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sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

 

Pelé, Pelé, Pelé

 Cyro de Mattos                          

 

O sonho no verde,   

um trunfo no tapete,

em solos da bola

de gênio a jogada.

                                                                

Em forma sonora

pelos pés antevê

o que é ser divino

no gol de placa.

 

Maracanã, Fonte Nova,

Mário Pessoa, os palcos

 em que me vi perplexo   

com a bola encantada.

 

Olhe o que ele apronta,

até o sol sorri, até a lua,

toda ela iluminada, vem

oferecer rosas de prata.

 

O piso apesar do buraco,

Pelé é Pelé, não importa,

a vida na bola que rola

tanto canta como baila,  

 

Os melhores sentidos

Quando há um rei mágico

Não têm incompletude,

A vida se faz de beleza rara.   

 

 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

 

Eu creio nessa manha

Cyro de Mattos

 

Por que os homens

Amam a droga

E não da abelha

Os favos de mel?

 

Por que os homens

Amam as balas

E não a paz

Sem nenhum fuzil?

 

Por que os homens

Só enxergam o chão

E não a estrela

Em seus caminhos?

 

Por que os homens

Perfuram a rosa

Com a ponta aguda

E mais dura do espinho?

 

Viver amargos, sozinhos,

Viver nos escombros,

Viver na vida desigual,

É do que os homens gostam?

 

Mas eu creio nessa manhã

Anunciada pelo menino

Nascido na manjedoura.

No brilho dessa estrela                     

Espalhando o amor no chão.

 

Eu gosto de ouvir nesta hora

Essa canção que me afaga

Falando duma união geral,

Que viver vale a pena

Quando a vida é uma dança.

 

Com os homens como irmãos

No doce fruto da ternura,

No doce fruto da alegria

Sorrindo como criança.

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

 

A Zanga e o Sorriso de Papai Noel

                               Cyro de Mattos

 

Barba branca, cabelos compridos, brilhantes, sedosos. Botas pretas, folgadas, cetim vistoso encarnado no vermelho.

Sorriso, abraço, ritual de arminho inocente, peito venturoso em carícia do velhinho bondoso.  

Saco enorme de brinquedos. Véspera de Natal, o shopping com suas ondas de gente, vindo pra cá, indo pra lá. Escadas rolantes, subindo, descendo. 

A cidade inteira em festa.

Guardador de ternas surpresas, a criançada em volta.

Foto, sorriso gordo, magia branca de velho pacífico.

Sorria, meu bom velhinho, sorria.

O que está acontecendo?

Nada de sorrir. Cansado do mesmo gesto, todos os anos.

Alegria para os outros, para ele não, nada de prometerem um presente para fazê-lo sorrir.

Aprisionado o célebre sorriso, rô, rô, rô...

Sem dar o abraço fraterno, aquecer o pequeno coração.

Rosto abraçado ao rancor.

Uma criança teve medo. Outra chorou. Teve uma que fugiu estabanada.

Até que uma chegou junto. Deu-lhe um abraço, fervoroso.  Um beijo.

Disse:

- Feliz Natal, Papai Noel!

Comovido. Olhos azuis aguados.

Como num berço quente.

Abraçou uma a uma.

Tirou fotos, sorriso sereno.

Rô, rô, rô...

O Natal com cheiro de estábulo.

Retomado nos ares cativantes.

Sorridentes. Festivos.  

 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

 

 

TEMPO DE NATAL

Cyro de Mattos

 

 

Ceia

 

Traga o Natal

Frutos verdes.

 

De paz e amor

Ponha na mesa.

 

Afaste a sede

Triste dos dias.

 

Na luz da estrela

Ilumine a noite

 

Do medo no escuro

E na manhã brilhe.

 

Presépio

 

Do céu dos céus

Uma estrela

Que anuncia

Só amores

Para iluminar

As pobrezas

Dessa terra.

 

Na manjedoura

Ondas embalam

O menino no berço

Feito de palha.

É Natal! É Natal!

Os bichos propagam.

 

Cantam os anjos,

Tocam os pastores

Suas doces flautas.

Os reis magos

Estão sorrindo

De pura alegria.

 

 

O Pinheiro

 

Antes triste, no canto,
Só que de repente
Como por encanto
Aparece iluminado
Com estrelinhas do céu,
Não mais que de repente
Todo aceso de Deus.

