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sábado, 12 de março de 2022

 

agudo mundo ou do solitário caminhante nos campos insanos 

 

 

                      Cyro de Mattos

 

 

 

    ...matador de pássaro terra água a mancha que envergonha.   aguda fome vil de novo impelindo-te.  fecha as pálpebras o sol quando vê tuas águas oleosas ondas dum peito sem dó e lágrima a comemorar de ira excedido o que o coração mais lateja desamor a queimar no verde a cobrir com cinzas os tocos das vastidões desoladas. em flor carbonizada borboletas ausentes de odores fragrâncias sem finas saliências a relva em hesitante tremor. sem tecer da natureza minúsculos dramas a vida.  sanha sorves de todas as forças reunidas pulsando veias nervos num calor para matar os sobreviventes. te ativa o cheiro enfurecido das manadas som das patas nas têmporas tua fronte do animal transformador babando bufando nas rugas do tempo o detentor só de fissuras o mundo te pergunta se no antigamente havia o semeador no campo de centeio decididamente desviado da rota alegre dos dias preferindo ser o que se acha nos gestos impuros mãos impassíveis dentro da bruma.  o litoral tu fizeste de tal assombro clamor que perfura a inocência irrompendo das gargantas sedentas do abraço. que adiantam soluçantes vozes emanando miasmas contaminações dos peitos esvaídos a cidade em grito? o deserto o deserto tua marcha algemando estas mãos abertas em súplicas sopradas por vento de amanhecer sofrido. de assaltos atropelos dizem os que são vítimas dum surpreendente audaz animal andarilho bicho insano poliglota suicida 

 

 

NÃO NOS MATE MAIS SOMOS A INFÃNCIA QUE VIVE NAS COLMEIAS DO METRÕ DORME EM ESCADARIA DE IGREJA ROLA NAS RUAS SOLITÁRIAS PUTAS NO CALABOUÇO DA CARNE NEGROS AÇOITADOS NOS PORÕES DA MEMÓRIA ESCRAVA POUCOS NATIVOS SOBREVIVENTES EM GRITO DA FUGA TRESPASSADA NOS RASTROS DA DESGRAÇA

 

        fuzilas com o sorriso aplaudes com os dentes de metralha habitas nesta inconcebível fundura dos mais vastos ais abismo feito invenção de fornos crematórios no espetáculo de amontoados nos vagões como boi pro matadouro tão pele osso os que sequer adeus podiam dar aos que ficavam sonâmbulos penetrados de angústia pelas trilhas do horror. tua máscara o sabor dos holocaustos tuas veias até hoje inflamadas no letreiro de ódio:

 

MINHA VOZ CONFUNDE ATÉ O AR AS AMARGAS SIM AO INVÉS DE SADIOS SABERES BEM-VINDOS NO AMOR SABORES DAS FRUTAS DOCES NO VERSO DO TEMPO ME MASCARO DE IDEOLOGIA NEGATIVA NADA DE UTOPIA COMO CANÇÃO DO AMOR

 

             de crimes hediondos executor numa incrível capacidade de proliferar  tudo que não se cobre com a folhagem da vida 

 

QUERO QUE O POBRE EXPLODA MENINO DE RUA SE FODA PRETO QUE SE LASQUE PUTA QUE VÁ PRA PUTA QUE PARIU ÍNDIO MATO AGORA É COM GRANADA

 

                    à vontade instauras teus ares disseminando pétalas atômicas. gente flora fauna alimentando teu ópio com ventos gemedores urdidos de agonia nos sequestros diabólicos. o viajante das estrelas corruptor corrompido estampado no mundo não mundo como o matador incansável dos que cantam a poesia da pomba em veias puras da manhã carícia feita mansidão verdadeira. na bomba teu maior elogio dos escombros no sal destas águas que despojam as cores do arco-íris nada de choro com a menina morta a bala perdida encravada na cabeça remorso não habita teus becos insones bem conheces tua música de eficiente terror no ar a explodir a maravilha estilhaçada de gritos entre tudo que soterras quem te fez exilado nas próprias sombras dos anos desalmados? não mais  pressentes sementes da terra amputada dos rumores  do vento nos ramos trescalando chuva de flores nem o encontro  dos amantes com seus anéis brilhando nos jardins do amor já não existe  mais choro mais grito mais dor mais nada conseguiste secar  todas as lágrimas de seres provisórios neste estar no mundo ambíguo. não conseguem encarar-te as trevas há muito tempo a morte evita encontrar teu olhar medonho numa carreira tão veloz sumiu para que o vento mais rápido nessa fuga de assombros nunca consiga alcançá-la

 

 

apesar de tudo creio.  sabe o tempo caminhos de mim mais os outros mais o mundo. duma flauta mágica da qual escorre uma música de tranças que se faz no seu expectante amanhecer. enleio de canção que acena com luzes na parte obscura do ser

 

 

 

 

 

sábado, 5 de março de 2022

 

                As Proezas do Soneto

              Cyro de Mattos

 

A poesia permite ao homem realizar-se como um ser mágico, que consegue retirar a beleza da cegueira da matéria no palco da vida. A poesia está em tudo. Procure bem, você a encontra.  Não esqueça que só o poeta a ergue no poema como testemunho de sua experiência verbal em diálogo com a existência. Nessa corrente energética que emana da natureza humana, o soneto acontece como uma festa prazerosa de poucas estrofes.  Trata-se de uma forma fixa de poema com quatorze versos, dispostos em dois quartetos e dois tercetos. O último verso é tido como “chave de ouro”, devendo surpreender e encantar com a sua revelação no desfecho. 

