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domingo, 19 de dezembro de 2021

 

           Será que existe bicho bobo?

       Cyro de Mattos

 

Será que existe algum bicho bobo? No mato fechado com ferocidade ou na cidade quando se trata de um desses parceiros de estimação?  Em qualquer lugar existe algum, esperto ou bobo? Na selva quando perscruta tudo em volta ou na casa quando passa nos passos de mansidão? Certa vez, uma barata teve uma ideia luminosa na manhã de sol brilhante. A ideia veio ao perceber a careca do velhote que pescava no lago.  Melhor aeroporto não acharia para fazer o seu pouso.

O papagaio imita qualquer pessoa, só não lhe convide para fazer papel de mágico no meio das serpentes, lá no circo. Isso não, ele aconselha a quem tiver bom ouvido, quem não quiser ser comido por cobra é bom andar de olho aberto. O tamanduá com o seu focinho tubo e língua ágil encontra no batalhão de cupim o almoço com que tanto sonhava.

Já o gambá não tem quem o imite no fedor que carrega como uma ferramenta salvadora. Você pode não tolerar, mas nunca peça a ele para ser um bicho cheiroso, pelo menos tome um banho quando seu fedor estiver insuportável. No banho passe sabonete no corpo, depois de enxugado se perfume com um desses perfumes que causam inveja nas flores. Só assim todo perfumado poderá acabar de uma vez com esse repulsivo mal cheiro, arre. Não adianta insistir, ele vai dizer que o seu fedor faz correr o seu pior inimigo numa hora perigosa. Quando encontra um cachorro grande querendo abocanhá-lo, levanta a perna e pulveriza o atrevido num instante com o seu spray fedorento.    

O que faz o gafanhoto quando forma um batalhão? Chega numa nuvem escura, pousa no verde como um exército alvoroçado, acaba depressa qualquer lavoura, fazendo um estrago de guerra. Levanta voo e vai embora mais depressa do que quando chega. E o que acontece com o assustado sagui? Quando avista a onça é aquele deus-nos-acuda.  A anta nem é bom falar, dispara na carreira, tonta pelo mato brabo, para não virar janta.  O rei leão quando abre a boca enorme e solta da garganta o rugido forte é para dizer que ele é quem manda no pedaço do seu chão, não é mesmo?  

Todo bicho tem sua mania. Graça, utilidade, alegria. Coragem, medo, amor, sabedoria. Todos eles têm seu jeito ideal de viver os dias como Deus os fez. Lá está a garrincha no fio do poste com seu clarim, avisando que a noite outra vez terminou. É só a madrugada aparecer puxando a manhã pela cauda, pintada de azul, branco e rosa, que ela vem tocar seu clarim. Cada vez mais vibrante, não para de tocar lá no alto, anunciando incessante que a vida é um sonho elétrico no ar ou, se quiserem, uma canção que não tem fim.   

 

 

 

 

            

 

 

 

 

 

 

 

 

          

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

 

Orlando Gomes: um jurista cronista

              Cyro de Mattos

 

         Os alunos gostavam de dizer de boca cheia, a expressão feliz no rosto, que aquela era a gloriosa Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. O prédio ficava na Rua Direita da Piedade, em frente, no diminuto largo, o gesto em bronze do jurista Teixeira de Freitas, a observar os alunos que entravam para a aula na manhã. Os professores eram senhores de vasto saber jurídico. Uns faziam que os alunos respeitassem aquela faculdade de tradição valorosa, outros com a sua maneira de dizer o direito que a amassem. Entre eles, havia Orlando Gomes, professor de Direito Civil. Era um autor respeitável no circuito nacional, à época publicara obras de Direito Civil, que sobressaíam de sua vocação entre os talentosos juristas baianos.       

O curso de Direito Civil durava quatro anos.  Para cada ano era estudada uma das ramificações desse direito. Não havia aluno que não quisesse estudar Direito Civil com o professor Orlando Gomes durante os quatro anos. Era uma dádiva ser aluno daquele professor elegante, dicção objetiva, poder de síntese e densidade atraentes. Fazia sem esforço que as aulas se tornassem sedutoras, durante o ano ninguém pensava em faltar a uma delas, lamentando quando isso acontecia por motivo alheio à vontade.    