 

Manjedoura

O que mais encanta
É nascer o menino
Na poeira desse chão
Onde os bichos andam
E até hoje esse menino
Com sua luz suave
Semear grãos azuis
De amor e de paz
Na manjedoura dos ares.

 

Menino Deus

São suas as proezas

De estrela numa só mesa

De todas as mãos.

 

Historinha de Menino Jesus

 

O galo cantou,

A vaca mugiu,

O burro zurrou,

A ovelha baliu.

 

A rosa acordou,

O peixe sorriu,

A cabra contou

Que a cobra sumiu.

 

Foi tanto balão

Que subiu ao céu,

Foi tanta canção

 

 

Que ventou ao léu

Que até hoje luz

Do menino a cruz.  

 

 

 

Natal

 

Uma estrela afugenta

Da noite o medo

Que se tem das trevas.

O canto do galo

Que fere a aurora

Dessa vez é mais belo.

Num sorriso silencioso

A Virgem Maria sabe

Do amor de Deus no chão.

Da flauta dos pastores

Sai essa canção que comove.

Todos os anjos entoam

O esplendor deste amor,

Em torno do mundo

Abelhas soltam

Zumbidos de ouro.

domingo, 18 de dezembro de 2022

 

                            Emmo Duarte e Seu Porto de Esperança

                                       

                                        Cyro de Mattos

 

Nas antologias Itabuna, Chão de Minhas Raízes, Editora Oficina do Livro, Salvador, 1966, e Ilhéus de Poetas e Prosadores, Edição da Fundação Cultural da Bahia, Coleção Letras da Bahia, Salvador, 1998, incluí os trechos Uma Progressista Cidade e Doutor Corumbá, extraídos do romance Porto de Esperança, de Emmo Duarte. Ambas as antologias têm meu prefácio, notas e seleção de texto. Como o poeta Sosígenes Costa, Emmo Duarte nasceu na cidade de Belmonte, Sul da Bahia, vindo ao mundo em 30 de outubro de 1920. 

Passou sua infância em Ilhéus, foi homem de imprensa com trânsito por Salvador, Maceió, Recife e Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro onde também exerceu a advocacia.  Traduziu ensaios sobre Graham Greene, William Faulkner e o romance Os Donos do Orvalho, do haitiano Jacques Romain, um belo livro de ficção engajada, de fundo telúrico, sem distorções entre o estético e o realismo da vida como ela é, com suas verdades reveladas através de notas pungentes, cruas pinceladas da realidade exterior, tocada pelos quadros formados entre opressores e oprimidos, estes como personagens relegados ao sabor da sorte enquanto seres excluídos pela dura lei da vida.

Em Porto de Esperança, o belmontino Emmo Duarte mostra em passagens irreverentes a alma lírica da cidade de Ilhéus, conta as histórias inspiradas pelo seu antigo porto exportador de cacau para o mundo.  Em cenário bem construído, faz desfilar personagens que vivem o cotidiano da cidade, movimentada com seus navios chegando e partindo, as longas conversas nos bares, cafés, casas de mulheres e jornais. 

         O romance Porto de Esperança sugere a ambiência realista retratada nos livros A Comédia Humana, de Willian Saroyan, e Winesburg, Ohio, de Sherwood Anderson, a verdade de cada um expressa por tipos grotescos produzidos nas relações advindas do cotidiano. Focado na realidade exterior, o eixo romanesco do livro desdobra-se sem forçar as cenas marcadas de amargura, fixadas nas frustrações flagradas de uma pequena cidade com suas esperanças que se propagam como sonhos nunca alcançados.

Emmo Duarte deixou inédito o romance O Rei do Cacau e, em andamento, O País de Belmonte.

Adendo: quanto ao poeta Jacinta Passos, recomendo consultar o Portal de Poetas Ibero-Americanos editado por Antônio Miranda, que traz uma síntese biográfica da poeta baiana de Cruz das Almas, acompanhada de um conjunto de poesias, que dão uma imagem suficiente de um poeta com o estro apurado, estilo configurado nos moldes modernistas quando então o conteúdo de seus veros reveste-se de assunto do nosso folclore e do cancioneiro popular.  

