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quarta-feira, 29 de abril de 2020






CENTENÁRIO DE WILSON LINS


Aramis Ribeiro Costa


            Não fosse essa tragédia que se abateu sobre a humanidade em forma de vírus, e certamente a Academia de Letras da Bahia estaria celebrando, com pompas e circunstâncias, o centenário de nascimento de Wilson Lins. A data é 25 de abril, mas o ano nem sempre foi um ponto pacífico na biografia do jornalista, político, escritor e acadêmico. É que havia, na primeira metade do século passado, o costume de se alterar a data do nascimento em documentos e informações biográficas, para atender a certas circunstâncias, como, por exemplo, matricular-se em curso superior, emancipar-se, casar-se, e tantas outras coisas. E o resultado é encontrarmos uma quantidade surpreendente de pessoas que, durante toda a vida, tiveram duas datas de nascimento, a verdadeira, oculta, e a inventada, a servir aos interesses.
            Não sei o que aconteceu com a data de nascimento de Wilson Lins, qual o motivo da duplicidade. O fato é que o ano de 1919 aparece em vários verbetes e informativos biográficos como o ano do seu nascimento. Não foi por outro motivo, aliás, que publiquei um longo artigo intitulado “O Escritor Wilson Lins” na Revista da Academia de Letras da Bahia nº57, trazendo, no pé da página, a informação de que se tratava de “uma homenagem do autor ao centenário de nascimento do acadêmico Wilson Lins, nascido em 25 de abril de 1919”. Mas era engano. Meu e de muita gente. Wilson nasceu, na verdade, em 1920.
            Wilson Mascarenhas Lins de Albuquerque, baiano de Pilão Arcado, foi uma dessas personalidades que, no seu tempo, dispensava qualquer apresentação. Tornou-se, muito moço, redator-chefe do jornal O Imparcial, de propriedade do seu pai Franklin Lins de Albuquerque, quando também se fez cronista político. Fechado O Imparcial, passou a exercer o jornalismo no Diário de Notícias, depois no Diário da Bahia e, finalmente, em A Tarde. Os mais velhos ainda devem se lembrar de Rubião Braz, o pseudônimo que fazia tremer os políticos da época com sua mordacidade e sua aguda ironia.
Do jornalismo passou à política, tendo sido deputado estadual por mais de uma legislatura, presidente da Assembleia Legislativa de Bahia, secretário de Educação e presidente do Conselho Estadual de Cultura da Bahia. Na Academia de Letras da Bahia, para a qual foi eleito em 1967, ocupou a Cadeira número 38.
Não fora eleito para a casa das letras por acaso. Mais do que um notável da Bahia, tratava-se de um de seus maiores escritores. A obra que publicou em livro é considerável e diversificada, passa por coletâneas de crônicas, ensaios, uma novela, memória, mas, principalmente, é alicerçada em seis romances, cinco dos quais poderiam figurar, sem nenhum favor, no cânone da literatura brasileira, como exemplares no seu gênero.
E, de fato, o são. Os Cabras do CoronelO RedutoRemanso da ValentiaResponso das Almas e Militão sem Remorso, romances de coronéis e jagunços, recriam uma dura realidade do sertão baiano no início do século passado, realidade que fez parte da infância do autor, filho de pai coronel. Não fossem as inexplicáveis barreiras que impedem a divulgação, para o resto do país, da literatura produzida na Bahia, ao menos daqueles que daqui não saem, e esses cinco romances de Wilson Lins estariam no catálogo nacional, ao lado dos de Jorge Amado, Adonias Filho e Herberto Sales, o que vale dizer, ao lado do que melhor se fez nesse gênero, na literatura brasileira e em qualquer outra.


