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sexta-feira, 27 de dezembro de 2019






Prosa de Ano Novo




Grupos de pessoas vestidas de branco ocupam desde cedo as areias de Copacabana. Branco é a cor que se usa nesse dia especial. Dizem os fiéis que o branco nesse dia dá sorte, atrai os fluidos bons dos ventos que vão ser trazidos pelo Ano Novo. Festa de chegada do Ano Novo na praia de Copacabana atrai muita gente de várias partes do Rio, de todo o país e do exterior. Os fiéis vêm fazer suas preces e entregar presentes a Iemanjá. Flores, perfumes, espelhos, pentes e fitas no pequeno barco enfeitado são levados às ondas. Em sua linguagem mágica, atabaques tocam no tom cativante. Cânticos orantes saem de vozes suaves e contritas. Lamentos e pedidos.
Os pedidos são para que a Rainha do Mar apague o fogo dos inimigos com a força de suas águas. Traga ondas cheias de paz, saúde e prosperidade. Que sejam levados para os espaços mais profundos do mar desconhecido as dores, privações e ressentimentos.
Com o sol se pondo, o movimento de pessoas vai aumentando nas areias de Copacabana. À noite vai ser difícil alguém encontrar um espaço para se instalar de maneira cômoda. Turistas em trânsito pelo calçadão vão querer se aproximar dos grupos de pessoas que estarão entoando cânticos em torno do círculo de velas acesas na praia. Mais um ano que se vai e outro que vem, quando os ponteiros do relógio se encontrar nesse momento mais aguardado, irromperem as sirenes, soarem as buzinas no asfalto. Fogos de artifício soltarem suas flores e cores no céu, cascata cair do edifício num visual que emociona.
Todos os anos a mesma espera, a trégua igual, ritmo de onda que se estende por uma antevisão melhor de vida neste planeta. Sem que os dias sejam ofendidos por nós, humanos. Sem mistério, violência e medo. Sem o trauma da criança que morre com a boca no peito murcho da mãe, o corpinho com os ossos furando a pele, em terras sangrentas e áridas da Somália. Sem que menores sejam fuzilados com tiros na cabeça em pleno centro do Rio. Sem o sofrimento de guerra horrenda na Bósnia Herzegovina, a deixar um saldo de mais de 125000 mortos. Sem o extermínio de 73 índios ianomâmis por garimpeiros na aldeia brasileira de Haximu. Sem a vergonha da putrefação de políticos do Brasil, a vítima sendo como sempre o povo indefeso.
Despedindo-me do ano que se vai e, com desconfiança, acenando para o que vem, não gostaria de lembrar também dos rios que morrem de sede, do ar que tosse, do mar com águas viscosas pelas milhas de óleo despejado no azul. Das ruínas na fauna e da tristeza na flora.
Ah, como gostaria de não lembrar a droga que mata a maravilha. E fazer uma crônica, nesse momento que aguardamos  a vinda do Ano Novo, com o verde brotando dos quatro pontos cardeais. Se fazendo em nuvem sem tamanho, assistirmos esse verde molhar neste planeta os nossos insensatos corações. E mais que a esperança tivesse nesse instante certeza de que dessa vez o Ano Novo vai chegar para valer, rico calendário de voos naturais, sem o gosto amargo de mãos que matam e subtraem.
Apesar de tudo, como diz o sabido grilo Cricrilo, personagem de um livro infantil nosso, ainda inédito, a vida é bela, muita gente é que não dá valor a ela.


quinta-feira, 12 de dezembro de 2019





ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS EMPOSSA SUA NOVA DIRETORIA PARA 2020 

"Não haverá saída possível se não lançarmos um olhar frontal e desarmado para o presente. Não como súditos ou inimigos, mas enquanto cidadãos para construir, de forma inclusiva e generosa, o bem comum", enfatiza Marco Lucchesi em seu discurso de posse na Presidência da ABL.

A nova Diretoria da Academia Brasileira de Letras, eleita no dia 5 de dezembro, tomou posse no dia 12 de dezembro, às 17h00, no Salão Nobre do Petit Trianon (Avenida Presidente Wilson, 203 - Castelo, Rio de Janeiro).