A razão do moço que veio do interior logo tomou conhecimento que o Direito é uma das maiores conquistas do ser humano. Sem essa hora não existe de fato gente humanizada, o cidadão condigno, mas o regresso na escala biológica onde prevalece o instinto animal na prática invariável dos atos com base na lei do mais forte.

          Havia chegado a hora do professor de Direito Civil se aposentar, guardar suas ferramentas de ensino na gloriosa faculdade. E assim, no veraneio imposto pela passagem da vida, viria acontecer o cronista. De crônica em crônica, publicada no “Jornal da Bahia”, nos anos 1960 e 1970, o estilo não jurídico do autor foi revelando um baiano bom cronista. O autor no final da sua atividade como cronista alcançava a marca de quem havia escrito 140 textos do gênero.

         Crônicas sobre o seu amor à Bahia, a sua história, os seus velhos mestres, o Carnaval ontem e hoje, o racismo, o futebol, a oratória decadente do bolodório, os advogados, a Justiça e o Direito, entre tantas que fluem no estilo sóbrio.  Em algumas fica claro que os homens da geração do cronista tinham dificuldades de entender o mundo, que passava ligeiro, por mais aberto que seja o espírito, mais ansiosa a vontade de compreendê-lo, como pasmo se dizia. 

Essas crônicas foram reunidas agora no alentado volume Orlando Gomes, o cronista. Percebe-se em algumas que o tempo passageiro é flagrado na Bahia com seu direito de sambar, caminhar por novas ruas do mundo onde foi introduzido o homem audiovisual modelado pela telecomunicação, formatado em seu psiquismo, educação e relações sociais. O cronista com conhecimento de causa toca as faces nostálgicas da velha Salvador, exibe a cidade que não mais existia com a pura alegria de viver de sua boa gente. Ninguém mais queria conhecer o outro por prazer.

Em “Papo de Folião Aposentado”, no tom consolador, conclui que o carnaval de ontem já era, o corso de automóveis com famílias aplaudindo nas calçadas não passava de evocação de cafonices. Estava convencido de que não foi mesmo o folião aposentado que mudou ao correr da vida. O babado, em seu cometa ululante e feérico, “atrás do qual centenas de foliões pulam por pular e arrastam o que encontram pela frente”, é que era outro.

Lírico, observador, reflexivo, opinativo. Cronista que recolhe os estados emotivos da vida em sociedade, extraindo das cenas cotidianas o pretexto que resulta no texto informativo com equilíbrio e devaneio.  Cultiva a crônica com o engenho de ensaísta, que inspirado fere com humor a mudança dos costumes, expede juízo acerca de temas como o amor, a idade avançada como virtude acumulada de saber, o preconceito contra as mulheres, a euforia das domésticas, a utilidade das novelas de televisão, as drogas e a violência. Crônicas para todos os gostos como resultado de uma experiência de vida bem vivida.  

À sombra das lembranças que acendem o pensamento emotivo, às vezes revelam   a maneira apropriada para se regressar ao passado, reconstruindo-o com pedaços felizes, momentos generosos da cidade de beleza antiga na canção da vida. Com uma conversa simples, pedem atenção para o perene das coisas, pessoas, costumes, situações, logrando trazer para as páginas do livro agora a notícia efêmera que pertence ao jornal.  

O cronista tem uma visão tranquila de ver o mundo. Distingue-se na escritura que prefere recriar com emoção e razão situações ao invés de recorrer à mera transcrição dos fatos. Assim, ainda que tardio, fez descansar o jurista de saber e ensino notáveis.  Gosta de se apresentar com humor, diverge quando a cena se lhe mostra inconsequente, mas sempre querendo conversar com o mundo, de maneira lúcida, serena, numa condição que lhe é necessária, faz parte de seu caráter revestido das essências da vida. Isso certamente fará com que o leitor comente que em bom momento não ficou o veranista esquecido dentro do jurista.

 

*Orlando Gomes, o cronista, 140 crônicas de Orlando Gomes, prefácio por Otávio Luiz Rodrigues Jr., organizador Rodrigo Moraes, EDUFBA, editora da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.

