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terça-feira, 19 de janeiro de 2021

 Sonetos Inspirados em Fernando Pessoa 

                             

                                 Cyro de Mattos

 

I

Daqui este mar inunda-me de ilhas

Dos que quiseram o sonho, cansaço

A subir das espumas e sabê-lo.

Daqui este mar define-me anseios

 

Da caravela de onde venho e vou.

Daqui este mar um lugar remoto,

De tanto estar nele o fado a querer

Que eu navegasse atento, sem tremor,   

 

E lambesse o sal de meus sentimentos

Esperançosos de pisar na terra 

Que me acenava com as suas riquezas.  

 

Daqui este mar fado vazando veia,

De repente a Pátria na onda do mito

O azul mais vasto a terra inteira visse.

 

II

Um doido que estranhou sua própria alma,

Fingidor que, na hora abissal ou pasma,

Como verdade chegou a fingir

Ser dor o que dentro sente; a urdir

 

Que tudo vale a pena se a alma não é

Pequena, grande ergue-se no poema,

Que o serve de metafísica extrema.

Traduz na frase grave como é

 

Ser genial, fruto de heterônimos

Em diversos enredos de nós mesmos,

Nas vozes todas em que sonhos pomos.

 

Triste passageiro, que insone chora,

Esse Apolo no som de sua lira,         

Apegado à noite final que o espera. 

 

III

Lá na minha aldeia

Tem um rio só 

De sonho, melhor 

Que o Tejo, maior

 

Que o Nilo.  Meu rio,

Que comigo traça   

Castelos de amor,   

O de minha aldeia.

 

Brilha volta e meia

Nos cachos do sol, 

No leito do eterno

 

Onde sempre leva  

Nas águas correntes    

Meus versos com flor.           

     

IV

Tocador de lira.  Cordas sentem

Sustos e surpresas na passagem

Do infante, no íntimo do homem, na vida 

Fadada nos desvãos da alma sentida.

 

É belo o som que vem dessa música,

Fala do tecido duma túnica

Que se mede nas imagens das dores,

Paredes de tristezas e clamores

 

Misturados do que é, foi e será.   

Círculo de tormentos no mundo    

Enquanto vê e deste quer falar.      

 

As cartas de amor pulsam em degredo,       

Mostram falhas da vida assim disposta,        

Dos que vivem sozinhos sem resposta.            

 

V

 Amargura, desgraça, solidão.

Os deuses também moram no meu ermo, 

Sabem   do meu fado nesse desterro,

De onde procedo na velha   ilusão

 

De que tudo emerge dos sentimentos,

Da esperança de fortes movimentos.

Parecem deter-se nessa poeira

Do tempo, rumo à névoa derradeira.

 

Nunca me querem como um cadáver

Ambulante que procria, incumbem-me  

Ser tudo no verbo, como refém, 

 

Dessa hora difícil pra achar a chave

Da vida que por aí vai na asa dessas   

Emoções conhecidas como intensas.     

           

VI

Sou um ser interior, demiurgo

E profeta, de lira no meu burgo

O enigma em pessoa, um e vário,

Amarrado nesses nós do mistério.

 

Criei as odes de Ricardo Reis,

O Álvaro de Campos, também Caieiro,

No tempo sonhos do mundo gravei,    

Falei de solidões de amargo travo.

 

Fiz, como simulador de emoções,

Que gente enxergasse da identidade

Novas cenas, da existência verdade.

 

Culminei no legado, que, por razões

Do fado, pôs nas zonas da cegueira

Esses ritos de minha canção rara.     

 

VII

Digo, nunca fui campeão de nada.  

Sou um fraco, sempre tomei porrada.  

Ninguém me salva, está na colisão

Do viver com os outros meu coração.

 

Vejo muitos amigos senhores de tudo,

Ao largo vão como gente sem falha

Enquanto eu, o mais imperfeito, na malha

Da ilusão persigo o mundo que espalha

 

 Minhas almas nessa hora do café. 