O Presidente é o Acadêmico e escritor Marco Lucchesi. Assumiram, ainda, os seguintes Diretores: Secretário-Geral: Merval Pereira; Primeiro-Secretário: Antônio Torres; Segundo-Secretário: Edmar Bacha; Tesoureiro: José Murilo de Carvalho.
Em seu discurso de Posse, Lucchesi afirmou: "Não haverá saída possível se não lançarmos um olhar frontal e desarmado para o presente. Não como súditos ou inimigos, mas enquanto cidadãos para construir, de forma inclusiva e generosa, o bem comum’.

DIRETORIA DA ABL PARA 2020

MARCO LUCCHESI – Sétimo ocupante da Cadeira n.° 15 da ABL, eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Padre Fernando Bastos de Ávila, Marco Lucchesi, nascido no Rio de janeiro em 9 de dezembro de 1963, é o mais jovem Presidente da Academia Brasileira de Letras dos últimos 70 anos. O mais novo, em toda a história da ABL, foi o Acadêmico Pedro Calmon (1902-1985), que assumiu, em 1945, com 43 anos de idade.
Escritor muitas vezes premiado, tanto no Brasil quanto no exterior, Lucchesi é autor de uma obra que abarca poesia, romance, ensaios, memórias e traduções. Publicou mais de 40 livros ao longo de sua trajetória. Professor titular de Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem pós-doutorado em Filosofia da Renascença na Alemanha. Formado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), possui mestrado e doutorado em Ciência da Literatura. Seus livros mais recentes são O carteiro imaterial (ensaios), Clio (poesia) e O bibliotecário do imperador (romance). Ganhou três Prêmios Jabuti da Câmara Brasileira do Livro.

MERVAL PEREIRA – Oitavo ocupante da Cadeira n.° 31, eleito em 22 de junho de 2011, na sucessão de Moacyr Scliar, Merval Pereira é jornalista e comentarista da GloboNews e da CBN, e colunista de O Globo. Foi eleito Correspondente Brasileiro da Academia das Ciências de Lisboa em novembro de 2016. Em 1979, recebeu o Prêmio Esso pela série de reportagens “A segunda guerra, sucessão de Geisel”, publicada no Jornal de Brasília e escrita em parceria com o então editor do jornal, André Gustavo Stumpf. A série virou livro, considerado referência para estudos da época e citado por brasilianistas, como Thomas Skidmore. Em 2009, recebeu o prêmio Maria Moors Cabot da Universidade de Columbia de excelência jornalística, a mais importante premiação internacional do jornalismo das Américas.

ANTÔNIO TORRES – Nascido na Bahia, Antônio Torres estreou na literatura em 1972, com o romance Um cão uivando para a Lua, considerado pela crítica a revelação daquele ano. Hoje, entre os seus 17 títulos publicados, destaca-se a trilogia formada por Essa terra (1976), O cachorro e o lobo (1997) e Pelo fundo da agulha (2006). Em 1998, foi condecorado pelo governo francês como Chevalier des Arts et des Lettres, pelos seus livros traduzidos na França. Em 2000, teve o reconhecimento nacional ao receber o Prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da sua obra. Em 2001, ganhou o Prêmio Zaffari & Bourbon. Recebeu ainda, entre outros, o Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiro, da Academia Carioca de Letras, e o Prêmio da Academia Petropolitana de Letras, ambos pelo conjunto da sua obra, da 9.a Jornada Nacional de Literatura, da Universidade de Passo Fundo, RS, pelo romance Meu querido canibal. Em 2007, Pelo fundo da agulha foi um dos ganhadores do Prêmio Jabuti. Seus livros, que passeiam por cenários rurais, urbanos e da História, têm tido várias edições no Brasil e traduções em muitos países; da Argentina ao Vietnã. De 1999 a 2005, foi Escritor Visitante da UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, quando ministrava oficinas literárias, realizava aulas inaugurais e proferia palestras nos campi do Maracanã, da Faculdade de Formação de Professores da UERJ em São Gonçalo e da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da UERJ em Duque de Caxias. 