 

**Cyro de Mattos é ficcionista, poeta, ensaísta, cronista, autor de literatura infantojuvenil. Editado e premiado também no exterior. Autor de 55 livros pessoais. Membro da Academia de Letras da Bahia, foi aluno do professor Orlando Gomes, que ocupou a cadeira 16 da instituição.

 

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

 

João Eurico Matta Oitentão

            Cyro de Mattos

 

 Conheci João Eurico Matta na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, nos idos de 1957. O ingresso como calouro naquela Faculdade não me dava condição para me aproximar daquele acadêmico veterano com feição de professor. Era admirado pelos alunos antigos e novos por suas maneiras elegantes, seu saber de bases humanistas. Fazia o quarto ano do curso. A distância entre o acadêmico calouro e o veterano me propiciava apenas que admirasse o mito cuja inteligência e cultura passavam firmeza nas ideias aos outros colegas de sua geração.

Fazia circular uma energia de seu espírito comprometido com a cultura, apreendida através de procedimentos investigativos e interpretativos dos livros na leitura da vida. Na Faculdade de Direito foi diretor da revista Ângulos, do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, com eficiente atuação. A revista fora fundada por Adalmir da Cunha Miranda, em 1950. Veículo de teor jurídico-cultural se tornara em pouco tempo muito comentada por sua importância nos meios intelectuais de Salvador.

            Contemplou em suas páginas textos dos professores Antônio Luís Machado Neto, Marcelo Duarte, Edivaldo Boaventura, do poeta Florisvaldo Mattos, do cineasta Glauber Rocha, dos acadêmicos de Direito Joaci Góes, Davi Sales, Nemésio Sales, Noênio Spinola, João Ubaldo Ribeiro e de outros alunos com destaque nos meios intelectuais daquela gloriosa Faculdade de Direito. Graduado em Direito, com sólida formação cultural, a legítima vocação para o ensino universitário se aprofundaria adiante nas estradas do educador, através de conhecimentos adquiridos de filosofia, sociologia, literatura e outros ramos das ciências humanas para que hoje, do alto de seus oitenta anos, as veredas da vida se tornassem amplas.  A estrada larga, nas conquistas de uma paisagem feita de saber para saber, saber para ser, saber para poder ser. Uma paisagem fecunda em sua práxis e repercussão nos meios universitários e intelectuais da Bahia. Chega-se aos cumes quando o seu viajante é reconhecido como professor emérito de Administração da Universidade Federal da Bahia.

           O currículo é invejável, intocável, na área do ensino universitário. Não cabe aqui, com o espaço pequeno da crônica, relatar os pontos elevados do percurso, levaria tempo. Cabe dizer, sim, que aqui estou como o jovem recém-ingresso na Faculdade de Direito, que logo passou a admirá-lo, naqueles idos universitários de saudosa memória, à qual o tempo se encarregou de esfumar, como faz em tudo no mistério da vida. O tempo, senhor soberano que une e dispersa, tudo dá e tudo toma. Tornei-me, com a passagem dos anos, ainda mais admirador desse intelectual oitentão, de acumuladas juventudes.

            Associo-me a esse momento de afetividade, felicitações que são dadas por todos os admiradores ao nosso estimado João Eurico. De minha parte agradeço tudo que ele vem operando de saudável pelo ensino universitário e pela cultura de nossa querida Bahia. Autêntico agente formador de gerações e liderança de qualidade.

(Em 16/07/2015, no Restaurante do Yacht Clube, Salvador.)

 

*Cyro de Mattos é poeta, ficcionista, ensaísta, cronista e autor de literatura infantojuvenil. Já publicou 55 livros pessoais. Publicado e premiado no exterior.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

 

           Outros Poemas de Natal  

 

                                          Cyro de Matto


                                    É Natal!

 

                                           Do céu dos céus

Uma estrela

Que anuncia

Só amores

Para iluminar

As pobrezas

Dessa terra.

 

Na manjedoura

Ondas embalam

O menino no berço

Feito de palha.

Cantam os anjos,

Tocam os pastores

Suas doces flautas.

 

Os reis magos

Estão sorrindo

De pura alegria.

                                              Numa manjedoura

                                              O bem afugenta o mal.

                                              Os sinos tocam:

                                              É Natal! É Natal!

