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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019





    Sua Única Briga
                 
                 Cyro de Mattos

Só brigou uma vez no internato. Foi com um menino que jogava de ponta-esquerda no time de camisa branca. Jogando como lateral direito no time de camisa azul,  ele dava uma marcação implacável àquele menino gago, troncudo, baixo, braços musculosos.  Em compensação era menor do que ele, que sempre se antecipava para tomar a bola dele, um  atacante arrojado,  precisando ser marcado de perto.
 Era um duelo à parte entre os dois quando o time de camisa azul enfrentava o de camisa branca.
Na última partida, o marcador e o atacante  chocaram-se na lateral do campo, temeu-se que os dois contendores tivessem se machucado gravemente. Houve bate-boca, dedo em riste no rosto, da próxima vez eu lhe quebro a canela, jogadores dos dois times apartaram os dois para evitar a briga. Terminado o jogo, com o sangue ainda quente,  atracaram-se,  a briga não continuou por mais tempo porque o Irmão Já-Morreu trilou o apito várias vezes, pedindo a seguir  que os dois rivais lhe acompanhassem.
Adiante, no campo vazio, sem grama, improvisado no terreno arenoso, localizado entre  a parede alta de um dos pavilhões  do pavimento térreo, de um lado, e um muro, no outro com uma tela aramada, também alta, na frente e fundo,  o Irmão Já-Morreu ordenou:
- Agora podem brigar à vontade. Ninguém vai apartar.
A briga demorou mais de uma hora. Nos lances com murros desfechados um ao outro, procurou  evitar que o rival agarrasse o seu corpo. Se isso acontecesse, seria derrubado, e, no chão, dominado, certamente ia ser massacrado pelo rival,  sem ter a mínima chance para vencer a briga.
A certa altura da briga renhida, os brigões mostravam cansaço, um se  agarrava ao outro para não cair, mas nenhum deles  recuava, pensando em correr. Até que de tão cansados com os golpes desfechados, os dois desabaram ao mesmo tempo, cada um caiu para um lado. E ali mesmo ficariam desacordados, sem forças para levantar, não fosse o Irmão Já-Morreu que jogou  um balde de água para despertar os  brigões,  ainda com o sangue quente.

·        Cyro de Mattos é poeta e ficcionista. Detentor de prêmios literários importantes e, entre eles, o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, Associação dos Críticos Literários de São Paulo, Nacional de Poesia Ribeiro Couto (UBE-RJ), Internacional Maestrale  Marengo d’Oro, Itália, duas vezes, Menção Honrosa do Jabuti, Nacional Pen Clube do Brasil e Nacional Cidade de Manaus. Publicado em oito idiomas.



segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019







Indiano Abhay Kumar lança antologia
que inclui o poeta Cyro de Mattos


Sessenta poetas  nacionais estão na antologia bilíngüe New brazilian poems/Novos poemas brasileiros, organizada pelo poeta e diplomata indiano Abhay Kumar, que está na capital federal desde 2016, onde trabalha na Embaixada da Índia. Publicada pela editora Ibis Libris, do Rio de Janeiro, a antologia inclui poema do poeta Cyro de Mattos, além dos poetas baianos  Myriam Fraga, Antonio Risério, Ruy Espinheira Filho e Roberval Pereyr.  O prefácio do livro é assinado por Nicholas Birns, professor de Literatura da Universidade de Nova York  nos Estados Unidos.
        “Dunas” é o poema do poeta baiano  Cyro de Mattos que participa da antologia  bilíngüe New Brazilian Poems/ Novos Poemas Prasileiros. Foi selecionado  do livro Poemas escolhidos/Poesie scelte, da Editora Escrituras, que deu ao escritor  Cyro de Mattos  o Segundo Prêmio Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, Genova, Itália, para obras inéditas.         
Abhay K. é autor de oito livros de poesia, incluindo O Senhor dos Oito Olhos de Katmandu e A Profecia de Brasília. Também é o editor de CAPITALS – 100 Grandes Poemas da Índia e Mais 100 Grandes Poemas da Índia. Seus poemas já foram publicados em mais de 60 revistas literárias, incluindo Poetry Salzburg Review e Asia Literary Review. Seu poema “Earth Anthem” foi traduzido para mais de 30 idiomas em todo o mundo. Recentemente, foi convidado para gravar seus poemas na Biblioteca do Congresso, em Washington D.C.

