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domingo, 31 de março de 2019





               Como Conheci Castro Alves
                    
                      Cyro de Mattos

Foi nos idos de 1953. Saltei do bonde na parada próxima ao Restaurante Cacique e Cine Guarani, com o firme propósito de conhecer aquele monumento de mais de dez metros, um homem lá no alto encimando o pedestal. Aquele homem de cabeleira negra e basta devia ser muito importante para que fosse homenageado em monumento tão grandioso.
 Atravessei a rua com a luz forte do verão caindo no asfalto e me aproximei do monumento. Meu olhar curioso viu que em um dos lados estava um livro aberto  com um sabre atravessado, tendo em letras douradas os versos:  “Não cora o sabre do hombrear com o livro”. Em placa de mármore,  numa das faces da base, lia-se:  “A Bahia a Castro Alves.”
Aquela estátua de bronze  assentada no alto representava  um poeta, muito querido pelo povo baiano, estava ali na atitude de fala importante, de quem declamava, tendo a cabeça descoberta, fronte erguida, olhar perdido no infinito, chapéu mole de estudante à mão esquerda, braço direito estendido. De um lado da coluna no monumento, vi um grupo em bronze, representando um anjo em posição de voo, a levantar uma mulher escrava pelo braço, erguendo-a ao alto.  E também um casal de escravos.
Quem era esse poeta que a Bahia dedicava imenso amor? Lembrei da biblioteca da agremiação estudantil no Colégio dos Irmãos Maristas. E foi lá,  durante a semana, à hora do recreio, folheando o livro ABC de Castro Alves, de Jorge Amado, que fiquei  conhecendo a vida e a obra daquele grande poeta, que os baianos com orgulho chamavam de gênio. 
        Era um rapaz esbelto, que vivera pouco. Nasceu na fazenda Cabaceiras, próxima a Curralinhos, na  Bahia, em  14 de março de 1847. Tinha grandes olhos vivos, maneiras que impressionavam a quem o assistisse declamando versos de amor, às flores e em solidariedade aos escravos. Causava admiração aos homens e arrebatava paixões às mulheres. Seu estilo contestador contra a situação da escravidão dos negros na Bahia o tornou conhecido como O Poeta dos Escravos. Além de abolicionista exaltado,  foi um liberal atuante, que clamava  pela instalação da República no Brasil. Teve como colega Rui Barbosa no Colégio Abílio Borges, em Salvador, e na Faculdade de Direito do Recife. Faleceu aos seis de julho de 1871, aos 24 anos, em Salvador, vítima de tuberculose.
          Depois de conhecer um pouco  a vida do poeta romântico, interessei-me  por sua poesia. Fui ler, um a um, os livros desse poeta,  cantor do amor, da água, das pétalas, dos negros escravos e da liberdade. Publicara em vida apenas um livro: Espumas Flutuantes, em 1870. Seus outros livros,  A Cachoeira de Paulo Afonso, 1876 ,  Os Escravos, 1883,  Hinos do Equador, 1921, tiveram edição póstuma. 
     Na medida em que fazia a leitura duma  poesia cativante e libertária, ia anotando alguns versos no caderno, que me enriqueciam a sensibilidade.  
      Como esses: Senhor Deus dos desgraçados!/Dizei-me vós, Senhor Deus,/Se eu deliro... ou se é verdade/ Tanto horror perante os céus?!... / Ó mar, por que não apagas/ Co'a esponja de tuas vaga/ Do teu manto este borrão? / Astros! noites! tempestades! /Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! ...
                 Ou esses:  Oh! Bendito o que semeia/ Livros à mão cheia/ E manda o povo pensar!/O livro, caindo n'alma/ É germe – que faz a palma,/ É chuva – que faz o mar!
    Ou ainda esses, escritos com graça e leveza: Prendi meus afetos, formosa Pepita.../ mas, onde?/ No tempo? No espaço? Nas névoas?/ Não rias.../ Prendi-me num laço de fita!
    Perguntava-se como era que no coração de um poeta tão jovem como Castro Alves  cabia tanta afetividade e solidariedade aos excluídos.  Com a leitura de cada livro do poeta, minha alma foi-se impregnando da beleza e da verdade postas de maneira maior  em versos comoventes, em tons vários escorridos com amor e talento raro, que só os gênios possuem. Castro Alves tornou-se em pouco tempo  um ídolo para o moço do interior, desses em que  a marca de uma época ou de um tema brilha com a individualidade manifestada numa espécie de criador, a permanecer sempre ante a vida que passa. 