No quarto tenho o meu pai, o poema.

Meu jeito de ser só, mas nunca a fama  

 

Quero. Cartas de amor, leais, até

Que me esforço para escrevê-las puras, 

Isentas de dor nas pancadas duras. 

 

*Cyro de Mattos é ficcionista, poeta e ensaísta. Premiado no Brasil e exterior. Autor de mais de 50 livros. É também publicado no exterior. Seus livros infantojuvenis são adotados nas escolas do Brasil. Os destinados ao leitor crítico são estudados em universidade. Membro da Academia de Letras da Bahia, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Doutor Honoris

sábado, 9 de janeiro de 2021

 

           Uma Rosa para Aqueles Doidos Mansos

                  

                            Cyro de Mattos

 

         A cidade tinha seus doidos mansos, suas manias faziam com que gente adulta sorrisse e os meninos mangassem quando deparavam a cena engraçada. De tão mansos mal não faziam a uma mosca. Ingênuos, indefesos, triste gente perseguida pelo fado. Incansáveis atores na vida diária, funcionavam como o riso da rua. Havia Mula-Manca, só andava bêbado, mal se aguentava nas pernas, tropeçava nos passos. Maria Camisão suspendia de repente a camisola e mostrava a parte debaixo, entre as pernas, coberta com o tufo de cabelo. Ela dizia nomes feios, oferecia a quem quisesse o sexo cabeludo aparentando uma coisa horrenda. Zeles Carnavalesco pela rua saracoteava, tremia como um boneco elétrico em tempo de carnaval. Não parava de pular, mexer e rodar na frente do bloco carnavalesco.

      O tal de Jipe se dizia portador dentro dele de um carro de corrida, que não tinha preço. Saía disparado pelo calçamento, buzinando. Na avenida do comércio, passava veloz segurando numa mão uma placa com o número do carro e na outra um farol sem lâmpada.  Chiranha era o que adivinhava qual seria o número sorteado no jogo da loteria. Ainda tinha o doido Paturi, um meio azoado, ele virava uma fera quando era arreliado com aquele apelido que detestava.

          E o Ciro Mergulhador?

          Quando o gaiato dizia:

       - Ciro Mergulhador!

       A resposta era uma só:

       - Atrás de moça bonita!

        Todos eles exerciam seu papel particular na vida da cidade. O tal Jipe fazia o preparo físico para fortalecer o fôlego pela madrugada, indo e vindo disparado muitas vezes na travessia que fazia no piso da Ponte Velha. Até que chegava como um vento veloz ao centro da cidade, buzinando, gritando para que a pessoa saísse da frente, se não quisesse ser atropelada, estava com pressa, ia calibrar os pneus de seu carro para uma viagem que faria naquele dia até a cidade vizinha de Ilhéus. Não queria chegar atrasado no local de saída, as pessoas que iriam ser conduzidas na viagem poderiam desistir com o atraso de seu jipe e irem embora.

           Lembro de todos eles, como se estivessem agora ressurgidos do tempo longínquo, que se esfumou na curva dos anos. Exsurgem com suas graças e ingenuidades de gestos para fazer a cidade mais humana, com sons e cores de uma gente que divertia a vida sem querer nada de volta.  Doidos mansos de minha terra, anunciados pelo destino em cada número do teatro da vida, como se fossem figuras grotescas, mas que eram queridas por gente grande e pequena, pelo espetáculo que era dado de graça.  

           Mula-Manca, Maria Camisão, Ciro Mergulhador, o tal Jipe falado, Zeles Carnavalesco, Chiranha, mais Paturi, porque me fizeram um menino alegre, dedico-lhes agora essa crônica como se fosse uma rosa que emerge com o seu perfume suave do lugar onde não morre a ternura.