*Aramis Ribeiro é ficcionista, poeta e orador  de primeira linha, fazendo uso da  palavra serena e atraente.Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, na qual exerceu  o mandato de presidente por duas temporadas.

sábado, 25 de abril de 2020





              A Musa Mansa de Conceição Nunes Brook  
                                    
                                     Cyro de Mattos

                Filha do pecuarista Isaac Nunes e Dona Rosalva, Conceição Nunes Brook         
 (1943-1990)   nasceu em Ibicaraí onde  viveu a infância, preenchida de brincadeiras e coisas naturais na música da inocência.   Mudou-se para Salvador onde  a moça de beleza radiante foi eleita Miss Glamour Girl.  Quando  morou no Rio mais tarde foi  estudante da PUC.  Casada com um norte-americano,  de quem teve três filhos , mudou-se para os Estados Unidos.
           Sempre se sentiu estranha nos Estados Unidos, a  alma com seus bemóis líricos em compasso brasileiro  não aceitava os sons  de uma paisagem  humana  distante, permeada de cenas diferentes. Pouco lhe dizia no íntimo,  que pulsava no Brasil.  Era ave presa na solidão dos vazios,   sem plumagem ,  nem  bondoso canto   nos caminhos da indiferença.   Tornou-se uma criatura estranha, sem ajuste no cenário que não lhe dizia respeito,  sem conexão da alma,  a   motivar  o disfarce onde não havia tempo para renascer.  Era natural que o tempo fosse parado, “todo o ser disperso com medo do amanhã.”
            Avistava Nova York sem as substâncias que correm nas veias, vindas da infância e das lembranças fraternas,    que viravam agora a mulher sozinha  na difícil arte de camuflar. Via  Nova York como serpente traiçoeira, de bote armado na esquina,  a que fere, queima e cega,  tritura  e devora “inocentes e deslumbrados mortais.”  Separada do marido, voltou ao Brasil, vindo a falecer  anos  depois,  vítima de doença cancerígena.
          Publicou dois livros de poesia, Teu rosto de bem-me-quer, pela Editora Itapuã, Salvador, 1978,  e Me basta uma janela,  Editora Record, Rio de Janeiro, 1984, com o desenho da capa e ilustrações internas do  consagrado Carlos Bastos.  Chama  a atenção   que poeta desconhecido, jovem,  sem convívio  na ambiência literária da época, em Salvador e no Rio, tenha conseguido a proeza  de ter publicado seu segundo livro de poesia  por uma editora importante,  de circulação nacional, sediada na metrópole carioca. Naquela época Rio e São Paulo funcionavam como tambores culturais do Brasil. E até hoje com um lirismo valioso,  em forma de carícia,  embora de legado pequeno, continue sua poesia nem sequer referenciada com o   seu nome  no dicionário de autores baianos, nem em antologias da poesia na região sul baiana.
       Há poetas que fazem da vida uma canção de versos mansos, na qual  a inspiração reveste-se de ternura,  pulsa na transpiração leve  até nos  momentos difíceis. A poesia de Conceição Nunes Brook é  dessa natureza  doce, de tristeza bondosa, tecida com os fios do sonho que se abriga na palavra terna para falar da vida com suas falhas.  Risca  o instante no eterno  tocado de partituras  sentimentais,  que pulsam  antigas e batem no agora ferido. 
       Um dos poemas  belos do livro, “Lamento da Esposa Esquecida”, versos que soam como gemidos do vento,  que fere e não tem volta,  a poeta diz do  marido ausente, a quem gostaria de falar , como o ar que entra pela fresta. Lembrar “do ritmo manso da respiração do nosso filho a dormir” e mais, que ele visse “as duas borboletas tênues  que há pouco pousaram  em minha janela  e voaram juntas num amor  fugaz e eterno, pois são curtas as suas vidas”.
        Longe de ser uma poesia hermética,  mas figurativa em sua estética definida  com clareza,  apoiada em unidades  rítmicas leves,   Conceição Nunes Brook faz  de cada poema uma música, um leve sentido, tocado pela vida transformada no mais belo sonho. No encanto envolve com  seus  dizeres reveladores de segredos,  angústia,   confissões tristes,   impressões alimentadas de esperança,  como se fosse seu propósito final  guardar  esse transe transmitido pela musa mansa  no coração como um manual de delicadeza perfeito.  Até quando  aparece em momento grave , a vida sobreposta na areia dos caminhos  passageiros,  emerge de uma luz,   que leve e distante  esquecerá de quem se foi, mas apesar disso se conserva como suave nesta distância da alma.
        Ante a certeza que a vida é falha,  limitada, contraditória, a gerar o medo e o amor,  ruídos comuns da solidão,  imperfeições das   ausências que não se explicam, essa poesia se basta quando enxerga  a vida através de uma janela. É desta janela que  reparte os sentimentos,  captura temas e momentos de  acordes graves.  Para ler o que  enxerga com o coração, em  suas circunstâncias, basta essa janela aberta no imaginário,   que aflora de dentro de si como densa e pungente fantasia.
       Dessa janela é que avista a vida a galopar em ágeis montarias no jóquei, o vermelho das flores nos galhos de esplêndido dia,  o Cristo  de braços abertos para os espantos filtrados em máquinas fotográficas, a lembrança das vacas mansas e brancas a ruminar o tempo em    mansidão nos  campos verdes  da fazenda paterna. Ali, nesta janela, sabe a sonho  e choro como momentos essenciais da existência,  ternuras e decepções inevitáveis,  que deixam no final a harmonia perfeita do poema merecido.
       Leitora constante de Manuel Bandeira,  Cecília Meireles,  Cesário Verde, Shakespeare e Walt Whitman, mostra-se em algumas epígrafes no poema  nessa boa companhia. Cônscia de que, como Ann M. Lindberg,  somos todos ilhas em um mar comum, essa baiana de Ibicaraí diz no verso  as coisas mais simples e menos intencionais, pois nela  o frágil é forte, alimenta-se da verde esperança.
          Sua poesia é necessidade vital, como  dormir, comer, sonhar, habita o tempo intervalar  entre viver e morrer.  Sempre mirando essa flor com desvelo,  impressa no chão de bondade triste, a poeta diz no poema “Inevitável” sobre  sua crença:

