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quinta-feira, 18 de agosto de 2022

 

                                                    O Comilão

                                          Cyro de Mattos

 

Era um comilão incorrigível. Não passava um dia em que não comesse por quatro vezes um prato fundo com uma comida apetitosa. Insaciável, constante. Quando não tinha dinheiro para fazer uma merenda no restaurante, que constava de um prato fundo com a iguaria farta, vestia a roupa maltrapilha, de pés descalços, saía para a rua, pedindo, clamando aos transeuntes por um dinheirinho para comprar alguma coisa, estava se esvaindo de tanto passar fome.

- Um dinheirinho, moço, ainda não comi hoje.

Apertou a barriga com uma cinta de compressão para não dar na vista que estava com a pança estufada, armazenada de comidas várias.

O bigodudo homem sisudo respondeu:

- Dou-lhe dinheiro grande pra comprar um prato fundo de comida, se você morder essa pedra e mostrar que está de fato faminto.

Arregalou os olhos, a proposta vinha em boa hora da fome impiedosa.  Prontamente mordeu a pedra como se fosse um pedaço de carne, bem temperado, refogado no arroz gostoso. Voou da boca dentes para todos os lados. Cuspiu sangue, deu um grito lancinante. Ficou chorando, ui, ui, quebrei meus dentes, meu Deus, me socorre, que vou dar um troço!

De agora em diante passou a ser um comilão mais comedido, sem farsa nem artimanha.

Fazia apenas duas refeições modestas, diariamente. Não queria correr o risco de perder a dentadura nova, paga em dez prestações, com sacrifício do que recebia da aposentadoria modesta.   

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

 

Vejam abaixo uma porção de beleza nos versos que só um mago produz. (Cyro de Mattos)

 

Infância

  

Bernardo Linhares

 

“Não tenho certeza se vivi além da infância” 

Saint-Exupéry 

 

INFÂNCIA 

 

(ao sublime e inspirador Carl Gustav Jung) 

 

Ilha que brilha 

num mar de alegria, 

ciranda de cores, 

maré cheia. 

Soprando a vela, 

o verde é ternura, 

o branco no céu 

compõe o carrossel. 

Pintando a criança 

- peixinho dentro d’água - 

o azul silencioso. 

E esse sol que escorre 

em minha lágrima. 

 

*

CANÇAO DE NINAR

 

(ao inspirador e sublime Sigmund Freuf)

 

Adormecendo,

diz o neném:

Papai me ama,

mamãe também.

 

Azul de amor,

sonha a criança.

No berço meirgo,

que é o seu pódio,

 

ela boceja,

abrindo os olhos:

Ô revoltado,

 

 

quem te pariu

 foi a inveja,

a mãe do ódio.

 

*  

O IDIOTA ÚTIL

 

( a Lacan e seus discípulos)

 

Cara emburrada de anjo sem asas,

sem jardins, sem quintais.

O cão fareja:

“Ou não teve infância,

ou não teve pai”

 

 

*       

 

 

Se você nega a infância, nega a vida 

Audrey Hepburn 

 

 

 

A BELEZA É A PRISÃO QUE NOS LIBERTA 

 

  

(ao mais do que sublime e inspirador Sir Roger Scruton) 

 

 

  

 

Mimo do céu, infância alada: 

lua, rosa e borboleta. 

Azul, azul-celeste, 

igual ao girassol, gira o planeta. 

Conto de fada, encanto: 

lua, crisálida; sol, pirilampo. 

Entre os astros da flora recende o amor-perfeito, 

floresce a sensitiva, voam pavões, 

canta a cigarra, a lua se deita. 

Enquanto a borboleta beija a flor da correnteza, 

As Três-Marias, 

pétalas de um trevo na haste de um cipreste, 

refletem à luz do dia: 

- Pequenino bem-te-vi, desenvolvendo tua pena, 

não perca o sentido da vida, 

não menospreze a Beleza, 

bondade e consolação 

que nos afirma na alegria 

e nos conforta na tristeza. 

 

 

 

BL, o decano da Geração Prefácio, Verba Pública e Privada, autor de Flores de Ocaso, o único livro publicado sem nenhuma nota em todos os jornais de Salvador, agradece a leitura. 

