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domingo, 30 de janeiro de 2022

 

Aníbal Machado estreou em 1944 com Vila Feliz, contos que seriam acrescidos de mais sete histórias inéditas, formando o volume de Histórias Reunidas (1959). Compendiado como autor de obras-primas com os contos “A Morte da Porta-Estandarte”, “O Iniciado do Vento” e “Viagem aos Seios de Duílio”, publicou ainda a coletânea Cadernos de João (1957), em que reúne breves meditações lírico-filosóficas e poemas em prosa. João Ternura (1965, rapsódia romanesca, teve publicação póstuma, após lendária gestação durante o período de quarenta anos.

Na longa gestação do romance, cujo personagem tem uma alma impregnada de visões do mundo numa paisagem que não lhe é vulnerável, considera-se que o clima em que se cumpre viver pelo personagem conota no real coerência e naturalidade. Daí ser compreendido por particularidades pessoais onde pulsa a ternura. Na peregrinação para escrever o livro, contemporâneos que viveram no ambiente íntimo do criador de João Ternura   informaram que Aníbal Machado passou por momentos difíceis de sua jornada criativa, na iminência da conclusão ou engavetamento dos escritos.

Aníbal Machado ressalta na introdução de João Ternura:

 

É possível que alguns leitores, de tanto ouvirem falar neste livro,

o recebam de pedras na mão. Especialmente os da geração mais

antiga. Tal seria a minha reação, se, em vez do autor, fosse aqui

            o leitor (pág. 3).

 

Valeu a pena a espera, tantas são as lições carregadas de humanismo que o herói terno-lírico transmite nas cenas fomentadas na rotina obediente ao seu próprio ritmo de contradições. Porque é simples, nascido cercado de desvelos, inquietações e expectativas, esse personagem solto na realidade aparentemente generosa constitui um grito lúcido contra a miséria da existência humana. Na pauta de egoísmo corriqueiro, em que   funciona a vida competitiva, o que ele vê não é um cenário desalentador, mas a necessidade que tem a natureza humana de seguir em frente, dentro de uma normalidade, que gera movimento e comportamento entranhados na rotina de expectativas e repressões.     

Através de gestos ingênuos, o personagem torna-se uma reflexão profunda da vida. Sem qualquer espécie de partidarismo ou pieguice, é cativante no itinerário das ocorrências que preenchem a biografia lírica cercada de intenções pequenas. Não se dá à reflexão em face de gestos desconcertantes, porque as contradições e dúvidas vêm desde os primeiros passos na infância quando o mundo adulto da incompreensão e insolência começa a existir até os momentos desagregadores das qualidades humanas.  Na cidade grande que esmaga, a vida mostra-se tal qual ela é, pulsa tendo como o principal os dias constituídos de indiferenças, incoerências que não fazem sentido diante do racional.  

Esse passageiro tranquilo, símbolo do vulgar ligado na ternura, “esse pobre João ternura que nas nuvens melhor ficaria, uma vez que sua simplicidade e inocência nem sempre encontravam resposta num mundo em que não conseguiu (e nem suportava) atingir a chamada idade da razão e das conveniências sociais que tão tristemente já alcançamos” (pág. 5). Ele não mede a vida com seus despropósitos porque a simplicidade é a tônica da sua mentira verdadeira, da qual emerge a vulgaridade das ideias, que nos sabem seres estranhos formados com a natureza das próprias conveniências. Até mesmo nas reações ingênuas diante da morte quando tinha a ilusão que poderia depois continuar de olhos abertos. Alguns anos em silêncio, sem direito à vida, a espiar com prazer a sucessão das novas gerações no Brasil progressista, com o seu crescimento material, a grandeza humana de seu povo, enfim, com os homens vivendo com simplicidade, cordiais nas atitudes para longe da exploração e do medo.

Frágil e forte, o personagem do romancista mineiro acredita na inocência como uma coisa útil e, por ser terno, não se corrige com as decepções que a vida oferece.

Aníbal Machado explica:

 

E você pensa que ele vai se corrigir? Duvido. É possível que um dia

ainda abra os olhos. Isso a poder de muita cabeçada. Precisa primeiro

 sofrer na pele, levar trancos. Mas esse diabinho parece que não sofre,

 nem toma conhecimento da realidade. Não analisa os fatos. Nem

raciocina. Falta-lhe espírito objetivo... (pág.125). 