Uns morrem de amor
Eu faço poesia
Uns marcham em protesto
Meu lema é a poesia
Uns se suicidam
Ou são homicidas
Meu ópio é a poesia
Uns se desesperam
Meu grito é a poesia
Uns morrem no exílio
Meu país é a poesia
Uns dão volta ao mundo
Meu barco é a poesia
Uns trancam-se mudos
Meu silêncio é a poesia
Uns,   danças e festas
Meu canto é a poesia
Uns ganham medalhas
Meu prêmio é a poesia
Ou são condenados
Minha pena é a poesia
Uns pedem socorro
Meu amparo é a poesia,
Uns querem resposta
Quanto a mim:
Me basta a poesia.

             Sobre o  livro Teu rosto de bem-me-quer, Jorge Amado opinou:
                     “Li seus poemas, poesia sensível  e dramática, com duas vertentes que aparentemente se chocam; em realidade completam-se dando-nos a verdade inteira do poeta.
                 “De um lado o verso simples, comunicativo, uma alegria de infância, uma cantiga de amigo; do outro lado,  num ritmo mais torturado, o abafado soluço de quem busca encontrar-se, mas não se entrega, não faz da poesia confissão pública, grito, pedido de socorro... apenas como interrogação dolorosa. Das duas vertentes, surge a poesia de densa emoção e de real beleza.”
          Conceição Nunes  Brook faleceu em 14 de dezembro de 1990.



