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sexta-feira, 27 de dezembro de 2019






Prosa de Ano Novo




Grupos de pessoas vestidas de branco ocupam desde cedo as areias de Copacabana. Branco é a cor que se usa nesse dia especial. Dizem os fiéis que o branco nesse dia dá sorte, atrai os fluidos bons dos ventos que vão ser trazidos pelo Ano Novo. Festa de chegada do Ano Novo na praia de Copacabana atrai muita gente de várias partes do Rio, de todo o país e do exterior. Os fiéis vêm fazer suas preces e entregar presentes a Iemanjá. Flores, perfumes, espelhos, pentes e fitas no pequeno barco enfeitado são levados às ondas. Em sua linguagem mágica, atabaques tocam no tom cativante. Cânticos orantes saem de vozes suaves e contritas. Lamentos e pedidos.
Os pedidos são para que a Rainha do Mar apague o fogo dos inimigos com a força de suas águas. Traga ondas cheias de paz, saúde e prosperidade. Que sejam levados para os espaços mais profundos do mar desconhecido as dores, privações e ressentimentos.
Com o sol se pondo, o movimento de pessoas vai aumentando nas areias de Copacabana. À noite vai ser difícil alguém encontrar um espaço para se instalar de maneira cômoda. Turistas em trânsito pelo calçadão vão querer se aproximar dos grupos de pessoas que estarão entoando cânticos em torno do círculo de velas acesas na praia. Mais um ano que se vai e outro que vem, quando os ponteiros do relógio se encontrar nesse momento mais aguardado, irromperem as sirenes, soarem as buzinas no asfalto. Fogos de artifício soltarem suas flores e cores no céu, cascata cair do edifício num visual que emociona.
Todos os anos a mesma espera, a trégua igual, ritmo de onda que se estende por uma antevisão melhor de vida neste planeta. Sem que os dias sejam ofendidos por nós, humanos. Sem mistério, violência e medo. Sem o trauma da criança que morre com a boca no peito murcho da mãe, o corpinho com os ossos furando a pele, em terras sangrentas e áridas da Somália. Sem que menores sejam fuzilados com tiros na cabeça em pleno centro do Rio. Sem o sofrimento de guerra horrenda na Bósnia Herzegovina, a deixar um saldo de mais de 125000 mortos. Sem o extermínio de 73 índios ianomâmis por garimpeiros na aldeia brasileira de Haximu. Sem a vergonha da putrefação de políticos do Brasil, a vítima sendo como sempre o povo indefeso.
Despedindo-me do ano que se vai e, com desconfiança, acenando para o que vem, não gostaria de lembrar também dos rios que morrem de sede, do ar que tosse, do mar com águas viscosas pelas milhas de óleo despejado no azul. Das ruínas na fauna e da tristeza na flora.
Ah, como gostaria de não lembrar a droga que mata a maravilha. E fazer uma crônica, nesse momento que aguardamos  a vinda do Ano Novo, com o verde brotando dos quatro pontos cardeais. Se fazendo em nuvem sem tamanho, assistirmos esse verde molhar neste planeta os nossos insensatos corações. E mais que a esperança tivesse nesse instante certeza de que dessa vez o Ano Novo vai chegar para valer, rico calendário de voos naturais, sem o gosto amargo de mãos que matam e subtraem.
Apesar de tudo, como diz o sabido grilo Cricrilo, personagem de um livro infantil nosso, ainda inédito, a vida é bela, muita gente é que não dá valor a ela.


quinta-feira, 12 de dezembro de 2019





ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS EMPOSSA SUA NOVA DIRETORIA PARA 2020 

"Não haverá saída possível se não lançarmos um olhar frontal e desarmado para o presente. Não como súditos ou inimigos, mas enquanto cidadãos para construir, de forma inclusiva e generosa, o bem comum", enfatiza Marco Lucchesi em seu discurso de posse na Presidência da ABL.

A nova Diretoria da Academia Brasileira de Letras, eleita no dia 5 de dezembro, tomou posse no dia 12 de dezembro, às 17h00, no Salão Nobre do Petit Trianon (Avenida Presidente Wilson, 203 - Castelo, Rio de Janeiro).

O Presidente é o Acadêmico e escritor Marco Lucchesi. Assumiram, ainda, os seguintes Diretores: Secretário-Geral: Merval Pereira; Primeiro-Secretário: Antônio Torres; Segundo-Secretário: Edmar Bacha; Tesoureiro: José Murilo de Carvalho.
Em seu discurso de Posse, Lucchesi afirmou: "Não haverá saída possível se não lançarmos um olhar frontal e desarmado para o presente. Não como súditos ou inimigos, mas enquanto cidadãos para construir, de forma inclusiva e generosa, o bem comum’.