 

Em sua maneira de contar com o mundo sem merecer inconformismos, vê-se que João Ternura acha tudo natural, a cegueira de lidar com a vida sem ver nela o sofrimento o absorve de tal maneira que suas relações com o cotidiano chegam a dar pena. Ele está sempre consciente de que entrou na vida inconsciente como qualquer um de nós. Não entrou nesta briga pensando em Dom Quixote, mas apenas trazendo como arma e bagagem uma maneira ingênua para sentir os seres humanos como agentes naturais das coisas que precisam ser alcançadas. Nessa visão desprevenida de que viver é rolar na vida com simplicidade, sem se importar com as agruras, manter com ele qualquer tipo de conversa que analise a realidade tal qual ela é não será proveitoso. Ele não pode entender, por exemplo, que há em cada esquina pelo menos meia dúzia de desgraçados precisando de socorro. Não consegue conceber o mundo como um nunca acabar de murros, com os fortes, em geral estúpidos, pisando nos fracos.

Na escrita reveladora de candura, contradições e desconcertos, a fabulação sincopada em cada episódio sugere o ambiente necessário para revelar o conflito contado em determinadas passagens. Com isso quer traduzir a criatura humana em seus becos sem saída, prisões e medos.  Mostrá-la com a certeza de que quando se tem a natureza moldada com humildade a vida só pode ser vista no plano da realidade oposta à dos valores materiais, não permitindo que se pise nela com a vontade de deter as coisas postas no mundo para satisfazer desejos e ambições.    

João Ternura nos faz refletir sobre a humanidade caminhando nas pegadas da distância de uns para com os outros, projetando-se tranquila, aparentemente generosa, na expressão feliz o rosto dá a entender da existência de uma realidade proveitosa. Como portador da brandura, esse personagem intrigante informa sobre o nosso gosto de apertar o nó na garganta, sem variar nosso apetite voraz  persistente de pender para o egoísmo, que vem de longe.

O personagem lírico-vulgar resulta de inegável força criativa de autor experimentado, consistente em sua experiência de vida com bases humanísticas. Sabe valorizar sua mensagem pela atualidade vista nos gestos primitivos dos que se dizem civilizados, vivendo em ritmo tumultuado de hoje, cada vez mais intenso e veloz da cidade grande, “insone, cruel... maravilhosa ao longe, terrível ao perto. O texto que se move para a ingenuidade do personagem distante da realidade exterior, atinge momentos oníricos de rara beleza, de sonho sustentado na gravidade do diálogo difícil de ser formado nas zonas da morte onde tudo se dissolve.  

A economia vocabular, usada como uma constante para suportar o ritmo sugestivo da narrativa, a linguagem descontínua, composta de aforismos, artifícios, inversão de frases, acrobacias conscientes nas palavras, todas essas invenções formais com soluções só encontráveis na melhor ficção brasileira situam João Ternura num fluxo de beleza no qual se integram as fronteiras da poesia e do prosaico.

Como adianta um escritor da época, não é exagero afirmar que em sua construção afetiva encontra-se aqui a síntese do comportamento literário de Aníbal Machado. A mesma síntese cristalizada na escrita de Histórias Reunidas ou Cadernos de João. Nesse livro póstumo do escritor mineiro, o excelente prosador sente-se como que à vontade. O pleno domínio da escrita poética novamente emerge do espírito sensível com sutilezas líricas, no plano de imagens o sonho circula saliente sob o ritmo que prende.  Ora acelerado, ora lento, irrompe nas passagens da prosa depurada com fragmentos, vozes e figuras de um mundo incompreensível que nos impinge viver como estranhos e assustados. Trata-se de texto com técnica renovadora do discurso literário, mostrado como o real transfigurado no literário passa a se identificar com a poesia imbricada na vida.

Mas João Ternura não é apenas um texto com a forma apurada em sua grandeza técnica. Nas páginas de um discurso lírico bem construído, a vida pulsa com sentimentos que se mostram precisos nos momentos em que se desenham como achados felizes. É sentimento esteticamente realizado com sua mensagem forte formulada no diálogo aceso para iluminar o ser perdido na memória primitiva do tempo. O clima que se apreende no mundo singular de João Ternura muito se identifica com o espírito de seu criador. É como se o diálogo do personagem lírico-vulgar com a rotina das coisas não se esgotasse em si mesmo perante o lado incompreensível da vida. E fosse o grito lúcido do espírito tranquilo do próprio Aníbal Machado. Da razão penetrante e sentimento poético que se atraem e se unem para dizerem que o homem quando vive apoiado em padrão frágil de comportamento, imbuído de ternura, desligado da realidade exterior em seu lado cruel, não tem salvação para o pobre coitado, a vida deixa que se vá em sua clausura de alheamento até sucumbir acossado pela sua própria simplicidade.