 

                      O Pinheiro

 

Antes triste, no canto,

Só que de repente

Como por encanto

Aparece iluminado

Com estrelinhas do céu,

Não mais que de repente

Todo aceso de Deus.

 

Manjedoura

 

O que mais encanta

É nascer o menino

Na poeira desse chão

Onde os bichos andam

E até hoje esse menino

Com sua luz suave

Semear grãos azuis

De amor e de paz

Na manjedoura dos ares.

 

Árvore de Natal

 

Esse pequeno cofre

Para o papai Onofre,

Esse quadro com flores

Para a mamãe Dolores,

Esse cachimbo dourado

Para o vô Clodoaldo,

Essa coberta branquinha

Para a vó Vitorinha,

Essa camisa de linho

Para o tio Bernardinho,

Essa boneca que chora

Para a maninha Eudora,

Esse pião e o tambor

Para o meu primo Dodô.

Quem quiser a flautinha

Nem espere que é minha1

 

O Amanhecer

 

Para Firmino Rocha,

em memória

 

A estrela desponta,

A nuvem se descobre,

O galo clarineta

E anuncia que em Belém

O menino já chegou

Na manhã mais bela.

 

A boa notícia corre

No fiozinho do rio

Que da montanha desce.

Segue no vento leve

Que sopra a flor sozinha

Na plantinha do brejo.

Vem com a borboleta

Que pousa na roseira

E fica brincando

Com os raios de sol.

 

Uma Oração Pequena

 

Pelo

Papai Noel

Que só aparece

Na televisão.

 

Pelo

Riozinho

De minha cidade

Cada vez pior

Com os despejos.

 

Pelo

Menino

Que na seca

Fez com os ossos

Do cachorro

Um carro

De brinquedo.

 

Pela

Professora

Que mal tem salário

Mas ensina

Um mundo.

 

Menino Jesus

Seja bem-vindo!

 

Esse Menino Jesus

 

Com o seu jeito

Amigo de dizer

Que pra vencer

O egoísmo

Dessa guerra

De cada um

Pensando em si

Basta querer

Sair por aí

De mãos dadas

E como criança

Espalhar

Num instante

Só ternura

Nessa terra.

 

 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

 

                    O palhaço Cocada foi embora

                                              Cyro de Mattos

 

Recebo do Conselho de Cultura de Itabuna a notícia desagradável.  
           A nota de pesar diz que lamenta profundamente o falecimento, nesta data de 1º de dezembro de 2021, de Raimundo Maia, agente de cultura que atuou no cenário grapiúna como ator, humorista, cantor, compositor, músico, instrumentista, artesão.

Despontou, sobretudo, como o famoso “Palhaço Cocada”, fosse realizando os seus shows, apresentando programa de TV, de rádio ou como garoto propaganda de vários empreendimentos empresariais, levando alegria, risadas, promovendo o que de melhor um artista nato pode fazer pela humanidade: a felicidade, o sorriso farto, solto e verdadeiro.

          Palhaço Cocada entra para o rol dos grandes nomes que contribuíram, com o seu trabalho, para o enriquecimento da cultura itabunense.

          Que Deus misericordioso receba o seu espírito em luz, ao tempo que dê força, resignação e compreensão aos amigos e familiares para que esse momento de profunda tristeza esteja transformado, com o tempo, na saudade mais macia que pede seja sentida por um ser humano que dedicou a sua vida a tornar melhor o dia a dia do povo.

Comento a notícia dada pelo presidente do Conselho de Cultura, Egnaldo França, ativista cultural no universo do negro afrodescendente, pelas terras de Itabuna.  O Palhaço Cocada, além de ser um poeta do riso no trânsito da vida, um artista múltiplo da cultura, era um homem simples, de bom coração. Sem ele, a vida fica privada de quem fazia do mundo uma criança com palhaço e lambança. Certamente vai fazer nos céus dos céus que os anjos se esbanjem na risada.

Também rogo a Deus, nosso pai eterno, que o receba para a morada alegre da paz. Sempre soube que o mundo encanta quando é feito em momentos ricos quando nos oferta a beleza do braço ao abraço, do sentido com o riso, da flor quando se entreabre na planta. E assim, no curso da beleza inexplicável da vida, tudo de bom nos oferece de graça, não quer nada em troca, a não ser o amor, nosso sentimento mais forte.