EDMAR BACHA – Economista, fundador e diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças, um centro de pesquisas e debates no Rio de Janeiro, nasceu em Lambari, Minas Gerais, de uma família de escritores, políticos e comerciantes. Sexto ocupante da Cadeira n.° 40, eleito em 3 de novembro de 2016, na sucessão de Evaristo de Moraes Filho, concluiu a Faculdade de Ciências Econômicas na Universidade Federal de Minas Gerais e, em seguida, obteve o ph.D. em Economia na Universidade de Yale, EUA. É autor de inúmeros livros e artigos em revistas acadêmicas brasileiras e internacionais. O último livro foi Belíndia 2.0: Fábulas e Ensaios sobre o País dos Contrastes.

JOSÉ MURILO DE CARVALHO – Historiador e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nascido em Andrelândia (MG), fez sua graduação em Sociologia e Política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e é ph.D. pela Universidade de Stanford. Atuou como professor visitante e pesquisador em diversas universidades estrangeiras, como Oxford, Leiden, Londres, Stanford e Princeton. É autor de vasta produção de artigos e crônicas publicados em jornais e revistas, no Brasil e exterior, e de livros, como Os bestializados (1987), Pontos e bordados (1998), A formação das almas – o imaginário da República no Brasil (1990), Cidadania no Brasil: o longo caminho (2001) e Dom Pedro II (2007). Seu livro mais recente é O pecado original da República.


terça-feira, 10 de dezembro de 2019

o circo







O CIRCO


      Cyro de Mattos


Como me esquecer do circo? Ficava a semana toda aguardando que o homem nas pernas de pau anunciasse a sua chegada. Quando isso acontecia, saía em disparada atrás dele, o coração preste a sair pela boca. Juntava-me a outros meninos, passando a fazer parte do coro de vozes ao redor do homem nas pernas de pau. À pergunta que ele repetia a todo instante, “o palhaço o que é”?, nossa resposta era uma só, explodindo a gritaria no ar, “ é ladrão de mulher!”  
Os circos que apareceram no início eram pequenos. Num desses, a lona furada, poucas luzes na fachada, conheci uma dupla de palhaço que nunca esqueci. Bacurau com a sua cara de mau e Perereca que sempre levava do parceiro um tapa na careca. Bacurau era catroca e tinha o nariz de pipoca. Perereca era um contador de piada sem igual e tinha um calombo na careca.
O circo ficava um mês na cidade. Filho de pais pobres, eu e meu irmão só tínhamos direito de ir ao circo uma única vez, geralmente no domingo. Sempre dava um jeito para ir ao circo mais vezes. Entrava pelo buraco da lona quando o vigia descuidava-se. Vendia jornal na venda, gibi velho na porta do cinema, até garrafa, com o dinheiro apurado comprava o ingresso do circo. Lá estava eu com o coração a bater acelerado, antes que desse início o espetáculo. Não me importava que os números fossem quase sempre os mesmos. Era bom sorrir com as piadas do palhaço, ficar todo arrepiado com o salto mortal que davam os irmãos Vilalba, lá em cima no trapézio da morte.
Foi grande a emoção quando apareceu o primeiro circo com as suas feras amestradas. Leão, tigre, elefante. O chimpanzé andava de bicicleta, fazia piruetas em cima da zebra, dando voltas seguidas no picadeiro. E o sensacional número do globo da morte? Era mesmo aquele circo o maior espetáculo da terra. Acrobatas, trapezistas, equilibristas, malabaristas. Dois times de cães pequenos faziam a bola correr num vaivém que nunca cessava. Flamengo contra o Vasco, a garotada numa gritaria doida quando o gol era marcado. O domador botava a cara dentro da boca do leão. O circo todo em silêncio, um frio corria na espinha, os aplausos demorados para aquele número inacreditável. 
O circo sempre foi para mim aquele mundo feito de aventura, riso e humildade. O mundo permanente de graça na boca escancarada do palhaço com a linguona de fora. Certamente comia palha e aço, daí ser chamado palhaço.  Doçura no frio com a equilibrista que tinha pernas formosas. Vontade de voar como pássaro com aqueles trapezistas lá no alto, no salto de vida ou morte. O perigo vivido com o domador que si arriscava na aventura de fazer com que cinco leões deitassem junto a seus pés, como se fossem uns pequenos grandes felinos bem comportados. Em mim, sensação de que a morte não existia. Meus olhos rodavam rápidos com aqueles dois irmãos que cruzavam e se encruzavam nas motos barulhentas dentro de um globo, onde circulava a perícia feita de nervos e aço.
Como me esquecer da pipoca, algodão doce, cocada, amendoim torradinho e roletes de cana?
Um dia, eu e os amigos resolvemos fazer um circo no quintal. Com palhaço de pernas tortas, a menina Dolores como a fada das flores, Dom Chicote, o incrível domador e suas terríveis feras, Lero-Lero, o cão que dançava bolero, e Cheiroso, o gato manhoso, além do trio que tocava zabumba, sanfona e reco-reco. Era o circo do Ciroca com palco armado embaixo de uma mangueira. O bilheteiro, o próprio dono do circo, feito um general usava grande chapéu de jornal e tinha uma espada de pau.
Uma pena aquele circo ter dado apenas um espetáculo. A plateia não se conformou com a ausência do macaco Caolho, que deveria subir no mastro de cabeça para baixo em menos de um minuto. Entre assobios e gritaria, a plateia começou então a jogar tomates no verde homem-jibóia e no anão Pimpão, que de tão pequeno não saía do chão. Foi tomate para todo lado, assovio, corre-corre, empurrão, nome feio, vexame. Quando o pano caiu por terra, foi logo rasgado em pedaços. O espetáculo foi encerrado com a plateia toda gritando sem parar um só instante: Queremos o macaco Caolho! Queremos nosso dinheiro de volta! Queremos mais espetáculo!