domingo, 24 de março de 2019


        


                     O Herói

             Cyro de Mattos

Feitos superiores, inacreditáveis,  aclamado como herói, inigualável. 
Coragem digna dos heróis gregos. Cada proeza inspirava histórias de cordel surpreendentes,  os trovadores vendiam os folhetos na feira.
Certa vez enfrentara uma onça preta, a mais temida entre os grandes felinos da Mata Atlântica. Fugira do circo, invadira a rua do comércio em plena luz do dia, faminta, há oito dias não se alimentava.
          Gente correu para dentro das lojas, as portas imediatamente fechadas. 
Menino lá dentro chorava, a mãe rezava, o pai se urinava.
Lá fora correu atrás da bichona, estava prestes a abocanhar uma criança. Saltou no cangote da fera, deu um murro no ouvido, quebrou-lhe o pescoço com um golpe.  
Pessoas apavoradas deixaram as lojas, salvas pelo herói Hércules,   abraçavam-se, sorrindo. Mais uma vez livres do perigo. Bateram palmas demoradas para o intrépido e audaz herói da cidade com um comércio próspero.  
         Outro dia venceu os assaltantes ao banco. Ali mesmo alvejou vários   deles com os tiros certeiros deflagrados com o revólver cano longo, calibre 38.  Saiu na moto  em perseguição do último assaltante, o carro do vilão fazendo ziguezague na disparada. Atirou no pneu traseiro do carro em fuga,  rodopiou, capotou e bateu no poste.       
Trêmulo, o  bandido cabeludo, a  barba crescida, tatuagem de mulher nua no pescoço. A arma apontada na sua cabeça. Pedia com o rosto choroso, tenha dó, seu Hércules,  não vou fazer mais isso, eu lhe prometo, não me dê uma surra, seja piedoso. 
Recebido com palmas calorosas, vivas, assovios dos que assistiram as cenas, pasmos. Todos sabiam outra vez que com o seu herói infalível a cidade estava segura. Onde aquele homem  de cara fechada conseguira tanta coragem?
Quando veio ao mundo, contam os mais antigos, ele foi  dizendo logo, aqui cheguei  para  derrotar os malvados, proteger os injustiçados, não tenho medo de cara feia, lobisomem, muito menos de alma  serva do demônio. 
O Prefeito  baixou decreto honroso, considerando seus feitos altamente corajosos, cívicos, exemplares. Seria condecorado com a Medalha Fundador Filinto Sabre, o homem que penetrou a  mata hostil, pegou  cobra com a mão, esmagou com o pé, afugentou onça solteira ou acasalada,  comeu inseto, bebeu água de ribeirão com a concha da mão calosa.  Depois dele tudo ficou mais fácil na selva hostil e impenetrável.  De todas as partes os forasteiros chegavam, os acampamentos na mata viravam vilas, em poucos anos eram cidades. 
          Foi chamado ao palco no dia do centenário da cidade. Todos aplaudiram de pé. Antes que fosse condecorado com a distinção cobiçada, a mais alta honraria do executivo municipal, gaguejou  com uma voz amedrontada diante do homem vermelhuço, rosto flácido, narigudo, orelhas  de abano, um olho de vidro,  em posição solene. 
       - Tire ela daqui, está perto de meu pé; se  não tirar, saio correndo.  
        Acrescentou o herói, em pânico:
        - Desde pequeno tenho medo de barata!