DIRETORIA DA ABL PARA 2020

MARCO LUCCHESI – Sétimo ocupante da Cadeira n.° 15 da ABL, eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Padre Fernando Bastos de Ávila, Marco Lucchesi, nascido no Rio de janeiro em 9 de dezembro de 1963, é o mais jovem Presidente da Academia Brasileira de Letras dos últimos 70 anos. O mais novo, em toda a história da ABL, foi o Acadêmico Pedro Calmon (1902-1985), que assumiu, em 1945, com 43 anos de idade.
Escritor muitas vezes premiado, tanto no Brasil quanto no exterior, Lucchesi é autor de uma obra que abarca poesia, romance, ensaios, memórias e traduções. Publicou mais de 40 livros ao longo de sua trajetória. Professor titular de Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem pós-doutorado em Filosofia da Renascença na Alemanha. Formado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), possui mestrado e doutorado em Ciência da Literatura. Seus livros mais recentes são O carteiro imaterial (ensaios), Clio (poesia) e O bibliotecário do imperador (romance). Ganhou três Prêmios Jabuti da Câmara Brasileira do Livro.

MERVAL PEREIRA – Oitavo ocupante da Cadeira n.° 31, eleito em 22 de junho de 2011, na sucessão de Moacyr Scliar, Merval Pereira é jornalista e comentarista da GloboNews e da CBN, e colunista de O Globo. Foi eleito Correspondente Brasileiro da Academia das Ciências de Lisboa em novembro de 2016. Em 1979, recebeu o Prêmio Esso pela série de reportagens “A segunda guerra, sucessão de Geisel”, publicada no Jornal de Brasília e escrita em parceria com o então editor do jornal, André Gustavo Stumpf. A série virou livro, considerado referência para estudos da época e citado por brasilianistas, como Thomas Skidmore. Em 2009, recebeu o prêmio Maria Moors Cabot da Universidade de Columbia de excelência jornalística, a mais importante premiação internacional do jornalismo das Américas.

ANTÔNIO TORRES – Nascido na Bahia, Antônio Torres estreou na literatura em 1972, com o romance Um cão uivando para a Lua, considerado pela crítica a revelação daquele ano. Hoje, entre os seus 17 títulos publicados, destaca-se a trilogia formada por Essa terra (1976), O cachorro e o lobo (1997) e Pelo fundo da agulha (2006). Em 1998, foi condecorado pelo governo francês como Chevalier des Arts et des Lettres, pelos seus livros traduzidos na França. Em 2000, teve o reconhecimento nacional ao receber o Prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da sua obra. Em 2001, ganhou o Prêmio Zaffari & Bourbon. Recebeu ainda, entre outros, o Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiro, da Academia Carioca de Letras, e o Prêmio da Academia Petropolitana de Letras, ambos pelo conjunto da sua obra, da 9.a Jornada Nacional de Literatura, da Universidade de Passo Fundo, RS, pelo romance Meu querido canibal. Em 2007, Pelo fundo da agulha foi um dos ganhadores do Prêmio Jabuti. Seus livros, que passeiam por cenários rurais, urbanos e da História, têm tido várias edições no Brasil e traduções em muitos países; da Argentina ao Vietnã. De 1999 a 2005, foi Escritor Visitante da UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, quando ministrava oficinas literárias, realizava aulas inaugurais e proferia palestras nos campi do Maracanã, da Faculdade de Formação de Professores da UERJ em São Gonçalo e da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da UERJ em Duque de Caxias. 

EDMAR BACHA – Economista, fundador e diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças, um centro de pesquisas e debates no Rio de Janeiro, nasceu em Lambari, Minas Gerais, de uma família de escritores, políticos e comerciantes. Sexto ocupante da Cadeira n.° 40, eleito em 3 de novembro de 2016, na sucessão de Evaristo de Moraes Filho, concluiu a Faculdade de Ciências Econômicas na Universidade Federal de Minas Gerais e, em seguida, obteve o ph.D. em Economia na Universidade de Yale, EUA. É autor de inúmeros livros e artigos em revistas acadêmicas brasileiras e internacionais. O último livro foi Belíndia 2.0: Fábulas e Ensaios sobre o País dos Contrastes.

