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sexta-feira, 29 de maio de 2020




O Menino e o trem

Cyro de Mattos  
                                  
A inauguração da estrada de ferro aconteceu com música. A bandinha tocou marchas, dobrados e maxixes para saudar o desembarque feliz dos primeiros passageiros. Construído pela administração da companhia que implantou a estrada de ferro, um barracão serviu como o primeiro ponto oficial do desembarque.
O trem passou a fazer parte da vida da cidade.
Na partida,  os carregadores colocavam apressados malas e embrulhos pelas janelas dos vagões. Reservavam os lugares melhores para os seus fregueses conhecidos. Na chegada, sempre os mesmos carregadores recebiam malas e embrulhos pelas janelas dos vagões.
O trem era uma coisa viva que partia e chegava, trazendo as cargas de peixe, caju e coco. Pelo apito ficava-se sabendo da hora certa da partida e  chegada. Encontros eram marcados pelo apito do trem, de manhã e à tarde, às vezes importantes.
Nos rastros do sonho, vejo o trem fagulhando, atritando, apitando. No vento, no verde, na várzea. Entre os passageiros segue com a conversa tola, velha e mansa. Gente de alpercata fuma na tarde de verão seu cigarrinho de palha.
Quando passa, o trem fala com as pessoas que estão no terreiro, nas portas e janelas das casas à beira da estrada.
Na aurora, na tarde, na fumaça, lá vai o trem.
Quando ele deu o último apito na estação velha, não ficou fogo morto nem sucata.  Nem qualquer sinal de fumaçazinha se perdendo no longe.
No menino permaneceu um percurso luminoso feito por vagões, indo e vindo, subindo e descendo por trilhos que tinham um tom marcante de vozes coloridas na paisagem.
Vagões levavam dias de sol e chuva, traziam a estação de magníficos sabores.
Moleques vendiam cordas de caranguejo na plataforma. Vovó Maria Conga mercava beiju de Água Branca, lugarejo que ficava distante alguns quilômetros da cidade pequena de Itabuna. Do tabuleiro de Vovó Maria Conga vinha o cheiro de mingau quente, atraindo na manhã os fregueses com o rosto de sono.
O trem dava ao menino momentos alegres de aventuras indescritíveis. Certo sentimento humano corria com o vento e formava com a natureza uma relação amiga.
Pela janela desfilavam vales e outeiros.
Gado manso no verde subia a encosta.
No céu nuvens como barcos, almofadas, rochas brancas.
O sol brilhava a manhã com fios de ouro nas folhas de capim.
A cachoeira batia nas pedras uma pancada formosa.
Os olhos do menino viajavam na paisagem.
Quando mais olhavam, mais queriam olhar.
E de olhar tanto nunca se cansavam.
Aos sábados havia uma algazarra na chegada.
Atos, ruídos e gestos propagavam-se pela plataforma.
           No desembarque, como se fosse feita de papagaios e periquitos, mais aumentava a algazarra.
No peito do menino, a tarde reverberava as cores do verão.
A paisagem acomodava-se ali no quarto, os olhos semitontos de sono. Reaparecia num sonho quente e puro, descendo e subindo pelos campos verdes do pequeno coração.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

                 


