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sexta-feira, 22 de abril de 2022

 

Conhecimento de Candomblé

Cyro de Mattos

Tinha ouvido falar em corpo fechado pelo pai de santo, figa de guiné, em forma de mão fechada, preservativo para afastar doença e malefício, em ebó de Exu na encruzilhada, serve para fechar os caminhos de um desafeto. Sempre fica curioso quando ouve falar nas crendices, saberes e sabores que dizem respeito à religião que os negros trouxeram de África e implantaram em Salvador de Bahia com seus orixás, cantos e danças.

Axé é uma força espiritual. Valor. O fundamento, pilar de sustentação do candomblé. Abará e acarajé são iguarias que só de falar dão água na boca, fazem parte da comida do santo. Não há baiano que não deguste com prazer essas iguarias, sempre querendo mais. Em 2 de fevereiro acontece a festa consagrada a Iemanjá, se oferta presentes à Dona do Mar pela graça alcançada. Sempre está presente por lá.

No sincretismo religioso, Ogum é o Senhor do Tempo, não perde uma demanda, corresponde a Santo Antônio. Oxóssi é o orixá da caça, dizem ser mesmo que São Jorge dos cristãos. Ibejes, conhecidos como erês, referem-se a Cosme e Damião, os santos meninos, mabaços. Oxalá, o santo da paz, pai de todos os orixás, é associado a Nosso Senhor do Bonfim, o padroeiro de Salvador. Oguniê, saudação a Ogum, se você disser Oia iê ô reverencia Oxum.

Gravado está no pensamento tudo que ouvira falar entre os baianos sobre candomblé. Sua curiosidade quer saber mais, sentindo-se frustrado porque não conhece de perto uma casa que cultive como crença o candomblé. Justamente é quando aparece o moço Nigeriano, colega no jogo de capoeira na escola de Mestre Bimba, comprometendo-se levá-lo para conhecer uma casa de candomblé em dia de festa consagrada a um santo.

O candomblé de Mãe Pretinha fica no Garcia, Ogum é o dono do terreiro, vai ser homenageado na festa marcada para esse domingo. O salão enfeita-se de bandeirolas, atabaques chamam os orixás para descer nos cavalos, os filhos e filhas do santo. Não demora, entre vozes e risos, fica sabendo que o candomblé é constituído de preceitos como respeito e obediência à hierarquia. Sob o enleio de vozes orantes, com música e sons de tambor trazidos de África, o coração emerge no ritmo feito de contritos cantares.

E, quando termina a festa, permanecem dentro do peito os saberes abençoados do povo do candomblé, como estes: se for de paz,  pode chegar,  venha  pra cá, vamos conversar com os orixás, que de longe vêm, de lá, bem de lá, sem nunca cansar, vamos agradecer a paz de Oxalá, vamos cantar, vamos dançar, vamos rodar, no transe vamos cair, nos ligar a cada santo no seu galopar, com fervor promessa fazer, obrigação pagar, vamos comer, comida boa, beber aluá, conhecer de África coisas, caminhos, fonte doce, flores, da cachoeira perfumes, cachos de cores, quem é do axé, nesse batuque, nesse cachimbo, nesse cafuné, da terra, água e ar, não nega que é, Ogum ê, nosso pai, santo guerreiro, deus do candomblé, abre caminhos, vence demanda, quando pisa na pedra, o mundo balança, pra lá, pra cá, fica torto, pra endireitar Jesus é preciso chamar, com pai Ogum ninguém pode, só Deus, eterno criador de tudo que há, saravá ê, saravá…

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sábado, 16 de abril de 2022

 

Poema na Semana Santa  

 

Cyro de Mattos

 

Tudo é roxo e ofensa e perdão.

A tristeza está nos ares,

já anda pelas veredas

e no perfume dos caminhos.

No ocaso da saudade ao longe,

na flor do cacau que é espinho.

E chega à igreja a procissão.

Tudo é clamor e cruz e paixão

porque uma coroa sensitiva

instalou-se em Itabuna

com fadiga e sede e fome

e escorre suas dores

pelas pedras cor de vinho.

Mas no sábado tudo é verde

e claro sem o roxo e o espinho.

Os sinos repicam na cidade

e um dia novo está nas galhas,

no coro de milhões de passarinhos.

 

 

segunda-feira, 4 de abril de 2022

 

Romance do acadêmico Jorge Amado

 

                            Cyro de Mattos

 

             

 

             Roman à clef, ou roman a cle, expressão francesa cuja tradução aproximada é "romance com chave", designa a forma narrativa na qual o autor trata de pessoas reais por meio de nomes fictícios. Roman à clef na literatura brasileira é Montanha (1956), do mineiro Ciro dos Anjos, O espelho partido, de Marques Rebelo, projetado para sete volumes, iniciado em 1959 com O trapicheiro, e A conquista (1899), de Coelho Neto, que retrata a vida boêmia e intelectual do Rio de Janeiro no final do século dezenove.               

        No romance de Coelho Neto informa-se sobre a paisagem urbana em mudança do Rio de Janeiro, os costumes importados de Paris, os padrões de comportamento ditados pelo espírito da belle époque, a visão que se tem da literatura como o sorriso da sociedade. Nesse Rio de Janeiro de estilo literário eclético, na qual se cruzam e entrecruzam a estética do parnasianismo, simbolismo e impressionismo, circulam personagens reais com os nomes fictícios. Alguns pseudônimos são evidentes no romance, como Octávio Bivar representando Olavo Bilac, e outros não menos fácil na identificação, como é o caso de Anselmo Ribas, que é identificado como se fosse o próprio Coelho Neto. 