                

sábado, 17 de dezembro de 2022

 

Acadêmica e Escritora Nélida Piñon Nos Deixou

 

A Acadêmica e escritora Nélida Piñon morreu no dia 17 de dezembro, aos 85 anos, em um hospital em Lisboa, Portugal. A causa da morte ainda não foi confirmada. O sepultamento será no mausoléu da ABL, que fará uma Sessão da Saudade no dia 02 de março, no Salão Nobre, em homenagem à autora. Nélida foi uma das maiores representantes da literatura brasileira. Era a quinta ocupante da Cadeira 30 da ABL, tendo sido eleita em 27 de julho de 1989, na sucessão de Aurélio Buarque de Holanda. Em 1996/1997, tornou-se a primeira mulher, em 100 anos, a presidir a Academia Brasileira de Letras, no ano do seu I Centenário.

Nélida Piñon estreou na literatura com o romance Guia-Mapa, de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961, pela GRD, que tem como temas o pecado, o perdão e a relação dos mortais com Deus. No romance A república dos sonhos, baseado em uma família de imigrantes galegos no Brasil, ela faz reflexões sobre a Galícia, a Espanha e o Brasil. Sua obra já foi traduzida em inúmeros países, tendo recebido vários prêmios ao longo de mais de 35 anos de atividade literária. Ganhou diversos prêmios, como o Pen Clube de Literatura por sua mais recente obra, Um Dia Chegarei a Sagres, lançada no final de 2020.

Com essa grande perda para as letras brasileiras, a Academia de Letras de Itabuna externa seus sentimentos de pesar aos familiares de Nélida, amigos e leitores, na certeza de que ela continuará conosco através de seus ricos romances enquanto viva for a Literatura Brasileira.

 

                                                  Wilson Caetano – Presidente da ALITA

 

Acadêmica e Escritora Nélida Piñon Nos Deixou

 

A Acadêmica e escritora Nélida Piñon morreu no dia 17 de dezembro, aos 85 anos, em um hospital em Lisboa, Portugal. A causa da morte ainda não foi confirmada. O sepultamento será no mausoléu da ABL, que fará uma Sessão da Saudade no dia 02 de março, no Salão Nobre, em homenagem à autora. Nélida foi uma das maiores representantes da literatura brasileira. Era a quinta ocupante da Cadeira 30 da ABL, tendo sido eleita em 27 de julho de 1989, na sucessão de Aurélio Buarque de Holanda. Em 1996/1997, tornou-se a primeira mulher, em 100 anos, a presidir a Academia Brasileira de Letras, no ano do seu I Centenário.

Nélida Piñon estreou na literatura com o romance Guia-Mapa, de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961, pela GRD, que tem como temas o pecado, o perdão e a relação dos mortais com Deus. No romance A república dos sonhos, baseado em uma família de imigrantes galegos no Brasil, ela faz reflexões sobre a Galícia, a Espanha e o Brasil. Sua obra já foi traduzida em inúmeros países, tendo recebido vários prêmios ao longo de mais de 35 anos de atividade literária. Ganhou diversos prêmios, como o Pen Clube de Literatura por sua mais recente obra, Um Dia Chegarei a Sagres, lançada no final de 2020.

Com essa grande perda para as letras brasileiras, a Academia de Letras de Itabuna externa seus sentimentos de pesar aos familiares de Nélida, amigos e leitores, na certeza de que ela continuará conosco através de seus ricos romances enquanto viva for a Literatura Brasileira.

 

                                                  Wilson Caetano – Presidente da ALITA

domingo, 11 de dezembro de 2022

 

                  Natal com Drummond e Valdelice

 

                  Cyro de Mattos

 

Há tempos vinha enviando em dezembro para pessoas de meu círculo afetivo, parentes, amigos e escritores, minha mensagem de Natal acompanhada de um poema. Penso que decorreram mais de trinta anos quando fiz o primeiro poema motivado pelo Natal com essa intenção. Lembro do primeiro que enviei. Manjedoura — O que mais encanta/ é acontecer o menino/ nas migalhas/ deste chão sonoro/ e ganhar grãos azuis/na manjedoura dos ares.