Combatido pelos vanguardistas, os protagonistas da Semana da Arte Moderna de 22 não lhe pouparam depreciações, alardeando naquele movimento sua indignação contra o indefeso poema breve, como “fora a gaiola”, além de outras referências depreciativas. A febre do soneto fez com que esse diminuto poema atravessasse séculos, permanecesse até hoje, reverenciado com fidelidade por poetas modernos, com vistas a atingir o nível superior da alma. Esse breve espaço de criatividade no verso como desafio e atração vem sustentando o eu lírico em estado súbito da comoção.

A língua portuguesa ganhou em beleza e modulações rítmicas com o verso decassílabo. Considerado como o mais melodioso e harmonioso é usado no soneto.  Apesar disso, é dado ao poeta que cultiva o soneto a alcunha de soneteiro, sonetoso e sonetífero. O exímio sonetista baiano João Carlos Teixeira Gomes registra uma série de expressões em desfavor das andanças do rejeitado poema de quatorze versos: “refúgio da decadência”, “gaiola da inspiração”, “bestialógico acadêmico”, “muleta da má poesia”, “cabresto da criatividade”, “onanismo poético”, “barbitúrico para insônia”, “sucedâneo de palavras cruzadas”, “museu do bolor formalista”, “chavão de segunda ordem”, “formalismo oco e vazio”, “museu de velharias passadistas”.

Não obstante o comportamento contundente dos que desfazem de imbatível criatura nanica, a garra de que é portador permite que continue de pé, ínfimo caminhante do sol e da chuva com os seus constantes passos de quatorze versos, buscando em sua peripécia métrica alcançar a magia do imaginário, atingir o ponto máximo do encanto na alma do receptor. Segue indiferente às acusações e atropelos da legião de fanáticos, que não o aceitam, sob qualquer hipótese. Teima em habitar com seus lampejos líricos a floresta dos poemas maiores, preservada por poetas célebres com suas criações em versos longos, a eloquente poética formada de quantidade de estrofes.

O soneto é dado a formar uma sequência quando   vários poemas estão ligados entre si por uma concepção e execução magistrais do tema, como se deu com os cento e cinquenta e quatro sonetos de Shakespeare. Outra de suas proezas quando escrito em sequência é formar a coroa de sonetos, uma forma poética composta por 15 sonetos, que têm ligação entre si por um tema. Os primeiros e últimos versos são versos de um outro (décimo quinto) soneto, denominado soneto-base, ou soneto-síntese.

O soneto em mãos seguras de mestres arrebata delírios, alimenta paixões, cultiva ilusões, carrega fardos, cai em desterros, colhe perdas, ergue perjuros, dissemina encantos, enfeitiça nos vazios da solidão. Incrível, abre-se à participação de um acontecimento raro, rico, exuberante. Transmuda-se em uma festa de imagens opulentas, faz-se comunhão do saber aliado à beleza, espalha na vida as suas sementes nas zonas encantatórias do admirável com síntese.

É visível que o seu procedimento fulgurante faz pensar no homem como resultado de outro ser, pleno de brilho na dimensão forjada de transcendência com base em desejos e enleios. Dotado dessa voz estranha, em cuja inspiração tira o homem de si mesmo para ser tudo o que é, percebemos que o desejo posto na festa lustrada com ritmos de versos esplêndidos é de algo que se confunde com cada um de nós. Visto como evocação, recriação de uma experiência, eis que ressurge de uma senda que está dentro do lado noturno de nós mesmos. Convém lembrar que essa imagem do mundo transmitida em poema com o formato breve, rígido, pode causar ao poeta a indiferença aos seus sonhos constrangidos, abafados no clamor de seus gemidos.

Sonoridade que serve como vínculo do verso para salientar a significação da vida, unidade rítmica que sustenta a ideia fluindo no texto como música, ardência que soa na rima com vibrações da palavra tradutora de inventiva rumorosa, da qual emana com luzeiros e fulgores, procedidos como hábitos e atitudes, o poeta eficaz aceita no soneto o desafio de exibir-se com indumentária repetitiva de inclinações breves e agudas. 

 No resultado final da imagem, o soneto, esse feitiço que perdura além do tempo, presta-se à natureza diversa dos humanos, ao fogo do amor, que cresce como luz na treva. 

Nesta capanga de 161 sonetos há os de formato tradicional e os de forma reduzida, todos eles com vários conteúdos, pois decorrem de natureza diversa da compreensão humana, mas no conjunto atuam no seu autor como vícios da beleza, sentimentos que querem sustar o tempo, riscando-o em instante breve do eterno.  Num sopro da extração verbal ínfima, a alma precipita-se para ordenar a existência. Como estímulos que se abrigaram no homem em movimento criativo da beleza, um dia retornam para se encontrar em outro resultado, na tentativa de iluminar a parte noturna do ser, de que nos fala em observação lúcida Otávio Paz, como imagem comovida da vida.