         Na literatura estrangeira, um roman à clef clássico é a fábula de A revolução dos bichos, de George Orwell, na qual não é difícil identificar no bestiário como personagens fictícias pessoas da revolução soviética, que derrubou os padrões de um sistema aristocrático e se tornou responsável pela implantação do regime comunista na sociedade russa. Esse tipo de romance encontramos em Portugal com A correspondência de Fradique Mendes (1900), de Eça de Queiroz, enquanto na Alemanha A montanha mágica (1924), de Thomas Mann, é outro exemplo de romance à clef. 

          Em Farda, fardão, camisola de dormir, Jorge Amado recorre ao romance à clef para abordar as disputas entre candidatos à vaga deixadas por falecimento de ilustre membro da Academia brasileira de Letras e além

disso recriar o Estado Novo com seus padrões ditatoriais. Sabe-se que no Estado Novo Jorge Amado foi perseguido e preso, teve seus livros queimados em praça pública. Tempos depois, nos idos de 1961, ingressava na Academia Brasileira de Letras, confessando no seu discurso de posse:

 

     Chego à vossa ilustre companhia com a tranquila

     satisfação de ter sido intransigente adversário desta

     instituição naquela fase de vida em que devemos ser,

     necessária e obrigatoriamente, contra o assentado e

    o definitivo, quando a nossa ânsia de construir encontra

    a sua melhor aplicação na tentativa de liquidar, sem dó

   nem piedade, o que as gerações anteriores conceberam

    e construíram. (p. 9, Discursos, 1993)

 

            Perguntado certa vez porque como um escritor irreverente, vivendo a vida do povo, havia ingressado na Academia Brasileira de Letras, uma instituição de elite, que preserva os valore tradicionais e o ritual da solenidade com pompa, respondeu por duas razões: “O ocupante da cadeira, Otávio Mangabeira, às vésperas de morrer, no hospital, disse a Wilson Lins que gostaria de ser sucedido por mim... E pela pressão de meus amigos acadêmicos.” (p. 32, Literatura comentada, 1981)

         Esclareceu que já tinha sido convidado pelos amigos, tendo recusado. Quando voltaram a fazer pressão, aceitou. Frisou que só usou o fardão da Academia em poucas oportunidades, a primeira foi quando tomou posse, depois ao receber o romancista Adonias Filho na Casa e por último o dramaturgo Dias Gomes.

         Jorge Amado ocupou na Academia a cadeira 23 de que é patrono O José de Alencar e o fundador o Machado de Assis. Ao escrever o romance Farda, fardão, camisola de dormir, compreende-se que razões sobraram para que escolhesse o formato do romance à clef para contar uma história que tem ressonâncias políticas e que se desenvolve em torno da luta entre o coronel Agnaldo Sampaio Pereira e o general Waldomiro Moreira. O primeiro representa a força nazifascista do Estado Novo enquanto o segundo, embora militar, as forças mais liberais. O livro descreve o emprego dos meios na luta pelo voto na Academia quando tudo é válido, usa-se uma ofensiva que esmague a pretensão do inimigo. Pressões, manutenção no emprego, presentes, agrados, tudo que seja favorável à conquista da vaga.

          Os compêndios apontam os vários motivos que o escritor recorre para exercitar o romance à clef.  É motivado pela natureza desse tipo de prosa de ficção por ser o gênero sujeito à controvérsia do assunto recriado, à necessidade de informar os fatos com certa discrição, munir-se da cautela para fornecer informações privilegiadas sobre o que se passa nos bastidores, preservar a vida íntima ou escândalos de terceiros, que assim escapam de acusações caluniosas ou difamação. E ainda a escolha reveste-se como vetor de realização pessoal no desejo de dar à história com sabedoria o desfecho que gostaria que ela tivesse tido. Acresce a isso a intenção de retratar eventos ou experiências autobiográficas sem se tornar vulnerável. 

A sabedoria de Jorge Amado é visível neste romance à clef, que recria a face oculta da Academia, de maneira irreverente, com marchas e contramarchas no correr das eleições de candidatos vaidosos, na disputa ferrenha no caso pela vaga deixada com o falecimento de Antônio Bruno, ilustre membro da entidade, para alguns um senhor poeta, mas doido por mulher. O disfarce, usado nos nomes fictícios de personagens reais, para que assim camuflados possam atuar no desenvolvimento do tema vai além do conflito, e, num lance de competência usual de quem sabe inventar uma história, projeta-se sem retoques um retrato fiel do Brasil durante o Estado Novo. Emerge da escrita que fere e aponta mazelas um contexto político  cheio de opressões e vilanias ditatoriais, não respeitando os direitos mais primários  do cidadão.

 

Referências

 

AMADO, Jorge. Farda, fardão, camisola de dormir, editora Record,   

                          Rio de Janeiro, 1979.

------------------- Literatura comparada, entrevista, seleção por Álvaro

                          Cardoso Gomes, Abril Educação, São Paulo, 1981.

------------------- Discursos, Casa de Palavras, Fundação Casa de Jorge  

                         Amado, Salvador, 1993