segunda-feira, 20 de abril de 2020




ISOLADA NESTA CASA
                   Raquel Naveira

Estou isolada nesta casa, no centro do mundo. Escriba, copio textos rituais. Tomo atitude e posição em relação a forças que caminham lá fora: pragas, pestes, epidemias, chuvas malignas, gotículas virulentas, que insistem em entrar pelas portas, pelas frinchas, pelos vãos do telhado e da consciência. A Terra, li nesta página, não disfarça mais seu drama, não encobre mais seus mortos, que se empilham nas calçadas, nas valas, nos caminhões, nos frigoríficos.
Movimento-me dentro da casa como um fantasma pela sala. Abro e fecho as cortinas de veludo roxo. Desço até o porão, subo ao sótão, removo poeiras e recordações, cozinho bolotas de carne, busco refúgio num travesseiro, como se fosse o seio da minha mãe. Mas o sono é pouco, o sangue arde, a sede nunca é mitigada. Batidas do relógio se sucedem numa cadência de opressão.
Quando criança, eu me sentia, ao mesmo tempo, uma menina solitária e uma velha, muito sábia, conhecedora de sortilégios, de coisas humanas e divinas. Agora, nesta casa cheia de quartos, vive aquela velha que fui. Uma mulher arquivelha, que consultou inúmeros livros, testemunhou tantas histórias, que nem tem vontade de contá-las a ninguém. Relatos que pertencem a um passado onde acender lampiões no fim da tarde, para admirar o voo das mariposas em torno da chama, era uma experiência das mais trágicas e estonteantes.
Nesta casa, quase um casulo, aceitei as condições da existência e elas são poucas: nascer, viver e morrer. Da janela, posso tecer fios de seda em direção ao infinito. Permanecer em silêncio por horas, sentindo o ar apocalíptico que paira na rua vazia.
Não posso reclamar, é uma casa resistente, capaz de suportar os blocos gigantes que desabaram em avalanche sobre o teto. Blocos que se espalharam por aldeias e metrópoles, em formas alternadas de coroas e tempestades.
Sou eu mesma nesta casa: com meus cabelos grisalhos, meu cérebro e tripas. Potência de alto risco nas entranhas. Não importa que tudo aqui seja antigo: da cristaleira aos valores que todos desprezam. Continuo fiel ao espírito que me habita e ao qual, um dia, cedi a palavra poética. Uma fidelidade cada vez mais muda e canina.
Este cômodo, apesar de pequeno, na minha mente é palco para um banquete: logo virá o rei, montado em seu cavalo branco e se assentará ao meu lado, com seus servos e o meu povo, minha família distante. Entre taças de vinho, brindarei àquele que ouviu meu chamado na angústia e veio para me livrar de tudo o que me aconteceu: torturas, espadas, dores, coração partido, ingratidões, essa fome de justiça, esse confronto constante com emissários da Pérsia e de outras nações, cobrando seu jugo e seus impostos.
Estou extenuada nesse isolamento. Mal posso me mover na cama. Mas esta casa tem atmosfera de prece. É de uma mulher arquivelha, edificada nas rochas e nas nuvens, pronta para virar lembrança.

* Raquel Naveira é escritora.Do Pen Clube do Brasil.  

quinta-feira, 16 de abril de 2020


                         
                       
                       O NECESSÁRIO PESAR DO PEN CLUBE

O Pen Clube Internacional - Brasil chora a morte no dia de hoje de Rubem Fonseca .

