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sexta-feira, 22 de novembro de 2019






O TREM
                                  
                                                       Cyro de Mattos



A inauguração da estrada de ferro aconteceu com música. A bandinha tocou marchas, dobrados e maxixes para saudar o desembarque feliz dos primeiros passageiros. Construído pela administração da companhia que implantou a estrada de ferro, um barracão serviu como o primeiro ponto oficial do desembarque.
O trem passou a fazer parte da vida da cidade.
Na partida,  os carregadores colocavam apressados malas e embrulhos pelas janelas dos vagões. Reservavam os lugares melhores para os seus fregueses conhecidos. Na chegada, sempre os mesmos carregadores recebiam malas e embrulhos pelas janelas dos vagões.
O trem era uma coisa viva que partia e chegava, trazendo as cargas de peixe, caju e coco. Pelo apito ficava-se sabendo a hora certa da partida e chegada. Encontros eram marcados pelo apito do trem, de manhã e à tarde, às vezes importantes.
Nos rastros do sonho, vejo a trem fagulhando, atritando, apitando. No vento, no verde, na várzea. Entre os passageiros segue com a conversa tola, velha a mansa. Gente de alpercata fuma na tarde de verão seu cigarrinho de palha.
Quando passa, o trem fala com as pessoas que estão no terreiro, nas portas e janelas das casas à beira da estrada.
Na aurora, na tarde, na fumaça, lá vai o trem.
Quando ele deu o último apito na estação velha, não ficou fogo morto nem sucata.  Nem qualquer sinal de fumaçazinha se perdendo no longe.
No menino permaneceu um percurso luminoso feito por vagões, indo e vindo, subindo e descendo por trilhos que tinham um tom marcante de vozes coloridas na paisagem.
Vagões levavam dias de sol e chuva, traziam a estação de magníficos sabores.
Moleques vendiam cordas de caranguejo na plataforma. Vovó Maria Conga mercava beiju de Água Branca, lugarejo que ficava distante alguns quilômetros da cidade pequena. Do tabuleiro de Vovó Maria Conga vinha o cheiro de mingau quente, atraindo na manhã os fregueses com o rosto de sono.
O trem dava ao menino momentos alegres de aventuras indescritíveis. Certo sentimento humano corria com o vento e formava com a natureza uma relação amiga.
Pela janela desfilavam vales e outeiros.
Gado manso no verde subia a encosta.
No céu nuvens como barcos, almofadas, rochas brancas.
O sol brilhava a manhã com fios de ouro nas folhas de capim.
A cachoeira batia nas pedras uma pancada formosa.
Os olhos do menino viajavam na paisagem.
Quando mais olhavam, mais queriam olhar.
E de olhar tanto nunca se cansavam.
Aos sábados havia uma algazarra na chegada.
Atos, ruídos e gestos propagavam-se pela plataforma.
           No desembarque, como se fosse feita de papagaios e periquitos, mais aumentava a algazarra.
No peito do menino, a tarde reverberava as cores do verão.
A paisagem acomodava-se ali no quarto, os olhos semitontos de sono. Reaparecia num sonho quente e puro, descendo e subindo pelos campos verdes do pequeno coração.