                  A Rosa Com Agruras e Ariston Caldas

                                     Cyro de Mattos



Nome completo,  Ariston Ribeiro Caldas, nascido em 15 de dezembro de   1926, na fazenda Boa Sorte, no município de Alagoinhas. Aos oito anos veio com a família para Uruçuca, antiga Água Preta, terra do contista  Jorge Medauar e do  poeta Florisvaldo Mattos. Tempos depois mudou para Itabuna, onde passou grande parte de sua vida e teve suas melhores emoções.
Ariston Caldas é cronista,  poeta e contista. Jornalista com passagem  na imprensa de Salvador. Confessava que desejava escrever romances,  mas não tinha fôlego para empreender a  aventura de representar a vida em níveis  mais amplos. . Publicou  A hora sem astros, Olhos d’agua, Mar distante, Balada que vai e  vem, A rosa daquela esquina e Dissipação. Sua Obra reunida (2014) tem o selo da editora Mondrongo,  Em 2014, depois  de um recolhimento de trinta e quatro anos, voltou a publicar literatura, dessa vez com  Linhas intercaladas, volume de  cinqüenta contos, da  editora Via Litterarum,  com prefácio do compositor Fernando Caldas, sobrinho do autor. 
Suas histórias  alcançam interesse pelo que têm de gente comum  vivendo no interior e do   cenário que não mais se encontra  nos tempos atuais de globalização,  da  tecnologia e da imagem visual. Em nosso entendimento, o poeta está acima do contista, que não usou bem a estilização  na arte de contar história,  oscilando entre vícios e virtudes. Sua  poética instintiva, de inquietação e sentimento  do que imagina  e vê,  não recorre aos  elementos  formais com exagerada preocupação da técnica, nem  é influenciada pelas  vanguardas. Também  não se esforça  para ressaltar  a sonoridade e o embelezamento do verso,  dando a perceber o  desinteresse pela mensagem lírica do conteúdo.   Não tende para a estética parnasiana, que muito pouco acrescentou à poesia em termos de mensagem como vínculo de gravidade de nossa condição humana,   limitando-se mais à perfeição formal como o primeiro plano do poema. 
            Certa vez confessou que ser poeta é abraçar a vida no plano integral  dos sentimentos,  que emergem da viagem perigosa do existir. Sabê-la,   com os momentos  fortes, como o  amor, o ódio, a dor, a mágoa, o tédio, as desilusões, a saudade, a esperança, a tristeza e a fé,  é o prisma pelo qual o poeta universal se direciona  no seu discurso.  Acreditava  que o  poeta é portador de todas as sensações do mundo. Frisava: “Todos os enfermos repousam em sua alma, sente todas as ingratidões, ama ao extremo  e sofre como ninguém jamais sofreu. Tem esperança imorredoura, o que não é simplesmente uma esperança, mas o pressentimento do significado absoluto da vida universal.”
           Nessa poesia  desvinculada de estéticas definidas, que configuram  a conduta de gerações,  usou o verso livre e o tradicional com as unidades rítmicas apoiadas  na métrica e na rima. Utilizou os dois padrões mencionados,  conforme o momento para  conversar com a vida  na sua passagem  fugaz,   se esconder no caminho que não tem volta, no sentimento forte do amor, no trágico que não se desvenda e  é dissolvido   na indiferença.
          Escreveu neste sentido  o poema “Convicção”, até hoje perfeito,  criação  feliz  que aborda  o instante extremo definido como  enigma, que,  inexplicável,   apresenta-se com as vestes da  vida e da morte.  Vejam o poema abaixo transcrito. 
         
  Convicção

A vida é assim mesmo, meu amigo:
A gente nasce e morre num instante,
Esta é a recompensa, este é o castigo,
Que nos espera pouco ou mais distante.

Nem nos vale o beijo quente da amante
Nem a bênção mesquinha do mendigo;
Até o santo amor, agonizante,
Terá seu fim no fundo do jazigo.

Nós somos tudo,  meu amigo, enquanto
Nos olhos vivos nos ocorre o pranto
Ou nos lábios um sorriso de alento.

Apenas o consolo que nos resta
É de  sabermos que depois da festa,
Mergulhamos de vez no esquecimento.

Poeta de compulsões anímicas, que se nutria com  o  eu de confissões, conversas com o velho rio, a amada que  ficou  “no poema recriado pela colegial de olhos miúdos, numa tarde de sete de setembro”,  mistura  a agonia  com  estrelas e oceanos. Teve no estro como companhia a rosa com  agruras, o sentido da vida  dirigido à intimidade   “com um sabor  amargo de partida”.
           Homem simples,  voz mansa, o coração fraterno.  Quando rapaz, gostava de jogar futebol, atuando como goleiro em partidas aguerridas  no saudoso Campo  da Desportiva.           
         Faleceu em  20 de fevereiro de 2007, em Salvador.
                    