sexta-feira, 22 de novembro de 2019






O TREM
                                  
                                                       Cyro de Mattos



A inauguração da estrada de ferro aconteceu com música. A bandinha tocou marchas, dobrados e maxixes para saudar o desembarque feliz dos primeiros passageiros. Construído pela administração da companhia que implantou a estrada de ferro, um barracão serviu como o primeiro ponto oficial do desembarque.
O trem passou a fazer parte da vida da cidade.
Na partida,  os carregadores colocavam apressados malas e embrulhos pelas janelas dos vagões. Reservavam os lugares melhores para os seus fregueses conhecidos. Na chegada, sempre os mesmos carregadores recebiam malas e embrulhos pelas janelas dos vagões.
O trem era uma coisa viva que partia e chegava, trazendo as cargas de peixe, caju e coco. Pelo apito ficava-se sabendo a hora certa da partida e chegada. Encontros eram marcados pelo apito do trem, de manhã e à tarde, às vezes importantes.
Nos rastros do sonho, vejo a trem fagulhando, atritando, apitando. No vento, no verde, na várzea. Entre os passageiros segue com a conversa tola, velha a mansa. Gente de alpercata fuma na tarde de verão seu cigarrinho de palha.
Quando passa, o trem fala com as pessoas que estão no terreiro, nas portas e janelas das casas à beira da estrada.
Na aurora, na tarde, na fumaça, lá vai o trem.
Quando ele deu o último apito na estação velha, não ficou fogo morto nem sucata.  Nem qualquer sinal de fumaçazinha se perdendo no longe.
No menino permaneceu um percurso luminoso feito por vagões, indo e vindo, subindo e descendo por trilhos que tinham um tom marcante de vozes coloridas na paisagem.
Vagões levavam dias de sol e chuva, traziam a estação de magníficos sabores.
Moleques vendiam cordas de caranguejo na plataforma. Vovó Maria Conga mercava beiju de Água Branca, lugarejo que ficava distante alguns quilômetros da cidade pequena. Do tabuleiro de Vovó Maria Conga vinha o cheiro de mingau quente, atraindo na manhã os fregueses com o rosto de sono.
O trem dava ao menino momentos alegres de aventuras indescritíveis. Certo sentimento humano corria com o vento e formava com a natureza uma relação amiga.
Pela janela desfilavam vales e outeiros.
Gado manso no verde subia a encosta.
No céu nuvens como barcos, almofadas, rochas brancas.
O sol brilhava a manhã com fios de ouro nas folhas de capim.
A cachoeira batia nas pedras uma pancada formosa.
Os olhos do menino viajavam na paisagem.
Quando mais olhavam, mais queriam olhar.
E de olhar tanto nunca se cansavam.
Aos sábados havia uma algazarra na chegada.
Atos, ruídos e gestos propagavam-se pela plataforma.
           No desembarque, como se fosse feita de papagaios e periquitos, mais aumentava a algazarra.
No peito do menino, a tarde reverberava as cores do verão.
A paisagem acomodava-se ali no quarto, os olhos semitontos de sono. Reaparecia num sonho quente e puro, descendo e subindo pelos campos verdes do pequeno coração.