Certa vez ousei enviar para o poeta Carlos Drummond de Andrade a mensagem com um desses poemas. Era um soneto, um soneto menor, com versos de cinco sílabas, que contava a alegria de bichos e gente com o nascimento do menino pobre nas palhas, que depois viria ser o bem-amado salvador da humanidade. Assim era o sonetinho: Historinha do Menino Jesus — O galo cantou, / A vaca mugiu, / O burro zurrou, / A ovelha baliu. // A rosa acordou, / O peixe sorriu, / A cabra contou/ Que a cobra sumiu.// Foi tanto balão/ que subiu ao céu,/ Foi tanta canção// Que ventou ao léu/ Que até hoje luz/ Do menino a cruz.

Não demorou, um milagre aconteceu quando recebi do poeta Carlos Drummond de Andrade, como retribuição à minha mensagem de Natal, o poemeto seguinte: A Cyro de Mattos no Natal — Uma notícia irrompe desta árvore/ e ganha o mundo: verde anúncio eterno/ Certo invisível pássaro presente/ murmura uma esperança a teu ouvido. Depois de receber esse rico presente de um poeta grandão, de minha predileção, que poderia um poeta inventor de ingenuidades, desconhecido, morando e vivendo no interior da Bahia, querer mais naquele Natal?

O poema de quatro versos do trivial lírico de Itabira, com suas ondas cheias de ternura, dava-me a mesma sensação que tive quando era menino e acreditava em Papai Noel. Como até hoje acredito, não sorria, faz favor. Recebi naquele Natal que já vai muito longe como presente do bom velhinho uma bola de couro, que encontrei no outro dia pelo amanhecer sobre meu par de sapatos. Era o que mais queria, aquela bola de couro, para jogar futebol com meus queridos amigos nos campinhos improvisados dos terrenos baldios. Atordoado, não sabia, naquele instante, se o presente que me chegava do céu por encanto, com uma bola de couro, novinha, era sonho ou verdade. Neste caso, eu havia feito um bilhete a Papai Noel pedindo para que ele me desse no Natal a bola de couro e fui atendido naquilo que tanto desejava. No caso dos versos de Carlos Drummond de Andrade, chegou-me aquele presente de um coração lírico como era o do nosso poeta maior, sem que eu nada lhe ter pedido. Sustos esplêndidos do Natal aqueles, quer num caso, quer no outro.

         Transcorridos dez anos, dei conta que já havia enviado a cada dezembro para as pessoas um conjunto de poemas inspirados no Natal. Resolvi reunir e publicar os poemas no pequeno livro Natal Permanente, que teve ilustrações de Calasans Neto e o selo das Edições Macunaíma, de Salvador. Naquele dezembro de 1986, enviei para as pessoas esse pequeno livro, ao invés de um novo poema com tema do Natal, como eu vinha fazendo. Uma das surpresas agradáveis que tive foi quando recebi da poeta conterrânea Valdelice Soares Pinheiro uma pequena carta agradecendo o envio do meu pequeno livro. Ela me dizia que Natal Permanente lembrava-lhe “fonte, peixe e comunhão”, fazendo-a sentir “nesse caminho por onde os homens deveriam passar colhendo mel, preparando o pão”. Observava: “Traz-me a alegria de descobrir que sou cavalo, viagem, travessia desse menino, esse distante, mas ainda agora menino, que um dia, trinta e três anos depois, pregado em uma cruz, sonhou ser a luz dos homens, despregando, de seus braços doloridos, o amor e o perdão para a compreensão de sua presença de Pai e Filho, que, em um só, queria criar o Reino da Paz no Espírito Santo”. A certa altura, tomando emprestados alguns dos meus versos, ela perguntava: “Terão os homens entendido essas proezas numa só mesa de todas as mãos?”

          Até hoje vou aos meus guardados e busco a carta da conterrânea Valdelice Soares Pinheiro. Fico comovido quando a leio na época do Natal. Ela termina por me dizer que meu pequeno livro, além de estendê-la na consciência de não solidão, “me trouxe de volta a criança que um dia, queira ou não queira, a gente pensa que perde”.

Natal Permanente é o mesmo livrinho que passou a ser chamado Oratório de Natal, publicado pela Fundação Cultural da Bahia, em primeira edição, e, acrescido de mais dez poemas, em segunda, pela editora Duna Dueto, do Rio de Janeiro.  Com as ilustrações singelas do desenhista Ângelo Roberto, baiano nascido em Ibicaraí, que residiu muitos anos em Salvador, onde ficou conhecido como o poeta do traço. 