sexta-feira, 8 de novembro de 2019




A Voz do Autor: ficcionista
 e poeta Cyro de Mattos
 

Autor de diversos títulos pela Editus, Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia), Cyro de Mattos, em entrevista concedida à Associação Brasileira de Editoras Universitárias,  fala sobre um de seus últimos livros,  premiações literárias e a projeção global que elas oferecem para o conteúdo de suas obras.
Cyro de Mattos é contista, poeta, cronista, ensaísta, romancista e também autor de livros infantis. Já publicou mais de 50 livros no Brasil e 14 no exterior, sendo 9 deles com o selo editorial da Editus - Editora da UESC. No mês de setembro de 2014, o escritor foi agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela UESC. Em sua trajetória, ele já recebeu mais de 40 prêmios literários, entre eles o Vânia Souto Carvalho, concedido pela Academia Pernambucana de Letras, com o livro “Berro de Fogo e outras histórias”, que em 2013 ganhou nova edição pela Editora da UESC. Seu livro “Vinte Poemas do Rio”, português-inglês, foi indicado para o vestibular da Universidade Estadual de Santa Cruz, durante três anos, como também “O Conto em Vinte e Cinco Baianos”, antologia que ele organizou.
Recebeu ainda prêmios da Academia Brasileira de Letras, Pen Clube do Brasil, Associação Paulista dos Críticos de Artes, Menção Honrosa no Prêmio Jabuti e Menção entre os quatro finalistas no Concurso Internacional Plural, México. Algumas de suas obras destacam a civilização cacaueira baiana como um dos espaços do seu imaginário fecundo, no qual retrata a paisagem, personagens, lugares, hábitos e histórias. Dois outros grandes acontecimentos marcaram a vida do escritor.  Foi eleito para a cadeira nº 22 da Academia de Letras da Bahia, que tem como fundador Rui Barbosa, e o seu livro, “Histórias dos Mares da Bahia”, antologia que ele organizou, foi lançado na 24ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no estande da Associação Brasileira de Editoras do Nordeste - ABEU. A obra faz parte da Coleção Nordestina, projeto editorial que reúne livros produzidos pelas editoras da ABEU Nordeste.  Essa coletânea reúne dezesseis escritores baianos, e, entre eles, João Ubaldo Ribeiro, Hélio Pólvora, Ruy Espinheira Filho, Guido Guerra, Gláucia Lemos e Aramis Ribeiro Costa. No ano passado, seu livro "Cancioneiro do Cacau", Prêmio Nacional Ribeiro Couto da União Brasileira de Escritores (Rio) e Segundo Prêmio Internacional Maestrale Marengo d’Oro, Gênova, Itália, foi lançado na Bienal Internacional do Livro do Rio, em segunda edição. 
1. As suas obras expressam muito da cultura do sul da Bahia, com destaque especial para a civilização nascida ao longo do tempo pela implantação da lavra cacaueira. Essas representações ganharam projeções internacionais e também importantes premiações no cenário nacional. Como é ver o local de suas criações ganhar uma projeção global? Como o senhor avalia pessoal e profissionalmente essas importantes premiações? 
Canta a tua aldeia e serás universal, disse o russo Tolstoi. Para Fernando Pessoa, o genial poeta português, o melhor rio não era o Tejo, mas o rio que passava ao pé de sua aldeia, porque era o rio de sua aldeia. Houve quem observasse que o homem faz o lugar e não o contrário. E o lugar é onde se registra a memória. O lugar tem sido motivação e símbolo para algumas de minhas criações. Minhas origens e vivências locais têm sido uma das vertentes de minhas produções em prosa e verso. Isso acontece quando às vezes, das germinações à execução da ideia, tomo como ponto de partida minhas vivências na infância, em outras vou buscar ou imaginar o assunto no cerne da história, aproveitando o que vi, colhi dos mais velhos ou até pesquisei.  Pode até mesmo acontecer que imagine um espaço sem localização geográfica, identificável com alguma parte do sul da Bahia, como no romance “Os Ventos Gemedores”, no qual criei o condado de Japará para desenvolver a trama, auscultar os personagens através de conflitos no drama.  Assim, desde que meu texto leve aos outros uma nova forma de conhecimento da vida, através da linguagem que poetiza a vida, situações e gente com nervos e sentimentos, tendo como resultado final um alcance universal e reconhecimento, aqui na região e fora de nossas fronteiras, fico contente, torno-me menos incompleto na existência, que para nós humanos é falha, limitada, precária, vulnerável, não basta. É gratificante, um verdadeiro prêmio que é dado ao autor esse tipo de reconhecimento. Acho sensato ser reconhecido em vida pelo meu trabalho, depois de morto só serve para o orador, que passa como herói, ao ressaltar no sepultamento as qualidades de quem se foi para sempre, não está mais neste mundo, ficou submetido ao inexorável. 
2. O senhor foi eleito para ocupar a cadeira 22 da Academia de Letras da Bahia e recebeu o primeiro título de Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz pela sua contribuição à literatura e à cultura.  O que significam esses novos reconhecimentos na sua carreira literária?
São qualificações de meu trabalho no mais alto nível. Sinto-me honrado, fortalecido, incentivado para continuar a jornada nessa estrada solitária, a essa altura comprida.  Nela, paro às vezes, olho para trás, vejo à direita e à esquerda, sigo em frente com tantas vozes no peito, dos outros, mas que no fundo são também minhas. Vou formando com elas e a minha voz o diálogo necessário, o disfarce múltiplo que desfaz o real e projeta outra realidade com novos sentidos, externa outra linguagem através dos sinais visíveis da escrita, com seu poder metafórico intenso e de proliferação, que me ajuda a sobreviver e a conhecer um tanto mais do que sou, entre o alegre e o triste, o transitório e o permanente, o belo e o feio. Vou cumprindo uma missão, usando as palavras para explicar o inexplicável, mas que é belo, com suas verdades retiradas da vida, a ela devolvidas com razão e emoção, porque assim deve ser.
3. O seu último livro, “História dos Mares da Bahia”, antologia integrada por autores baianos, foi lançado na 24ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no estande coletivo da ABEU pela Editus. A publicação traz 16 contos de importantes escritores baianos, que revelam um cenário de muitas histórias. Por que o mar como fonte de inspiração e ambientação? Como foi a escolha dos autores?
Como se vê, sem esforço, trata-se de antologia temática. As histórias têm como foco o mar da Bahia, que entra como o cenário, ora interferindo no destino dos personagens, ora como elemento de composição da paisagem humana. O mar é assim a fonte de inspiração e ambientação de cada história. O mar sempre exerceu uma sedução e atração aos seres humanos. E, como temos ficcionistas na Bahia da melhor qualidade, que souberam focar o mar como  fonte de suas criações, resolvi fazer uma antologia com o tema e com esses autores expressivos. O critério da escolha dos contistas se deu em função da qualidade do texto. Convenhamos que, como em toda a antologia, ocorre a omissão, mas os autores selecionados para a coletânea “Histórias dos Mares da Bahia” são os mais representativos do gênero na Bahia. Eu diria sem hesitar que são contistas brasileiros da Bahia, fortes no discurso coeso.  Com seus projetos estéticos e resultados positivos, todos eles vêm contribuindo para que as letras brasileiras operem como meio eficaz de comunicação humana em sua função social.