                        A Rosa com Agruras e Ariston Caldas


Nome completo,  Ariston Ribeiro Caldas, nascido em 15 de dezembro de   1926, na fazenda Boa Sorte, no município de Alagoinhas. Aos oito anos veio com a família para Uruçuca, antiga Água Preta, terra do contista  Jorge Medauar e do  poeta Florisvaldo Mattos. Tempos depois mudou para Itabuna, onde passou grande parte de sua vida e teve suas melhores emoções.
Ariston Caldas é cronista,  poeta e contista. Jornalista com passagem  na imprensa de Salvador. Confessava que desejava escrever romances,  mas não tinha fôlego para empreender a  aventura de representar a vida em níveis  mais amplos. . Publicou  A hora sem astros, Olhos d’agua, Mar distante, Balada que vai e  vem, A rosa daquela esquina e Dissipação. Sua Obra reunida (2014) tem o selo da editora Mondrongo,  Em 2014, depois  de um recolhimento de trinta e quatro anos, voltou a publicar literatura, dessa vez com  Linhas intercaladas, volume de  cinqüenta contos, da  editora Via Litterarum,  com prefácio do compositor Fernando Caldas, sobrinho do autor. 
Suas histórias  alcançam interesse pelo que têm de gente comum  vivendo no interior e do   cenário que não mais se encontra  nos tempos atuais de globalização,  da  tecnologia e da imagem visual. Em nosso entendimento, o poeta está acima do contista, que não usou bem a estilização  na arte de contar história,  oscilando entre vícios e virtudes. Sua  poética instintiva, de inquietação e sentimento  do que imagina  e vê,  não recorre aos  elementos  formais com exagerada preocupação da técnica, nem  é influenciada pelas  vanguardas. Também  não se esforça  para ressaltar  a sonoridade e o embelezamento do verso,  dando a perceber o  desinteresse pela mensagem lírica do conteúdo.   Não tende para a estética parnasiana, que muito pouco acrescentou à poesia em termos de mensagem como vínculo de gravidade de nossa condição humana,   limitando-se mais à perfeição formal como o primeiro plano do poema. 
            Certa vez confessou que ser poeta é abraçar a vida no plano integral  dos sentimentos,  que emergem da viagem perigosa do existir. Sabê-la,   com os momentos  fortes, como o  amor, o ódio, a dor, a mágoa, o tédio, as desilusões, a saudade, a esperança, a tristeza e a fé,  é o prisma pelo qual o poeta universal se direciona  no seu discurso.  Acreditava  que o  poeta é portador de todas as sensações do mundo. Frisava: “Todos os enfermos repousam em sua alma, sente todas as ingratidões, ama ao extremo  e sofre como ninguém jamais sofreu. Tem esperança imorredoura, o que não é simplesmente uma esperança, mas o pressentimento do significado absoluto da vida universal.”
           Nessa poesia  desvinculada de estéticas definidas, que configuram  a conduta de gerações,  usou o verso livre e o tradicional com as unidades rítmicas apoiadas  na métrica e na rima. Utilizou os dois padrões mencionados,  conforme o momento para  conversar com a vida  na sua passagem  fugaz,   se esconder no caminho que não tem volta, no sentimento forte do amor, no trágico que não se desvenda e  é dissolvido   na indiferença.
          Escreveu neste sentido  o poema “Convicção”, até hoje perfeito,  criação  feliz  que aborda  o instante extremo definido como  enigma, que,  inexplicável,   apresenta-se com as vestes da  vida e da morte.  Vejam o poema abaixo transcrito. 
         
  Convicção

A vida é assim mesmo, meu amigo:
A gente nasce e morre num instante,
Esta é a recompensa, este é o castigo,
Que nos espera pouco ou mais distante.

Nem nos vale o beijo quente da amante
Nem a bênção mesquinha do mendigo;
Até o santo amor, agonizante,
Terá seu fim no fundo do jazigo.