domingo, 17 de março de 2019





           O Triunfo do Amor   

Cyro de Mattos

O moço morava no outro lado do rio. Lá havia uma olaria. Trabalhava ali, fazia moringa, panela,  bonecos e santos.  Mãos caprichosas, artesão afamado. A moça  morava no lado de cá, margem esquerda do rio,  onde havia a pequena cidade com o seu comércio próspero. Fazia  toalha, tapete, rede. As mãos delicadas, tecelã admirada. 
Em cada domingo, empreendia o caminho das águas. Na canoa remava. Sentia-se bem  com a manhã clara, a aflorar sentimentos de ternura, a cada lance que remava.  ”Rema, rema,  remador, se queres ver o teu amor”.    
 Manejava o remo com serenidade, a  canoa singrava no espelho das águas. Prosseguia na manhã sem nuvens,  o moço concentrado em cada remada que dava, a canoa como uma folha  deslizando nas águas claras,  de fontes puríssimas.  “Se a canoa não virar, devagar chegarás  lá,  o teu  amor vais encontrar. ”   
        O casamento foi marcado para maio, mês de nascimento do moço artesão  e da moça tecelã.  Era para acontecer num desses domingos de sol radiante.  Na igrejinha de paredes alvas,  erguida na colina, no pátio  enfeitada de bandeirolas. Lá dentro os vasos com cravos e rosas, os ares ativados com o perfume das flores.  O sino velho na torre saudaria os noivos, as batidas fazendo blem, blem, blem, alegrando a cidadezinha na manhã luminosa.
Vontade de chegar depressa, abreviar o caminho das águas. Bater à porta da casa onde a moça o esperava desde cedo, o coração temeroso, o rosto de ânsia.  A canoa impelida  pelo remo em lances cadenciados. O vento, a princípio manso, de repente assoviou forte,  no peito do moço bateu enraivado.  Mostrava que também estava enamorado da moça. Vento virado em bicho ciumento, danado,  como se quisesse derrubar nas águas  o moço, impedindo-o de se encontrar com a moça.  Bateu mais forte na canoa,  que bateu na pedra,  virou de lado, encheu de água. Desceu para o fundo do poço.  
Nadou com firmes  braçadas. Para se encher de ânimo, o moço dizia para si, entre os redemoinhos da alma.  “Nada, nada, nadador, se queres ver o teu amor.” Até que pisou em terra firme. Estava cansado, o peito arfava. Colheu flores silvestres no barranco, antes de prosseguir na jornada. 
Já desanimada, a moça não mais esperava que ele aparecesse. Ouviu alguém bater palmas lá fora. “Tem alguém aí em casa?”  Apressada foi abrir a porta. Queria saber de quem eram as palmas fortes.  Assustada, viu o moço que aparecia risonho,  um rosto de expressão vitoriosa.  
Entregou à moça o buquê de flores. Pediu uma xícara de café quente. Sentou na cadeira da sala,  vestido com outras roupas, limpas e engomadas,  que a própria moça providenciara. Depois de aquecer o peito com o café, bebido  aos poucos, começou a contar por que se atrasara.  O vento cheio de ciúme  bateu na canoa com uma rajada medonha, suficiente para fazer um  rombo na popa. A canoa afundou.  Para não esmorecer na travessia, fortaleceu a vontade com uma coragem impressionante. Impeliu-se em arrojadas braçadas. Nada o atemorizava. Nem o poço fundo, a correnteza poderosa, o vento incontrolável, que enciumado  assoviava  na manhã tormentosa.   
Durante a difícil travessia, só queria que chegasse aquela  hora para dizer à moça o que sempre desejara:
- Estou esperando na igrejinha para receber você como a minha esposa.  
 Como  havia prometido,  desde aquele dia em que o artesão afamado deu o seu  primeiro beijo na tecelã amada.   

·        Cyro de Mattos é escritor e poeta. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Possui prêmios literários expressivos no Brasil e exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.    