O livrinho Oratório de Natal, que vem me dando alegria, continua circulando em época ou não do Natal. Para que a vida seja sempre verde como na campina. Para que a vida seja sempre mansa como na colina. Para que a vida como a do menino dormindo no presépio seja sempre amiga e no meu peito cresça.

domingo, 27 de novembro de 2022

 

Os labirintos de Jorge Luís Borges

              Cyro de Mattos

 

 

As metáforas de teor metafísico em Borges soam soberbas e nos deixam perplexos. Não é por acaso que no poema “Cambridge” afirma: “Somos nossa memória. Somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos rotos.” Foi como também viu a nossa condição na vida o magistral poeta Fernando Pessoa, ao dizer que sonhar era saber essa ilusão nos reinos espectrais do tempo.

                O é, o foi e o será perduram em Borges por entre inúmeros labirintos. Em Buenos Aires quando segue caminhando, sentindo nas esquinas o hoje tão lento e o ontem tão breve, nessas esquinas “sem por que nem quando”.  Perscruta assim, entre a alba e a noite, esta história universal, sem esperar que “o rigor desse caminho, que teimosamente se bifurca em outro, tenha fim.” Em “El Aleph”, a história que acompanhamos abre o caminho de um novo tipo de literatura, do fantástico, do enredo que vai sendo devorado pelos labirintos da imaginação. Assim posto em cena labiríntica o plano fictício e ao mesmo tempo real de “El Aleph”, o microcosmos dos alquimistas e dos cabalistas consiste em um dos pontos do espaço que contém todos os pontos. Aqui, o personagem encontra esse lugar onde se encontram, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos.  

No conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, Borges imagina a história do homem que não queria compor outro Quixote, não pretendia conceber uma transcrição do original nem se propunha a copiá-lo. Sua soberba ambição era escrever O Quixote, páginas que coincidissem, palavra por palavra, linha por linha, com as de Miguel de Cervantes. Em “O Jardim dos caminhos que se dividem”, ele traça uma extensa adivinha ou parábola com o tempo, sendo talvez este para a crítica dos contos mais ricos escritos por Borges. Trata-se de história que espanta e encanta, pela dualidade em que se encontram a morte e o tempo.  Somente no último parágrafo o leitor pode achar a chave dessa ficção na forma tortuosa em que é executada.

Em “O imortal”, o tema tratado agora é o da imortalidade dos homens. Borges foca a situação do homem que sempre procura fugir da morte, após o nascimento. Basta estar vivo para morrer a cada instante, pensa o homem. Nessa história impressionante, exercida com linguagem enigmática, percorre-se os labirintos do tempo e do espaço na tentativa de encontrar a cidade dos imortais, que de tão distante só existe na imaginação humana. Essa cidade, com sua arquitetura pródiga em simetrias, ainda que localizada no centro de um deserto desconhecido, enquanto existir ninguém no mundo poderá ser corajoso e feliz.  É tão horrível que a sua presença confunde o passado e o futuro.

Borges a concebe, como

                                       um amontoado de palavras complexas, um                           

                                      corpo de tigre ou de touro, onde pulularam monstruosamente, conjugando-se e odiando-se, dentes, órgãos e cabeças, podem (talvez) ser imagens aproximadas.

Há quem afirme que o escritor só deve escrever sobre o que conhece, viu e viveu.  Essa maneira de postular o literário não se aplica a Jorge Luís Borges, o mais literário dos escritores, o que escreveu e imaginou o mundo como resultado do que leu e, logo depois que ficou cego em definitivo, enxergou como poucos seus caminhos metafísicos, sob o rigor do pensamento e da simetria. Tornou-se por isso mesmo um bruxo impressionante, que inventava com maestria enredos labirínticos e mitologias metafísicas, sem ter conhecido fisicamente a paisagem humana e a realidade objeto da sua escrita. E, assim, lendo e vendo com a alma, imaginando seus mundos criativos, num estilo sóbrio, passou a ser visto ele próprio como sinônimo de literatura, aquele que nos lega na poesia, no conto e no ensaio um universo fantástico, insólito e transcendente.