Ler essa fábula moderna, percorrer o texto rico de significados e significantes, é rever a figura de Aníbal Machado. O homem culto, sensível, atencioso, de bons préstimos. Durante anos influenciou geração de contemporâneos por meio de artigos, conferências, diálogos e sugestões. Como testemunham dois escritores de seu tempo, foi um escritor que compareceu à lide literária dotado de simplicidade, não se preocupando com o poder e a glória, não usando ressentimentos para ferir o talento dos companheiros de militância artística.

Por ser criatura sem vaidades, cada vez mais rara entre os habitantes do país das letras, onde infelizmente circula o duvidoso como se fosse o verdadeiro, já podemos também dizer, como bem lembrou Carlos Drummond de Andrade, ao concluir a leitura do lendário livro, que ficamos sem saber se o criador de “João Ternura morreu efetivamente ou se é apenas uma de suas mágicas.”

 

REFERÊNCIAS

                        MACHADO, Aníbal. João Ternura, romance, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1965.

                      -----------------------------Histórias reunidas, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1959.

                      ------------------------Cadernos de João, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro,1957.

ANDRADE, Carlos Drummond de. “Balada em Prosa de Aníbal Machadoin João Ternura, José Olympio Editora, 1957.

 

*Cyro de Mattos é ficcionista, poeta e ensaísta. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia)

 

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

 

              Escritores Brasileiros do Século XX                                                         

                            Cyro de Mattos             

              

            Em sua contribuição enciclopédica e analítica da literatura, Nelly Novaes Coelho, intelectual rara, desincumbe-se da jornada literária com erudição, consciência crítica e uma santa paciência de pesquisadora. Ela sempre está surpreendendo. Depois de enriquecer o corpo das letras brasileiras com volumes importantes, como Literatura e Linguagem, Literatura Infantil, Dicionário Crítico de Escritoras BrasileirasDicionário Crítico de Literatura Infantil e Juvenil Brasileira, Panorama Histórico da Literatura Infantil/Juvenil, na idade em que muitos já aposentaram suas ferramentas, eis que ela pra lá dos oitenta anos comparece com ensaios fecundos para brindar seu público leitor com a obra Escritores Brasileiros do Século XX, publicado pela Editora Letra Selvagem.

           Monumental testemunho crítico, o alentado volume é resultado de cinquenta anos de pesquisas, leituras e releituras de obras apresentadas em cursos universitários, congressos, seminários, colóquios, no Brasil, Portugal e Estados Unidos da América. São oitenta e um escritores analisados neste precioso e extenso livro. Dos mais conhecidos, como Jorge Amado, Graciliano Ramos. Guimarães Rosa, Mário de Andrade e João Ubaldo Ribeiro, passando por nomes expressivos que ficaram esquecidos pela crítica e do mercado editorial, como Cornélio Pena, Gustavo Corção, Adonias Filho e Murilo Rubião.       

         E ainda outros que precisam de divulgação para que melhor sejam conhecidos:   Ricardo Guilherme Dicke, Mora Fuentes, Samuel Rawet e Nicodemos Sena. Todos esses autores, elencados nessa obra de natureza o  enciclopédica, dão voo à razão e à emoção quando abordam a problemática existencial do ser humano e a crise de uma sociedade exaurida de valores e sentidos. Dão imaginação e transcendência ao mundo.
         A ensaísta admirável revela:

        - Foi a “Sorte ou o Acaso” que puseram em meu caminho os oitenta e um escritores reunidos e analisados neste meu último livro.

        A generosidade, a humildade e a solidariedade são marcas da alma dessa enorme ensaísta.   Os autores no extenso volume analisados tiveram, sim, a sorte ou o acaso,  posto em seus caminhos para a leitura crítica dessa valorosa analista literária.