Nós somos tudo,  meu amigo, enquanto
Nos olhos vivos nos ocorre o pranto
Ou nos lábios um sorriso de alento.

Apenas o consolo que nos resta
É de  sabermos que depois da festa,
Mergulhamos de vez no esquecimento.

Poeta de compulsões anímicas, que se nutria com  o  eu de confissões, conversas com o velho rio, a amada que  ficou  “no poema recriado pela colegial de olhos miúdos, numa tarde de sete de setembro”,  mistura  a agonia  com  estrelas e oceanos. Teve no estro como companhia a rosa com  agruras, o sentido da vida  dirigido à intimidade   “com um sabor  amargo de partida”.
           Homem simples,  voz mansa, o coração fraterno.  Quando rapaz, gostava de jogar futebol, atuando como goleiro em partidas aguerridas  no saudoso Campo  da Desportiva.           
         Faleceu em  20 de fevereiro de 2007, em Salvador.
                    


terça-feira, 19 de maio de 2020




Editoras no Sul da Bahia

Cyro de Mattos
              
Há pouco mais de cinquenta anos, o romancista Otávio de Faria perguntou na Biblioteca Nacional ao amigo Adonias Filho o que era que o sul da Bahia produzia além do cacau. Respondeu sem hesitar o consagrado escritor Adonias Filho que produzia artistas da palavra.  E citou os nomes de Jorge Amado, Sosígenes Costa, Emo Duarte,  Jorge Medauar e Hélio Pólvora. Acrescentou que mais escritores estavam chegando, como Telmo Padilha, Florisvaldo Mattos, Marcos Santarrita, Ildásio Tavares,  Sonia Coutinho e este cronista.
        A publicação de escritores do sul baiano naqueles idos que já vão longe acontecia  de fora para dentro. Depois que a Universidade Estadual de Santa Cruz foi implantada  há pouco mais de duas décadas, a publicação de escritores sulinos do Estado  passou  a ser realizada de dentro para fora.   Como usina  educativa e cultural, a  UESC vem fornecendo  o  instrumental teórico necessário, que serve como estímulo e lapidação das vocações dos escritores  no sul do Estado.   
Formado  o poderoso corpo literário,  fazia necessário a criação da editora para  publicar os livros de tantos  autores nascidos ou residentes no sul da Bahia. Surgiu primeiro a Editus, editora da Universidade Estadual de Santa Cruz,  sediada na rodovia Jorge Amado, entre Ilhéus e Itabuna. Dirigida hoje pela  doutora Rita Virgínia Argolo, passa por fase difícil  em virtude da falta de verba estadual.  Presta-se às publicações  de natureza universitária, além de prestigiar a edição de autores  regionais, selecionados pelo seu conselho consultivo.   A impressão de seus livros,   sob o ponto de vista de confecção artística e gráfica, para não se falar do conteúdo,  é de excelente nível.   Circulam em ambiência nacional, com a vantagem de que  a Editus  integra a Associação Brasileira  de Editoras Universitárias, marcando   presença em feiras de livros e eventos, inclusive nas bienais de São Paulo e Rio de Janeiro.
A segunda de nossas editoras é a Via Litterarum,  sediada em Ibicaraí, já com dezenas de títulos em seu catálogo.  Seu diretor é o  incansável Agenor Gaspareto, dublê  de editor guerreiro e professor universitário. A caçula é a Mondrongo, regida sob a batuta do poeta e  cronista Gustavo  Felicíssimo, localizada em Itabuna. Possui livros premiados em concurso literário cobiçado, de âmbito nacional, como  A Dimensão Necessária, de João Filho, Prêmio de Poesia da Biblioteca Nacional, e Natal de Herodes, Prêmio de Poesia da Academia Pernambucana de Letras.  Qualquer escritor que seja publicado por uma das três  editoras está  em boas mãos.
Lamentável. Até hoje essas editoras não receberam por sua iniciativa o  reconhecimento e o abono merecido  de um projeto  das secretarias de educação e da cultura de Itabuna e Ilhéus, como incentivo à edição de livro do autor regional.   A literatura é útil ao próximo na compreensão do mundo.  Fala à imaginação e ao sentimento. É a expressão mais completa do homem na leitura do mundo. Cometem  omissão incompatível  com a sua finalidade de órgão público educativo  quando deixam de elaborar projeto de reconhecimento e incentivo  à editora no sul da Bahia.  O patrimônio  formado pela literatura  é valioso,  serve para  apresentar  a vinculação da vida no seu processo histórico  ao percurso  espiritual de um povo.  Nunca é demais lembrar o que nos disse o genial poeta Castro Alves.