sexta-feira, 8 de novembro de 2019




A Voz do Autor: ficcionista
 e poeta Cyro de Mattos
 

Autor de diversos títulos pela Editus, Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia), Cyro de Mattos, em entrevista concedida à Associação Brasileira de Editoras Universitárias,  fala sobre um de seus últimos livros,  premiações literárias e a projeção global que elas oferecem para o conteúdo de suas obras.
Cyro de Mattos é contista, poeta, cronista, ensaísta, romancista e também autor de livros infantis. Já publicou mais de 50 livros no Brasil e 14 no exterior, sendo 9 deles com o selo editorial da Editus - Editora da UESC. No mês de setembro de 2014, o escritor foi agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela UESC. Em sua trajetória, ele já recebeu mais de 40 prêmios literários, entre eles o Vânia Souto Carvalho, concedido pela Academia Pernambucana de Letras, com o livro “Berro de Fogo e outras histórias”, que em 2013 ganhou nova edição pela Editora da UESC. Seu livro “Vinte Poemas do Rio”, português-inglês, foi indicado para o vestibular da Universidade Estadual de Santa Cruz, durante três anos, como também “O Conto em Vinte e Cinco Baianos”, antologia que ele organizou.
Recebeu ainda prêmios da Academia Brasileira de Letras, Pen Clube do Brasil, Associação Paulista dos Críticos de Artes, Menção Honrosa no Prêmio Jabuti e Menção entre os quatro finalistas no Concurso Internacional Plural, México. Algumas de suas obras destacam a civilização cacaueira baiana como um dos espaços do seu imaginário fecundo, no qual retrata a paisagem, personagens, lugares, hábitos e histórias. Dois outros grandes acontecimentos marcaram a vida do escritor.  Foi eleito para a cadeira nº 22 da Academia de Letras da Bahia, que tem como fundador Rui Barbosa, e o seu livro, “Histórias dos Mares da Bahia”, antologia que ele organizou, foi lançado na 24ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no estande da Associação Brasileira de Editoras do Nordeste - ABEU. A obra faz parte da Coleção Nordestina, projeto editorial que reúne livros produzidos pelas editoras da ABEU Nordeste.  Essa coletânea reúne dezesseis escritores baianos, e, entre eles, João Ubaldo Ribeiro, Hélio Pólvora, Ruy Espinheira Filho, Guido Guerra, Gláucia Lemos e Aramis Ribeiro Costa. No ano passado, seu livro "Cancioneiro do Cacau", Prêmio Nacional Ribeiro Couto da União Brasileira de Escritores (Rio) e Segundo Prêmio Internacional Maestrale Marengo d’Oro, Gênova, Itália, foi lançado na Bienal Internacional do Livro do Rio, em segunda edição. 
1. As suas obras expressam muito da cultura do sul da Bahia, com destaque especial para a civilização nascida ao longo do tempo pela implantação da lavra cacaueira. Essas representações ganharam projeções internacionais e também importantes premiações no cenário nacional. Como é ver o local de suas criações ganhar uma projeção global? Como o senhor avalia pessoal e profissionalmente essas importantes premiações? 
Canta a tua aldeia e serás universal, disse o russo Tolstoi. Para Fernando Pessoa, o genial poeta português, o melhor rio não era o Tejo, mas o rio que passava ao pé de sua aldeia, porque era o rio de sua aldeia. Houve quem observasse que o homem faz o lugar e não o contrário. E o lugar é onde se registra a memória. O lugar tem sido motivação e símbolo para algumas de minhas criações. Minhas origens e vivências locais têm sido uma das vertentes de minhas produções em prosa e verso. Isso acontece quando às vezes, das germinações à execução da ideia, tomo como ponto de partida minhas vivências na infância, em outras vou buscar ou imaginar o assunto no cerne da história, aproveitando o que vi, colhi dos mais velhos ou até pesquisei.  