        Ela disse:

        - Um autor para ser instituído como cânone precisa de um crítico dotado  de instrumental teórico suficiente que  chame atenção para as questões estéticas, seja capaz de revelar os elementos estruturantes que entraram  na composição da  forma e conteúdo da sua obra.
         No meu caso,  de autor baiano insulado na cidade natal, no sul da Bahia, distante do eixo Rio e São Paulo,  que ainda hoje  funciona como tambor cultural desse país inculto e enorme, por mais que o mundo de uns tempos para cá tenha se tornado uma aldeia globalizada, nem sei como agradecer nossa inclusão  na relação desses escritores conceituados, selecionados e reunidos  no testemunho crítico da professora doutora Nelly Novaes Coelho.
         Vale a pena repetir o que certa vez ela disse sobre a literatura:

         - Sem leitura e escrita a vida não tem emoção. 
         Essa Nelly Coelho Novais, que viveu para amar a literatura e que, com uma vocação valorosa, na passagem dos anos, tanto demonstrou quanto a amava.

 

 

 

          

 

 

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

 

           Marido e Mulher

                     Cyro de Mattos

 

Ele era alto, forte, ela tinha a estatura baixa, cintura grossa.  Ela ainda não havia se acostumado com a vida de casada.  Andava desconfiada pelos poucos cômodos da casa. Quando o gato derrubava uma panela, ela tomava um susto medonho. Se soltava um miado linguarudo, ela achava estranho, irritava-se. O marido falava alto quando se dirigia a ela. Não gostava. Chamava a atenção dele, tivesse modos, respeitasse sua mulher, que exigia tratamento digno, se quisesse ter esposa sempre, falasse com ela mais baixo.

Era a primeira vez que havia saído da casa dos pais. Lá é que era bom, tudo era paz e conforto. Não havia briga entre o pai e a mãe. Não existia preocupação, a mãe cuidava de tudo. Arrumava a casa, fazia a comida e ainda cantarolava.

Agora ele deu na refeição matinal para beber o café fazendo um ruído horrível pela boca, sem dois dentes na frente.

Pare com isso – dizia.

- Por quê? – ele perguntava.

- Por que não gosto – respondia de pronto.

- Mais essa! – e vinha a desforra: - Os incomodados que se mudem.

- Não vejo essa hora – respondia com o nariz empinado.

Ele continuou a beber o café com aquele ruido horrível pela boca.

Ela reclamava, “pare com isso, me respeite!”

Ele não se importava.

- Me respeite, sou uma moça de família, não vim para sentar à mesa e ser desrespeitada – ela reclamava.

A hora mais prazerosa para ele era quando começava a beber o café soltando o ruído costumeiro pela boca.

Ela, enervada, ameaçava:

- Você me respeite, não me casei pra engolir esse tipo de afronta.

Ele não ligava.

Até que um dia, apanhou uma faca e correu para cima dele.

- Agora, sujeito desgraçado, vou furar seu bucho, cortar sua garganta e acabar de uma vez com essa pirraça desgraçada.

Ele não titubeou, viu que ela não estava brincando, o rosto avermelhado, a boca tremia de raiva.

Saiu correndo na direção da porta.  Desceu a escada depressa.

Lá embaixo soltou um grito de guerra, que abalou a casa.

- Já que você não me suporta, fique aí sozinha na sua gaiola.

Implorou à mãe que trouxesse ele de volta. De agora em diante estava resolvida a tolerar a situação que lhe era deplorável, feria e doía um bocado.  

Ele voltou, com uma condição, que jamais ela desaprovasse sua conduta na refeição matinal quando fosse beber seu café.  Era a mesma condição que uma sentença ordenava para resolver o impasse e pendia para uma das partes. Proferida pelo juiz de direito, não admitia recurso contra, no caso ele era o autor triunfante. O litígio estava encerrado, definitivamente com o trânsito passado em julgado.  

O sorriso contente, ele retornava como o vencedor da causa. Cheio de gosto bebia seu café, fazendo o ruído na boca. Dava um prazer danado quando como um ralo os lábios sorviam seu gostoso café, era imbatível quando fazia o barulho na boca. Ela agora achava graça.   

 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

 Soneto do Rio Virado Bicho 


Cyro de Mattos


Sei que era um bicho grande, muito grande, 

dava medo a menino e gente grande,

espumava de raiva, derrubava,

levava bicho morto, o que encontrava 


pela frente, a cada lado que fosse,

era o mar para outro lugar mudado, 

era um bicho que chegou do outro mundo,

veloz, ai de quem o desafiasse,  


era o mesmo detrás como adiante.

não havia promessa, procissão 

que fizesse ele voltar como era antes,


que fizesse ele descer na mansidão, 

só parava de crescer mais da conta

quando afogava uns três. A lenda conta.