 Oh! Bendito o que semeia
Livros à mão cheia
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n'alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!

*Cyro de Mattos é poeta e escritor. Primeiro 

quinta-feira, 14 de maio de 2020




              O Pássaro do Poeta  Hélio Nunes
                   
                         Cyro de Mattos
       
Foi com a imagem do pássaro que canta o amanhã justo, o amor da amada com a sua carga de ternura constante, o desejo de um mundo para o filho sem as marcas amargas do presente, que o jornalista e poeta Hélio Nunes teceu e aconteceu seu canto no único livro publicado de poesia. Com capa de Santa Rosa, Pássaro do amanhã é como  canto preso na alma, como diz o poeta, “e ele canta por minha boca.”
Esse pássaro canta pelo amor,  o sentimento mais belo,  pela liberdade,  o mais forte,  pela ternura, que está na infância, pela solidariedade, que assume os meninos abandonados de rua, os adultos que estão presos e não têm  dinheiro para contratar advogado. Se a esperança veste a ternura  com o sorriso da flor, o canto que veste os versos de Hélio Nunes  é revestido de palavras que se abraçam como velhas amigas. Nutre-se do brilho das estrelas,  do enlevo na sua tristeza lírica, como quando o poeta vê o tempo passando enquanto navega em barquinhos de papel da doce infância.  
Hélio Nunes produz o poema com este sentimento forte do amor, decorrente de  sonhos  que  propõem a vida com braço ao abraço, sem a escuridão da matéria  que prende o dia claro na noite de estrelas apagadas. Mas também marcado por esse desejo de mudanças,  que extirpem as desigualdades, as doenças  sociais alimentadas com a pobreza para o sobejo das corrupções. Não é uma poesia panfletária, pelo contrário, dotada de linguagem fácil,  a  ideia nada tem de artificial e política no pior sentido estético.  Impressiona com o seu grito, sua verdade na  palavra escrita com fogo, daí que pode ser lembrada em companhia de poetas do timbre de Thiago de Melo e Moacir Félix. 
No antológico poema “Liberdade”,  Hélio Nunes diz do  entendimento  sobre o que significa uma palavra  tão cara:

 O vento corre,  corre
cochicha pelos roseirais,
            pelos caminhos levanta pó,
           pelos ares arvora bandeiras
           raivosas de espumas.
          Liberdade – o vento foi feito para correr.

A águia voa, voa,
traça no espaço azul
audaciosas linhas
de uma geometria que ainda
Einstein não estudou.
Liberdade – a águia foi feita para voar.

Além um homem falava
de igualdade e justiça.
Tinha nos olhos o mesmo brilho/
de uma estrela matutina.
/Liberdade – o homem nasceu para pensar.