segunda-feira, 11 de março de 2019





           A ACADEMIA DE LETRAS DE ILHÉUS
            COMEMORA 60 ANOS DE HISTÓRIA

                    Por Jane Hilda Badaró

Aos quatorze dias do mês de março de mil novecentos e cinquenta e nove (1959), nesta cidade de Ilhéus, do Estado Federado da Bahia, precisamente as 17 horas, na residência do intelectual Abel Pereira, Edifício Magalhães, 2o. andar, apartamento 2, à Praça Visconde de Mauá, reuniram-se os srs. Abel Pereira, Nelson Schaun, Wilde Oliveira Lima e Plínio de Almeida, membros da comissão de iniciativa , e mais os convidados Dom Caetano Antonio Lima dos Santos, Osvaldo Ramos, José Cândido de Carvalho Filho, Halil Medauar, Jorge Fialho e Otávio Moura- para o caso especial de se estudar o plano e consequente fundação da Academia de Letras de Ilhéus. Nessa reunião, fizeram-se representar pelo Sr. Abel Pereira, por meio de cartas de autorização, os srs. Fernando Diniz Gonçalves, Sosígenes Costa, Camilo de Jesus Lima, Raimundo Brito, Eusígnio Lavigne, Ramiro Berbert de Castro, Flávio Jarbas, Heitor Dias, Flávio de Paula e Milton Santos”.
Com o texto acima, foi iniciada a Ata Especial da Fundação da Academia de Letras de Ilhéus, lavrada em 14 de março de 1959, oportunidade em que registrou-se a designação da primeira diretoria do novel silogeu, composta por Presidente- Abel Pereira, 1º. Vice Presidente- Halil Medauar, 2º. Vice Presidente- Osvaldo Ramos, Nelson Schaun- Secretário Geral, Francolino Neto-1º. Secretário, José Nunes de Aquino- 2º. Secretário, Jorge Fialho-1º. Tesoureiro, Washington Landulfo- 2º. Tesoureiro, Nilo Cardoso- Diretor da Biblioteca, e Plínio de Almeida- Diretor da Revista.
Naquela reunião histórica, o primeiro orador, Plinio de Almeida, “disse considerar aquele dia um dos maiores para os forais ilheenses, pois que, no dia do nascimento de um dos mais altos poetas das Américas, Castro Alves, fundava-se em Ilhéus, graças aos esforços do Sr. Abel Pereira, uma Academia de Letras. Salientou o orador que o cometimento não era pequeno. Uma Academia de Letras requer muito esforço, muito denodo, muita renúncia. Ela, ao nascer, tem de fazer face a muita crítica, sendo, portanto, necessário o esforço dos fundadores para que a obra não fracasse. Esta, acentuou, não fracassará, porque nasceu sob a égide de Castro Alves, que foi um excelso poeta e magnífico batalhador”.
A profética oratória mostra força de concretude na medida em que em 14 de março de 2019 a Academia de Letras de Ilhéus - uma das Academias de Letras mais antiga do Brasil- comemora sessenta (60) anos de fundação. Decerto a missão é hercúlea, exigiu e exige grande esforço de muitos idealistas, desde os fundadores, até seus atuais membros, intelectuais e cultores das Artes e das Letras, mantendo viva a entidade no seu fidedigno propósito expresso no lema do sodalício: “Patriae Litteras Colendo Serviam”. E a Casa de Abel – assim chamada numa referência ao seu idealizador e fundador poeta Abel Pereira- segue firme no cumprimento da missão de incentivar e promover a cultura, através da realização de conferências, concursos, cursos, premiações, e outras atividades de natureza literária, artística e cultural.
Vale assinalar alguns nomes referenciais que ocuparam uma das 40 cadeiras da ALI: Jorge Amado, Adonias Filho, Otávio Moura, Carlos Monteiro, Leones da Fonseca, Paulo Cardoso Pinto, Clarêncio Baracho, Ramiro Berbert de Castro, Otávio Moura, Pe. Nestor Passos, Osvaldo Ramos, Carlos Pereira Filho, Natan Coutinho, Leopoldo Campos Monteiro, José Nunes de Aquino, João Mangabeira, Gileno Amado, Zélia Gattai, Amilton Ignácio de Castro, Janete Badaró, Ariston Cardoso, Dorival de Freitas, Ton Lavigne, Mario Pessoa, Hélio Pólvora, Érito Machado, Raymundo Sá Barreto, Claudio Silveira, Manoel Carlos de Almeida, Hans Tosta Schaeepi, João Hygino Filho, dentre outros.
A despeito da rica história, e maturidade, a Academia de Letras de Ilhéus é hoje uma academia jovem e vigorosa. Existe entre seus atuais membros personalidades das mais diferentes idades, desde o decano ministro José Cândido Carvalho Filho, contando seus 96 anos de vida, Gumercindo Dórea com 95 anos, até o poeta Geraldo Lavigne, hoje com 32 anos, empossado desde 2014. Todos contribuem para o crescimento e enriquecimento da instituição na medida das riquezas de suas trajetórias, da força que empreendem nas lides culturais e artísticas das terras grapiúnas, regionais, estaduais, ou de suas produções literárias. Muitos dos membros da Academia ilheense ganharam, e/ou ganham, visibilidade e reconhecimento que extrapolam as fronteiras nacionais e internacionais.
A Academia de Letras de Ilhéus celebra portanto bodas de diamante, e o momento será comemorado em 14 de março, na sede da Rua Antonio Lavigne de Lemos, às 19 horas, ocasião da abertura do Ano Acadêmico de 2019, com uma preleção sobre a trajetória da instituição proferida por Arléo Barbosa, e posse da Diretoria eleita para o biênio 2019-2021: Presidente: André Luiz Ribeiro Rosa, Vice Presidente- Arléo Barbosa, Secretária Geral: Jane Hilda Badaró, 1ª. Secretária- Maria Schaun, 2º. Secretário- Josevandro Nascimento, 1º. Tesoureiro- Gerson dos Anjos e 2º. Tesoureiro- Gustavo Cunha.
Compõem ainda o quadro da Academia de Letras de Ilhéus: o decano José Cândido Carvalho Filho, Raymundo Laranjeira, Antônio Lopes, Aleilton Fonseca, Luis Pedreira Fernandes, Carlos Roberto Santos Araújo, Cyro de Mattos, Ruy Póvoas, Geraldo Lavigne, Baísa Nora, Eliane Sabóia Ribeiro, Soane Nazaré de Andrade, Ramayana Vargens, Antônio Ezequiel, Jabes Ribeiro, Maria Luiza Heine, Neuzamaria Kerner, Neuza Nascimento, Edvaldo Brito, Carlos Eduardo Passos, Mário Albiani, Pawlo Cidade, Neide Silveira, Anarleide Menezes, Sebastião Maciel, Vercil Rodrigues, Leônidas Azevedo, Gumercindo Dórea, Jorge Luiz Matos, Fabrício Brandão, Luh Oliveira e Carlos Valder Nascimento.
Programada para ocorrer com o quadro completo - com seus membros efetivos ocupando as 40 cadeiras existentes - o destino, entretanto, resolveu surpreender, e, na semana que antecede a solenidade, no dia 8 de março p.p., o advogado João Hygino Filho se despediu deste plano, tendo deixado vaga a cadeira de número 1, e um sentimento de pesar entre seus pares, que, por ocasião da “Sessão da Saudade”, com data ainda a ser definida, eternizarão a sua memória, ressaltando os méritos que possuía enquanto pessoa, profissional e acadêmico.