Pode até mesmo acontecer que imagine um espaço sem localização geográfica, identificável com alguma parte do sul da Bahia, como no romance “Os Ventos Gemedores”, no qual criei o condado de Japará para desenvolver a trama, auscultar os personagens através de conflitos no drama.  Assim, desde que meu texto leve aos outros uma nova forma de conhecimento da vida, através da linguagem que poetiza a vida, situações e gente com nervos e sentimentos, tendo como resultado final um alcance universal e reconhecimento, aqui na região e fora de nossas fronteiras, fico contente, torno-me menos incompleto na existência, que para nós humanos é falha, limitada, precária, vulnerável, não basta. É gratificante, um verdadeiro prêmio que é dado ao autor esse tipo de reconhecimento. Acho sensato ser reconhecido em vida pelo meu trabalho, depois de morto só serve para o orador, que passa como herói, ao ressaltar no sepultamento as qualidades de quem se foi para sempre, não está mais neste mundo, ficou submetido ao inexorável. 
2. O senhor foi eleito para ocupar a cadeira 22 da Academia de Letras da Bahia e recebeu o primeiro título de Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz pela sua contribuição à literatura e à cultura.  O que significam esses novos reconhecimentos na sua carreira literária?
São qualificações de meu trabalho no mais alto nível. Sinto-me honrado, fortalecido, incentivado para continuar a jornada nessa estrada solitária, a essa altura comprida.  Nela, paro às vezes, olho para trás, vejo à direita e à esquerda, sigo em frente com tantas vozes no peito, dos outros, mas que no fundo são também minhas. Vou formando com elas e a minha voz o diálogo necessário, o disfarce múltiplo que desfaz o real e projeta outra realidade com novos sentidos, externa outra linguagem através dos sinais visíveis da escrita, com seu poder metafórico intenso e de proliferação, que me ajuda a sobreviver e a conhecer um tanto mais do que sou, entre o alegre e o triste, o transitório e o permanente, o belo e o feio. Vou cumprindo uma missão, usando as palavras para explicar o inexplicável, mas que é belo, com suas verdades retiradas da vida, a ela devolvidas com razão e emoção, porque assim deve ser.
3. O seu último livro, “História dos Mares da Bahia”, antologia integrada por autores baianos, foi lançado na 24ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no estande coletivo da ABEU pela Editus. A publicação traz 16 contos de importantes escritores baianos, que revelam um cenário de muitas histórias. Por que o mar como fonte de inspiração e ambientação? Como foi a escolha dos autores?
Como se vê, sem esforço, trata-se de antologia temática. As histórias têm como foco o mar da Bahia, que entra como o cenário, ora interferindo no destino dos personagens, ora como elemento de composição da paisagem humana. O mar é assim a fonte de inspiração e ambientação de cada história. O mar sempre exerceu uma sedução e atração aos seres humanos. E, como temos ficcionistas na Bahia da melhor qualidade, que souberam focar o mar como  fonte de suas criações, resolvi fazer uma antologia com o tema e com esses autores expressivos. O critério da escolha dos contistas se deu em função da qualidade do texto. Convenhamos que, como em toda a antologia, ocorre a omissão, mas os autores selecionados para a coletânea “Histórias dos Mares da Bahia” são os mais representativos do gênero na Bahia. Eu diria sem hesitar que são contistas brasileiros da Bahia, fortes no discurso coeso.  Com seus projetos estéticos e resultados positivos, todos eles vêm contribuindo para que as letras brasileiras operem como meio eficaz de comunicação humana em sua função social.

