha anunciando que a noite chegou ao fim, admira o canto mavioso do sabiá, pergunta-se o que seria de nós se não existissem os passarinhos soltos no embalo festivo da natureza. São pequenos seres que, certamente, também latejam sentimentos para mais Cyro em Cyro.



*Henrique Frendich é jornalista e cronista. Editor da Revista virtual RUBEM, criada para homenagear o escritor  Rubem Braga. Tem como marca publicar  somente crônicas. Reside em Brasília.