"Por trás da janela/ vejo o país/ que me condena:/ cidades e campos,/ rios e ruas/ na retina./ Prisioneiros somos/ da perspectiva/ que nos afasta/ do que é em nós/ mais terra e sangue./ Por isso nos escondemos/ atrás de mesas executivas,/ folheamos manuais/ de covardia./ Há de chegar o dia/ de dizer/ com orgulho: brasileiro,/ muito prazer”, diz o poema Sou brasileiro, do porto-alegrense José Eduardo Degrazia, que foi incluído na antologia  bilíngue New brazilian poems, do diplomata indiano Abhay Kumar, lançada no dia 17 de janeiro de 2019, na sede da Associação Nacional de Escritores, em Brasília,
        O diplomata, responsável pela edição e tradução dos textos que estão na antologia, reúne 60 poetas para compor essa nova antologia de poemas brasileiros traduzidos para a língua inglesa. “São vários poetas de diferentes regiões do Brasil. De Brasília, há nomes como Nicolas Behr, Climério Ferreira, José Carlos Vieira e Francisco Alvim”, diz Abhay, que é também poeta.
      “A poesia brasileira fala muito sobre problemas sociais, problemas cotidianos, além de serem também muito geográficos. Aqui, em Brasília, fala-se muito do cerrado; no nordeste, mais sobre o sertão, e assim por diante”, conta o indiano.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019


                               


                                  O Apostador
                                    
                                 Cyro de Mattos

            Começou jogando no bicho. Mudou para a loteria federal. Meses depois migrou para  a loteria esportiva. Agora estava de olho gordo na  mega-sena. Só valia ganhar, se fosse o único ganhador, entre milhares de apostadores. Mega-sena acumulada,  ao felizardo marés de milhões. Ele, o apostador incorrigível. 
           A mulher tentou livrá-lo do vício. Brincadeira no início, logo pegou feito  visgo. De tudo tentou. Benzedeira, banho com sal grosso, cartomante. Candomblé, espiritismo. Fez promessa forte a santo Expedito, o santo das causas impossíveis. Não adiantou.
         O pequeno patrimônio, com tanto esforço adquirido, sendo dissolvido. Primeiro o sítio, depois o automóvel, a própria casa. Morador agora de apartamento pequeno, sem luz do sol, vento fresco. Aluguel modesto, conjunto habitacional popular.
         A aposentadoria precária evitava que passasse fome. 
         Não tinha jeito.  Todos os dias fazia o jogo,  bebia sua bebida especial. Mês entrava, mês fugia.  Até as joias da mulher, herança recebida da mãe, que recebera da avó,  foram vendidas. Apostava, apostava. Venderia a alma ao tinhoso, se preciso. Seguia em frente. Um dia acordaria como o grande ganhador. Não conseguia fazer sequer  a quadra, não desistia. Quem não aposta,  nunca ganha, uma máxima que os apostadores não esqueciam, seguiam à risca,  dela não fugiam.
Alardeava. No dia que tirasse a sorte grande com a mega-sena acumulada,  faria  a maior  surpresa a centenas de pessoas de sua cidade natal. A cena diante dos rostos pasmos, na avenida principal, abarrotada de gente.  Distribuiria dinheiro gordo com muita gente, de preferência com os mais desvalidos. Queria ver todo mundo sorridente.     
         Foi comprar o pão na padaria do bairro. Na rua, as fezes do pombo  acertaram sua cabeça. Que nojo! Considerou o fato, podia ter sido um aviso. Entre tantos habitantes da cidade populosa, só ele foi o agraciado, ao ser carimbado com as fezes das aves na cabeça. O imponderável poderia favorecer-lhe em dados positivos lá na frente.  Acertaria na mega-sena,  para isso acontecer continuasse fazendo as apostas seguidas.     
         Fez o jogo, riscou apenas uma sena na cartela.  O dinheiro estava curto,  há tempos não fazia jogo alto. Foi conferir depois, o coração acelerado.   Só alegria,  acertou em cheio na mega-sena. Sozinho. Ganhou o mundo a notícia. Acertador do maior prêmio acumulado pela mega-sena fez apenas um jogo em uma cartela.  
        Cumpriria a promessa. Compartilharia o dinheiro ganho na mega-sena  com muita gente.
         Estavam crentes, pobres, medianos e ricos, que ele ia distribuir muito dinheiro na avenida principal.
        O trânsito  interrompido. O locutor pelo megafone parabenizava o homem da sorte grande. Não cabia de gente a avenida principal naquele trecho.
      Todos ficaram perplexos  com a cena surpreendente. Tirou as roupas do corpo, tacou o facão em cima e tocou  fogo. Ficou gritando: “Dinheiro você diz que me quer bem,  no meu bolso você vem!”
      Foi morar no sanatório Bom Retiro. Lá continuou  a fazer as apostas para acertar de novo na mega-sena. 

*Cyro de Mattos é escritor e poeta. Publicado  por editoras europeias. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia). Premiado no Brasil, México, Itália e Portugal.