sábado, 19 de outubro de 2019



JORNALISTA IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO TOMA POSSE NA CADEIRA 11 DA ABL E AFIRMA: “NÃO PODEMOS REPOUSAR A CABEÇA ALHEIOS AO TERROR NEM PERMITIR QUE NOS ARRANQUEM A VOZ DE NOSSAS GARGANTAS” 
A chegada de Ignácio de Loyola Brandão à Academia Brasileira de Letras constitui motivo de júbilo pessoal e institucional. Somos leitores de sua bela ficção, audaciosamente brasileira, composta de muitas vozes. Ignácio realiza em plenitude o diálogo entre literatura e liberdade. Tal gesto reflete o destino da Casa de Machado. Bem-vindo, Ignácio”, afirmou o Presidente da ABL, Acadêmico Marco Lucchesi.


O jornalista Ignácio de Loyola Brandão tomou posse na Cadeira 11 da Academia Brasileira de Letras, hoje, sexta-feira, dia 18 de outubro, em solenidade no Salão Nobre do Petit Trianon. O novo Acadêmico foi eleito no dia 14 de março deste ano, na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe, falecido em 9 de setembro de 2018. Em nome da ABL, o Acadêmico e escritor Antônio Torres fez o discurso de recepção.
Antes, Ignácio de Loyola Brandão discursou na tribuna. Ao terminar, assinou o livro de posse. A seguir, o Presidente Marco Lucchesi convidou o Acadêmico Celso Lafer para fazer a aposição do colar; o Acadêmico e professor Arnaldo Niskier (decano presente) para entregar a espada; e a Acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira para entregar o diploma. Terminada a cerimônia, o Presidente, então, declarou empossado o novo Acadêmico.
A mesa da cerimônia foi presidida por Marco Lucchesi e composta pelos Acadêmicos Ana Maria Machado, José Murilo de Carvalho, Merval Pereira e Antônio Torres.
Os ocupantes anteriores da Cadeira foram: Lúcio de Mendonça (fundador) – que escolheu como patrono Fagundes Varela –, Pedro LessaEduardo RamosJoão Luís AlvesAdelmar TavaresDeolindo CoutoCelso Furtado e Helio Jaguaribe.

DISCURSO DE POSSE
Em seu discurso de posse, o Acadêmico Ignácio de Loyola Brandão declarou: “para desenvolver o Brasil precisamos de Desenvolvimento, democracia, liberdade, saúde para sobreviver, ensino e trabalho, ausência de fome e miséria, de segurança e acima de tudo ética e verdade. E principalmente nos relacionarmos sem ódio, indignação, acirramento.” 
E encerrou: “não podemos repousar a cabeça alheios ao terror nem permitir que nos arranquem a voz de nossas gargantas”.

DISCURSO DE RECEPÇÃO
O Acadêmico Antônio Torres afirmou em seu discurso de recepção: “precisaria de mil e uma noites para juntar no Salão Nobre do meu cérebro todos os grãos separados em minhas leituras, releituras, anotações, e memórias em torno da sua imensurável trajetória.
“Eu me recordo de uma redação agitada e barulhenta de um jornal vibrante, no Vale do Anhangabaú, na qual éramos colegas de trabalho há mais de um ano, mas pouco nos falávamos.
“Num dia em que bati o ponto no grande relógio postado um pouco além da porta de entrada da redação bem antes da hora, imaginando ser o primeiro a chegar, fui surpreendido com o tac-tac-tac de uma máquina de escrever, único sinal de vida naquele salão vazio. Ao passar perto de quem, de costas para a entrada, catava feijão nas teclas completamente absorvido pelo seu matraquear, tive outra surpresa: a de um aceno para que me aproximasse. A mão que acenava apontou para uma pilha de páginas que mal cabiam na borda de uma estreita mesa, enquanto uma voz dizia: - Dá uma olhada nisso.
“E foi assim, ao acaso, que me senti testemunha ocular do nascimento do primeiro livro de um escritor que não demoraria muito a se tornar um dos expoentes de uma geração que chegaria a esta Casa”.