 

           Uma Rosa para Aqueles Doidos Mansos

                  

                            Cyro de Mattos

 

         A cidade tinha seus doidos mansos, suas manias faziam com que gente adulta sorrisse e os meninos mangassem quando deparavam a cena engraçada. De tão mansos mal não faziam a uma mosca. Ingênuos, indefesos, triste gente perseguida pelo fado. Incansáveis atores na vida diária, funcionavam como o riso da rua. Havia Mula-Manca, só andava bêbado, mal se aguentava nas pernas, tropeçava nos passos. Maria Camisão suspendia de repente a camisola e mostrava a parte debaixo, entre as pernas, coberta com o tufo de cabelo. Ela dizia nomes feios, oferecia a quem quisesse o sexo cabeludo aparentando uma coisa horrenda. Zeles Carnavalesco pela rua saracoteava, tremia como um boneco elétrico em tempo de carnaval. Não parava de pular, mexer e rodar na frente do bloco carnavalesco.

      O tal de Jipe se dizia portador dentro dele de um carro de corrida, que não tinha preço. Saía disparado pelo calçamento, buzinando. Na avenida do comércio, passava veloz segurando numa mão uma placa com o número do carro e na outra um farol sem lâmpada.  Chiranha era o que adivinhava qual seria o número sorteado no jogo da loteria. Ainda tinha o doido Paturi, um meio azoado, ele virava uma fera quando era arreliado com aquele apelido que detestava.

          E o Ciro Mergulhador?

          Quando o gaiato dizia:

       - Ciro Mergulhador!

       A resposta era uma só:

       - Atrás de moça bonita!

        Todos eles exerciam seu papel particular na vida da cidade. O tal Jipe fazia o preparo físico para fortalecer o fôlego pela madrugada, indo e vindo disparado muitas vezes na travessia que fazia no piso da Ponte Velha. Até que chegava como um vento veloz ao centro da cidade, buzinando, gritando para que a pessoa saísse da frente, se não quisesse ser atropelada, estava com pressa, ia calibrar os pneus de seu carro para uma viagem que faria naquele dia até a cidade vizinha de Ilhéus. Não queria chegar atrasado no local de saída, as pessoas que iriam ser conduzidas na viagem poderiam desistir com o atraso de seu jipe e irem embora.

           Lembro de todos eles, como se estivessem agora ressurgidos do tempo longínquo, que se esfumou na curva dos anos. Exsurgem com suas graças e ingenuidades de gestos para fazer a cidade mais humana, com sons e cores de uma gente que divertia a vida sem querer nada de volta.  Doidos mansos de minha terra, anunciados pelo destino em cada número do teatro da vida, como se fossem figuras grotescas, mas que eram queridas por gente grande e pequena, pelo espetáculo que era dado de graça.  

           Mula-Manca, Maria Camisão, Ciro Mergulhador, o tal Jipe falado, Zeles Carnavalesco, Chiranha, mais Paturi, porque me fizeram um menino alegre, dedico-lhes agora essa crônica como se fosse uma rosa que emerge com o seu perfume suave do lugar onde não morre a ternura.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

 

Editora da UESC Lança Três Livros

Novos do Autor Cyro de Mattos

 

A Editus, editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, acaba de publicar três livros novos do ficcionista e poeta Cyro de Mattos. Os livros formam a Coleção Infância Livre e são estes: Nada Era Melhor, romance da infância, O Discurso do Rio, poesia, e Pequenos Corações, contos. O tema é a infância, retratada nos sentimentos que o autor teve na sua cidade natal, naqueles idos longe da diversão dos jogos eletrônicos de hoje.

A infância aqui circula como expressão do sonho e da liberdade, nostalgia e inconformismo. Uma fusão de saudade e dor encontramos nos trinta sonetos de O Discurso do Rio. Uma representação da infância com as marcas da aventura generosa vemos nos episódios de Nada Era Melhor. Em Pequenos Corações, contos de meninos, vivemos dentro de nós a vida que em cada episódio ela suscita com os ritos de passagem, ora alegres, ora tristes.