As razões, muitíssimas e todas elas fundamentais, sequer carecem de explicitação, tal a altura e dimensão de sua obra. Não apenas por ter sido um dos mais relevantes e originais escritores do Brasil nestes séculos XX e XXI. Senão também por seu caráter pessoal e discrição de vida em todos as inúmeras décadas em que vicejou na literatura, subtraindo-se de entrevistas, da curiosidade pública e de vaidades vãs.  Monasticamente, eu diria. Rubem Fonseca, contudo, exercia inestimável fascínio pela gentileza de trato e delicadeza pessoal com seus interlocutores, quase sempre escritores e artistas.
Portanto, há que se registrar esse procedimento para, de pronto, eximi-lo da fama de turrão, de não receber ninguém, de useiro e vezeiro em grosserias. O que configuraria grave e insolente injustiça. Por certo que ele só recebia quem lhe aprazia, de quem ele gostava, quem pudesse compartilhar com ele os jogos da inteligência e da literatura. Não a toa sua obra seria galardoada por dezenas de premiações e honrarias, as principais das quais incluem o Prêmio Machado de Assis e o Prêmio Camões.
 Não me furto aqui de registrar uma memória saudosa, que nos uniria, embora por pouco tempo. Quando o conheci, apresentado por Otto Lara Resende na Procuradoria do Estado da Guanabara, lá pelos anos 60, Rubem ficou muito interessado [e curioso] pelos depoimentos para a posteridade que eu levava a cabo, com fúria e paixão, a cada semana, ou quase no Museu da Imagem e do Som. Ele assistiu a muitos, inclusive, ao que lembro, os de Jorge Amado, Marques Rebello e Pixinguinha, bem como o de Chico Buarque aos 20 anos. Um detalhe que agora me acode com clareza singular: já naquela altura, ainda jovem, Rubem mantinha afastamento e discrição frente aos jornalistas que acompanhavam os depoimentos.
Quando certa vez o convidei para integrar a mesa de entrevistadores, creio que no depoimento de Marques Rebelo, ele respondeu com um muxoxo – “Tá doido, sô. Quero distância dos repórteres”. Minutos antes de terminar a entrevista, Rubem Fonseca saiu de fininho. Sem sequer ser visto.

*Ricardo Cravo Albin
 Presidente do Pen Clube Internacional- Brasil

quarta-feira, 15 de abril de 2020


             
                                      Crônica Quase de Amor

                                        Cyro de Mattos 

          
               Casou-se com a moça que ensinava Canto no educandário feminino. Tinha muita crença em Deus, fazia parte do coro na Catedral de São José, era filha de Maria. Pianista admirada,  compôs o hino da cidade, além disso escreveu  a letra.  Havia fundado a escola de música “Som do Sol” para meninos e jovens carentes,  necessitados de desenvolverem seu pendor para a vida tocada por sons e pelas cordas.  Marília havia sido a sua primeira namorada quando cursava o segundo  ano no ginásio local. E ele havia sido também o primeiro namorado dela.
      Uma moça recatada, filha do maestro da Filarmônica da Euterpe e da diretora do educandário feminino. No seu retorno à terra natal, encontrou-se com Marília no salão nobre da sede da Prefeitura Municipal.  A cidade  comemorava mais um ano de emancipação política.  À noite dançou a valsa na festa que o clube social dava  para homenagear o  aniversário da cidade.  Reataram o sentimento de amor  que ficara adormecido no tempo desde  que tiveram o primeiro namoro naqueles idos adolescentes,  quando eram estudantes do ginásio local. 
          Havia três anos que vinha exercendo a profissão de advogado com zelo e dedicação na sua terra natal. Pensou que já era hora de se casar e constituir uma família. Marília foi a  moça eleita para assumir a condição de esposa, tornar-se  mãe de seus filhos.  Não entendia como uma  moça da beleza dela,  de boas maneiras, recatada, comportamento irretocável,  não tinha encontrado  um parceiro ideal  para levá-la ao altar e com a bênção de Deus fosse selada uma união definitiva.  
        - É verdade, Marília, que  fui o seu primeiro  namorado?
       - O primeiro e único.
      - Por que ficou tanto tempo sem  namorar  algum rapaz da cidade ou de fora?
     - Isso não me incomodava.
     - Creio que pretendente não faltou.
    -  Não,  mas recusei as propostas, preferia esperar por você.
    Assim era o destino que em certos momentos somente ele sabe como engendrar situações no curso do amor. Tantos anos  em Salvador, estudando para se tornar um advogado e, quando pensou no último ano do curso  que era chegado o momento de pensar em se casar  com uma moça digna,   não  passou pela cabeça em se lembrar de Marília,  a primeira namorada que teve na sua vida,  filha da mesma cidade, como ele.  Ela tinha sido apenas um breve momento de sua vida, como foi  a primeira gravata usada no baile para comemorar a coroação da rainha da primavera no clube social, e que, pasmem os céus, a  eleita entre os estudantes  fora a adolescente Marilia,  sua colega de turma. 
    Ah, a vida, a vida, ia passando com as suas pegadas ocultas na trama do amor. Ali estava na sua cidade a moça que  esperava sem pressa  para  se casar com ele.  Tudo estava marcado para acontecer porque assim é que devia ser.