O NOVO ACADÊMICO
Ignácio de Loyola Brandão nasceu em Araraquara, São Paulo, em 1936. Jornalista na sua cidade natal, foi para São Paulo aos 21 anos, onde continuou sua carreira. Trabalhou no jornal Última Hora, nas revistas Cláudia, Realidade, Setenta, Planeta, Ciência e Vida, Lui e Vogue. Atualmente escreve uma crônica quinzenal para o jornal O Estado de S. Paulo.
Viveu em Roma e depois em Berlim. Em 2008, ganhou o prêmio Jabuti, com o O Menino que Vendia Palavras, considerado a melhor ficção do ano. Em 2011, lançou A Morena da Estação, crônicas sobre trens, ferrovias, estações. Publicou, em 2014, Os olhos cegos dos cavalos loucos, um emocionante pedido de perdão de um neto para seu avô. Em 2016, recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto de sua obra.
Para ele, literatura é sonho, paixão, divertimento, prazer, viagem por mundos desconhecidos, terapia. Com sua filha Rita Gullo subiu ao palco em teatros e nas unidades do SESC com o show “Solidão no fundo da agulha”, experiência inédita em que relembra momentos importantes de sua biografia.
Publicou mais de 40 livros, entre romances e contos, crônicas infantis e infantojuvenis. 


segunda-feira, 14 de outubro de 2019





O Menino e a Bola
         Cyro de Mattos

-         Abra essa porta, menino.
-         Não quero não.
-         O que é que você tem?
-         Não sei.
-         Por que você não acaba com esse choro?
-         Não posso não.
-         Você vai ficar trancado aí dentro o tempo todo?
-         Vou.
-         E sua mãe, seu pai?
-         Eu não quero ver ninguém.
-         Jura?
-         Não quero.
-         E seus brinquedos?
-         Dê pro Tonico.
-         Deixe de bobagem, Vilinho. Tudo já passou.
-         Eu não vou esquecer.
-         Esqueça tudo, Vilinho. Você já é um homem.
-         Não posso.
-         Mas que coisa mais esquisita!
-         Ainda dói, tio.
-         O quê?
-         Dói muito, aqui no lado esquerdo.
-         Você foi o vencedor?
-         Fui.
-         E então? O que é que você mais queria?
-         Isso não importa.
-         Como não importa?
-         Eu já disse que nunca vou esquecer.
-         Tire,  menino, tire logo essas bobagens da cabeça.
-         Não posso.
-         E por que você não pode?
-         Tio, por favor...
-         Olhe, o Tonico e o Dudu estão aqui fora.
-         Eles ainda estão aí? E por que não vão embora?
-         Eles estão dizendo que você tinha razão, foi provocado primeiro.
-         Eu não queria.
-         Hein?
-         Não queria brigar não.
-         Mas isso tinha que acontecer um dia.
-         Eu já disse que não queria.
-         Aconteceu também comigo quando eu tinha a sua idade.
-         Antes eu tivesse dado a bola a ele.
-         Ele quem?
-         O Armando, que quis tomar minha bola.
-         O filho do juiz?
-         Ele mesmo.
-         Mas ele é maior que você!
-         É.
-         E você ganhou mesmo a briga?
-         Ganhei.
-         No duro?
-         Ganhei.
-         Fale a verdade.
-         Estou falando.
-         Você bateu muito nele?
-         Bati.
-                                                  -  Então por que todo esse choro? Por que ficar trancado aí dentro o tempo todo?
-         Eu não  tive outro jeito.
-         O que mesmo?
-         Não tive outro jeito.
-         Abra essa porta, menino!
-         Não abro.
-         Vai abrir ou não vai?
-         Acredite, tio, só bati nele pra me defender.
    Um choro agudo irrompeu dentro do quarto.
-         Abra essa porta, Vilinho. Por que você não quer abrir?
-         Não posso.
-         Abra logo. O Tonico e o Dudu estão querendo falar com você.
-         Não me interessa falar com ninguém.
-         Por que você não quer?
-         Porque não quero.
-         Quer que eu mande chamar seus pais?
-         Não.
-         Tem certeza?
-         Tenho.
-         E o que é que você quer que eu faça?
-         Tio, por favor, vá embora... me deixe aqui em paz.
     E o choro agudo continuou dentro do quarto.