A literatura esteve sempre na sua alma, soube isso desde o início, como um destino a cumprir. Aos seis anos comunicou à família que queria ser escritor. O menino fora muito cedo iniciado na leitura pela mãe, criatura adorável, que o incentivava a viver intelectualmente no mundo das letras. Na biblioteca do pai havia descoberto os livros, esse mundo fantástico das histórias fabulosas onde iria passar a vida toda. Em idade precoce começou a redigir os primeiros textos, um conto ao modo de Cervantes e um ensaio sobre mitologia clássica.

Foi no ano em que começou a Primeira Guerra Mundial que a família de Borges viajou para a Europa. Em Genebra faz os estudos superiores, na Espanha participa de saraus e publica poemas em revistas espanholas. Quando regressa a Buenos Aires, encontra uma cidade diferente, que o encanta e o inspira para escrever os seus textos labirínticos, de temas metafísicos. Condenado à cegueira, que vinha gradualmente afetando-o, desde a infância, não viu nela nada de especialmente patético ou dramático. Submeteu-se a oito operações e, nesse ocaso gradativo, ficou cego desde os fins de 1950 para a leitura e a escrita.  Nessa oportunidade havia escrito o “Poema das Dádivas” e já era diretor da Biblioteca Nacional. Comentou então da esplêndida ironia que Deus reservou para ele, concedendo-lhe oitocentos mil livros e a escuridão.

Condenado à cegueira por herança paterna, o poeta e prosador que especulou sobre “o livro dos livros”, observando que não sabe se existe ou se é sonhado por Deus, lança-nos, em labirintos poéticos arquitetados de luzes e sombras, histórias fabulosas com galerias de espelhos onde ele explora o tema da dupla identidade. Jorge Luís Borges é o “fazedor” de outra dimensão da literatura, enredada no imprevisível, distante do previsível operado pelos realistas com os elementos da exterioridade circunstante, em que os dados da objetividade são transpostos para o texto, dando ao ficcionista uma feição de copiador literário.

É um fazedor de literatura no melhor sentido, com textos extremamente criativos na direção de contos maravilhosos, ditados pelo pensamento e com uma imaginação prodigiosa. Falou-nos de um homem, “que se propõe fazer uma pintura do universo. Depois de muitos anos, cobriu uma parede nua com imagens de navios, torres, cavalos, armas e homens, só para descobrir, no momento de sua morte, que desenhara um retrato de seu próprio rosto.”

Labiríntica, como nesse personagem, é a natureza da literatura de Jorge Luís Borges, alimentada e respirada em todos os livros que havia lido. Ele sempre viu a literatura como forma de conhecimento do mundo, fundamental como o amanhecer. Se não resolve os problemas cruciais da vida, como certa vez declarou, só com ela e sua linguagem que salva é que podemos atravessar o nosso lado noturno e alcançar o dia. 

       Por tantas qualidades excepcionais de um fino e instigante ficcionista, não se pode deixar de considerar o que, no final do longo artigo “Uma História do Conto”, dosado com humor, importantes sinalizações sobre o gênero e seus melhores autores, o escritor Guilhermo Cabrera Infante acentua a respeito dos contos excepcionais de Jorge Luís Borges:

 

           Foi Borges quem disse de Quevedo que não era um escritor, mas uma literatura. Com maior justiça se pode dizer o mesmo de Borges. Ele sozinho, em sua remota Buenos Aires, que depois dele sempre está perto, aqui ao lado, virando a página, Borges sozinho fez do conto toda uma literatura e até mais, uma teoria literária. Não preciso citar nenhum título, pois vocês conhecem todos. Mas são contos não para ler, e sim para reler, recordar, memorizar e sempre nos assombrar. Não só com sua cultura e seu humor, mas também com sua arte narrativa

Leituras Sugeridas 

 

FERREIRA, Serafim. Jorge Luís Borges, coletânea, Editorial Presença, Lisboa, 1965.

JOSEF, Bela. História da literatura hispano-americana, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1971.

CERQUEIRA, Dorine. América América: amostragem da ficção hispano atual, Editus, editora da UESC, Ilhéus, 2011.

BORGES, Jorge Luís. Entrevista em A história é amarela, coletânea, Editora Abril, São Paulo, 2017.

INFANTE, Guilhermo Cabrera. Uma história do conto, “Folha de São Paulo”, 30 de dezembro de 2001.