sexta-feira, 1 de março de 2019


             

                A Metamorfose
        
           Cyro de Mattos

Da sacada do apartamento, jogava o milho pisado para os pombos. Via com prazer  a cena inquieta dos bicos catando as migalhas na rua.
Comprava o passarinho com a gaiola,  na feira, aos sábados. Abria a portinhola, ficava feliz vendo o bichinho bater asas,  desaparecer. Tomava a direção da mata.
Comprara o binóculo para observar com detalhes o espetáculo dos periquitos voando acima dos telhados, próximos ao edifício  onde morava, erguido na colina.
Gritos constantes das aves. Até que se empoleiravam nas árvores perto da igreja.
Acordavam cedo, nuvem de asas acima da torre da igreja. Tomavam depois a direção da mata. Voltavam pela tarde em busca do poleiro nas árvores.
Aqueles bichinhos foram feitos por Deus para voar pelas estações temperadas de sol e chuva. Bicar nas manhãs frutíferas.  Alegrar a natureza com voos e cantos. Cumprir a lei da reprodução da natureza, perpetuar a espécie.  Preso algum deles na gaiola, a vida do cantor prisioneiro passava sem graça, em canto e plumagem perdia o sentido. 
Igual a um castigo destamanho só o de alguém que nascesse sem os braços ou  arrancados do corpo em algum acidente, por exemplo.  
Teve a certeza dolorida disso quando foi atropelado por um caminhão, que  passou na rua desembestado.
Com a pancada, perdeu um dos braços, o outro mutilado, sem a mão, imprestável também.  Sorte não ter morrido. 
Difícil acostumar com a situação precária. Abatia seus  sentimentos e nervos. Os olhos denunciavam  a alma   entristecida.
Os de casa não ligavam para ele. Só servia quando era gerente de banco, sustentando a mulher e os três filhos, a cunhada, a sogra e o sogro. .
Deficiente, impossível agora dar milho pisado aos pombos.  Ficava em silêncio, sentindo pena de si mesmo, a situação irreversível. 
Até que uma manhã acordou com umas asas no lugar dos braços. A princípio achou o acontecimento estranho.  Dessas coisas que por mais que se force a inteligência não se acha a explicação lógica do seu acontecimento. Um milagre, para Deus nada é impossível.
 Foi até a sacada. De lá alçou voo. Não hesitou,  seguiu na direção da mata. O  mundo visto do alto pareceu-lhe então perfeito, cheio de brilho e cores.