sexta-feira, 10 de abril de 2020






Poemas Cristãos

        Cyro de Mattos




Jesus

Deus é o crivo   da
Dor no  coração.  Pétala
 Que da chaga exsurge.


Calvário

Na opressão
na perseguição
na aflição
na traição
na depressão
na escuridão
na solidão
na sensação
do cuspe
e do cravo
no coração
Senhor meu
dá-me tua mão

 Este Cristo

É maior que o mundo
este andor feito na dor
dos grandes rumores.
É maior que o mundo
esta luz feita na cruz
dos grandes tremores.
É maior que o mundo
este amor feito no ardor
dos grandes clamores.
Ó peso da terra
cuspe, chicotada, crivo.
E das chagas flores.


  Canto de Amor

E todo este peso
terrestre perfurou
a flor da comunhão,
de braços abertos
clamas como cacto.
E dignos não somos
de olhar este rosto
que pende no amor
do sangue derramado.
E solitários caminhos
da ternura os desviados
na voz de tudo que é perdão.
O canto de amor prossegue
pelos que têm fome e sede
e carregam o dilema do pacto.


Santa Cruz


Todo o peso da terra
com ofensa e lenho
aqui deste desterro.

      Pedras cor de vinho,
      setas de veneno
      dos que ladram.

      Lábios de sede,
      botão que se abre
      na flor do perdão.

      Até hoje a oferta.
      A ternura como meta
      jogada na sarjeta.

Sexta-Feira Maior

O sol morre.
Turva onda
o mundo em aflição
molha-me de roxo.
Nada valho.
Nada sou de fato.
Prefiro Barrabás,
crucifico o amor,
sem dó e lágrima
até o último silêncio.

 Soneto da Paixão

Ao pé do Cristo todas as infâmias,
ao pé do Cristo todas as insônias,
ao pé do Cristo todas as intrigas,
ao pé do Cristo todas as refregas.

Ao pé do Cristo todos os sedentos,
ao pé do Cristo todos os famintos,
ao pé do Cristo todos os horrores,
ao pé do Cristo todos os clamores.

Ao pé do Cristo todos os insultos,
ao pé do Cristo todos os corruptos,
ao pé do Cristo todos os ladrões,

ao pé do Cristo todas as prisões.
Nessa onda que nos leva como cães,
cura-me, ó Deus de todas as paixões.

             Louvemos Baixinho

                                 Para Manuel Bandeira,
                                em memória

 Nasceu numas palhas
o nosso reizinho,
os matos cheiravam,
o vento embalava.

A Virgem Maria
sentia como doía
o destino humano
do filho de Deus.

Quando for um homem
com o nome de Jesus
de tanto nos amar
irá morrer na cruz.

Louvemos no Natal
o nosso reizinho
enquanto ele dorme
como um cordeirinho.
                                                         

*Cyro de Mattos escreve crônica, conto, poesia, romance, ensaio e literatura infantojuvenil. Já publicou mais de 50 livros. Doutor Honoris causa da UESC. Tem no prelo da Editus, editora da UESC, Nada Era Melhor, romance da infância, Pequenos Corações, contos, e O Discurso do Rio, poesia. Membro  da Academia de Letras da Bahia.