JOSÉ MURILO DE CARVALHO – Historiador e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nascido em Andrelândia (MG), fez sua graduação em Sociologia e Política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e é ph.D. pela Universidade de Stanford. Atuou como professor visitante e pesquisador em diversas universidades estrangeiras, como Oxford, Leiden, Londres, Stanford e Princeton. É autor de vasta produção de artigos e crônicas publicados em jornais e revistas, no Brasil e exterior, e de livros, como Os bestializados (1987), Pontos e bordados (1998), A formação das almas – o imaginário da República no Brasil (1990), Cidadania no Brasil: o longo caminho (2001) e Dom Pedro II (2007). Seu livro mais recente é O pecado original da República.


terça-feira, 10 de dezembro de 2019

o circo







O CIRCO


      Cyro de Mattos


Como me esquecer do circo? Ficava a semana toda aguardando que o homem nas pernas de pau anunciasse a sua chegada. Quando isso acontecia, saía em disparada atrás dele, o coração preste a sair pela boca. Juntava-me a outros meninos, passando a fazer parte do coro de vozes ao redor do homem nas pernas de pau. À pergunta que ele repetia a todo instante, “o palhaço o que é”?, nossa resposta era uma só, explodindo a gritaria no ar, “ é ladrão de mulher!”  
Os circos que apareceram no início eram pequenos. Num desses, a lona furada, poucas luzes na fachada, conheci uma dupla de palhaço que nunca esqueci. Bacurau com a sua cara de mau e Perereca que sempre levava do parceiro um tapa na careca. Bacurau era catroca e tinha o nariz de pipoca. Perereca era um contador de piada sem igual e tinha um calombo na careca.
O circo ficava um mês na cidade. Filho de pais pobres, eu e meu irmão só tínhamos direito de ir ao circo uma única vez, geralmente no domingo. Sempre dava um jeito para ir ao circo mais vezes. Entrava pelo buraco da lona quando o vigia descuidava-se. Vendia jornal na venda, gibi velho na porta do cinema, até garrafa, com o dinheiro apurado comprava o ingresso do circo. Lá estava eu com o coração a bater acelerado, antes que desse início o espetáculo. Não me importava que os números fossem quase sempre os mesmos. Era bom sorrir com as piadas do palhaço, ficar todo arrepiado com o salto mortal que davam os irmãos Vilalba, lá em cima no trapézio da morte.
Foi grande a emoção quando apareceu o primeiro circo com as suas feras amestradas. Leão, tigre, elefante. O chimpanzé andava de bicicleta, fazia piruetas em cima da zebra, dando voltas seguidas no picadeiro. E o sensacional número do globo da morte? Era mesmo aquele circo o maior espetáculo da terra. Acrobatas, trapezistas, equilibristas, malabaristas. Dois times de cães pequenos faziam a bola correr num vaivém que nunca cessava. Flamengo contra o Vasco, a garotada numa gritaria doida quando o gol era marcado. O domador botava a cara dentro da boca do leão. O circo todo em silêncio, um frio corria na espinha, os aplausos demorados para aquele número inacreditável. 
O circo sempre foi para mim aquele mundo feito de aventura, riso e humildade. O mundo permanente de graça na boca escancarada do palhaço com a linguona de fora. Certamente comia palha e aço, daí ser chamado palhaço.  Doçura no frio com a equilibrista que tinha pernas formosas. Vontade de voar como pássaro com aqueles trapezistas lá no alto, no salto de vida ou morte. O perigo vivido com o domador que si arriscava na aventura de fazer com que cinco leões deitassem junto a seus pés, como se fossem uns pequenos grandes felinos bem comportados. Em mim, sensação de que a morte não existia. Meus olhos rodavam rápidos com aqueles dois irmãos que cruzavam e se encruzavam nas motos barulhentas dentro de um globo, onde circulava a perícia feita de nervos e aço.
Como me esquecer da pipoca, algodão doce, cocada, amendoim torradinho e roletes de cana?
Um dia, eu e os amigos resolvemos fazer um circo no quintal. Com palhaço de pernas tortas, a menina Dolores como a fada das flores, Dom Chicote, o incrível domador e suas terríveis feras, Lero-Lero, o cão que dançava bolero, e Cheiroso, o gato manhoso, além do trio que tocava zabumba, sanfona e reco-reco. Era o circo do Ciroca com palco armado embaixo de uma mangueira. O bilheteiro, o próprio dono do circo, feito um general usava grande chapéu de jornal e tinha uma espada de pau.
Uma pena aquele circo ter dado apenas um espetáculo. A plateia não se conformou com a ausência do macaco Caolho, que deveria subir no mastro de cabeça para baixo em menos de um minuto. Entre assobios e gritaria, a plateia começou então a jogar tomates no verde homem-jibóia e no anão Pimpão, que de tão pequeno não saía do chão. Foi tomate para todo lado, assovio, corre-corre, empurrão, nome feio, vexame. Quando o pano caiu por terra, foi logo rasgado em pedaços. O espetáculo foi encerrado com a plateia toda gritando sem parar um só instante: Queremos o macaco Caolho! Queremos nosso dinheiro de volta! Queremos mais espetáculo!