Vê-se assim que poucos poetas trataram o tema com o toque de simplicidade, força verdadeira de versos traçados com sons da alma e cores da vida.
Ele foi um poeta de seu tempo e lugar. Cantou as primeiras  aventuras siderais do homem. Ofertou sorrisos e flores à amada Valquíria,  a companheira  verdadeira, a mulher de fibra  e resignada,  que com ele teve cinco filhos. De dia como jornalista combativo, à noite construtor de devaneios e sonhos. Certo  é que o livro Pássaro do Amanhã, há tempos raridade bibliográfica, pelo seu conteúdo lírico, desejos límpidos que não são imposições,  mas cantares de uma transferência simbólica, que em sua transparência da verdade comovem,  falares  com atualidade até hoje,   como obra literária de conteúdo humano calcado na  vida sem distorções gritantes  merece ser reeditado. Alguns de seus poemas participam da antologia  Poesia Moderna da Região do Cacau, (1977),  organizada por Telmo Padilha.
Natural de Aracaju, Hélio Nunes nasceu no dia 17 de abril de 1931.  Fugindo da perseguição policial em 1952, passando por  Cachoeira de São Félix,  veio fixar residência em Itabuna, onde fundou uma gráfica e o “Jornal de Notícias”,  que apresentou em suas páginas uma linguagem diferente  do que se conhecia  de outros veículos de imprensa na província.   Foi também  professor da Escola de Contabilidade local. Fez um manifesto sobre a situação deplorável de crianças que dormiam na rua.
 Perseguido pelo regime  militar de 1964, teve que vender a gráfica por preço insignificante. Prestou concurso para escrivão e foi morar sozinho  em Itororó,  naquela comarca  distante de sua residência familiar fez-se eficiente  funcionário da justiça.   Continuou sendo perseguido pelo regime militar,  vítima de processos intermináveis, longe da esposa e filhos,  oprimido por terrível solidão.  Caminhante  pelas valas de grande depressão, faleceu vítima de um enfarto.   Foi escolhido como o patrono da cadeira 30 da Academia de Letras de Itabuna.
Podemos dizer que a sua poesia lírica está entrelaçada com a sua própria vida,   seus versos  refletem o pensamento de  quem  sonhou por um país humano, sem favelados,  crianças anêmicas e bolsões de pobreza, Seu grito não tem o recheio da pieguice,  mas nos chega  irrompido da dor, da solidão solidária, com o seu caldo de sofrimento e beleza. 
Abaixo vão transcritos  poemas de Hélio Nunes para despertar, ainda que seja um pouco, a memória esquecida de um bom poeta sul baiano. 

Ode à Lua Artificial

Olha a soviética no espaço
Sem quarto minguante, sem plenilúnio.
Criemos a poética desse novo astro.
Não basta dizermos que o satélite
Ronda a muitos quilômetros de altura.
Precisamos dizer,  por exemplo: amada.
Numa tarde de domingo iremos de nave
Colher  rosas da primavera marciana.

Olha o homem avançando para o céu.
Houve uma poesia de viagens marítimas.
É tempo da poesia das viagens siderais.

Eu sei. Um colar alvo de luas artificiais
Envolverá a terra; e pela noite sonhando
Eu oferecerei a Valquíria, noiva minha.

Rosas Rubras

Na madrugada fria de ontem
Um operário tossiu
Lançou rosas vermelhas
Perdidas no chão.

E quando o pedreiro caiu
Do alto do andaime,
Deixou rosas vermelhas
Perdidas do chão.

E o grevista tinha o punho cerrado
Recebeu no peito a fria bala,
Rosas vermelhas desabrocharam
Em seu coração.

Ah! Eu sei, é certo,
A Primavera irromper
Florida de rosas vermelhas.
Perdidas. Não.

Poema ao Meu Filho

Meu filho, chegarás na primavera:
Mil desculpas,  não poderei oferecer-te
Aquele mundo  humano que sonhei.

Meu filho, chegarás na primavera:
Quando adulto, não sê igual aos demais.
Tenhas o coração inquieto e a ternura de Valquíria.

Meu filho, chegarás na Primavera:
Ama e ama. Se te forçarem a odiar,  odeia.
O amor e o ódio têm suas grandezas.

Meu filho, chegarás na primavera:
Rosas e foguetes teleguiados também.
Vê nos povos, brancos e negros, teus irmãos.

Meu filho, chegarás na primavera:
Aos 18 anos, lê estes versos, não são conselhos,
São desejos, devaneios de um pai sonhador...