 

sábado, 13 de agosto de 2022

 

Peripécia de Jorge Amado

Cyro de Mattos

 

Eu te louvo pelos oprimidos

nos subterrâneos da liberdade,

teu pulso erguido com amor

fale da seiva de servos,

calo sem orvalho na trama

do ouro vegetal com rifle na curva.

Teu verde galope sem sono,

na seara vermelha tua face

carregando sede e fome,

o olho do sol crepitando

céu de fogo na aurora,

fósforo aceso no crepúsculo.

Teu riso leonino fendido

com os capitães da areia,

esse trauma de ladeiras

e ruas do mundo sem teto

manchado na hora da ciranda.

Numa tenda dos milagres

toda a Bahia mestiça cabendo,

no sumiço de uma santa

a arte incrível de um feiticeiro. 

Eu te louvo no peito lírico,

a garra de Teresa Batista,

fome de Dona Flor, agreste Tieta,

rosa de Gabriela, cravo de Nacib.

Quem te fez pastor da noite,

Vasco Moscoso, flor do povo,

Pedro Bala, amado guerreiro,

boêmio, malandro, meretriz, violeiro,

guardador de chaves africanas,

verdade absoluta em Pedro Arcanjo,

duas mortes de Quincas Berro Dágua,

gargalhada da Bahia ao infinito?

Ó meu capitão de longo curso,

para te louvar com aplausos,

risos grandes e muitos vivas, 

 tua cidade de mares e santos

amanhece repetida de foguetes,

de estrelas e atabaques anoitece,

nos terreiros orixás estão descendo.

 

 

 

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

 

             Cyro de Mattos e Jorge Amado: um encontro grapiúna*

                  Por Nelson Cerqueira

 

É um encanto o encontro temático que Cyro de Mattos realiza com Jorge Amado ao apresentar em seu livro de ensaios um rico conjunto de saberes sobre a obra do famoso romancista baiano. Nas leituras de romances e de outros aspectos importantes, o ensaísta aborda primeiro a infância do romancista quando era ainda um menino grapiúna, na época da conquista da terra. Incursiona depois   sobre o universo do cacau, prossegue com os comentários sobre o fazer literário, no qual contempla estudos sobre os temas, personagens, invenções com base na realidade popular, enfim, em tudo que da narrativa prazerosa possa expressar uma forma de biografia da vida no ato da escrita.

 

No aspecto construtivo do uso do saber da vida transposto para o plano do fazer literário, o ensaísta dá-nos uma visão humanista da criação e da vida existencial do célebre escritor.  Suas leituras assim sobre o legado amadiano facilitam o entendimento de uma obra de valor inconfundível para os novos e velhos leitores. Estão tão bem urdidas acerca do comportamento feito de saberes na escrita sensual e no imaginário do romancista que bem poderia esse livro de ensaios funcionar como um manual literário para alunos da escola secundária, das faculdades de letras e até mesmo para estudiosos que se disponham a rever e refazer conceitos assumidos e propalados. 

 

Sem falar na contribuição que poderia prestar a muitos segmentos da crítica formalista que impera no meios acadêmicos e universitários, nas mentes tradicionais às vezes tendenciosas, através de interpretações engajadas, padrões de dominância analítica  municiadas pelos preconceitos, situados esses no discurso crítico conforme concebe Hans Georg Gadamer, em Wahrheit und Methode, e até mesmo Francis Bacon, em seu Novum Organum, quando nos alerta para os ídolos cultivados na escuridão, nas imagens pelas quais se pode ficar aprisionado, sem ver a claridade dos seres e coisas nem vislumbrar uma face da verdade.

 

As narrativas de juventude, junto com o universo do cacau, pela primeira vez aparecendo na obra de Jorge uma incursão romanesca em Itabuna, se constituem em capítulos capilares para a hermenêutica de romances como Cacau, Terras do Sem Fim, Gabriela, Cravo e Canela, São Jorge dos Ilhéus, A Descoberta da América pelos Turcos e Tocaia Grande. Os saberes são apresentados aqui pelo ensaísta de forma erudita, referidos em crítica textual eclética, na qual são selecionadas personagens como testemunhas reais e fictícias, de acordo com o que se encaixa melhor para o resultado desejado no estudo. Nenhum personagem ou momento existencial descrito recebe favorecimento teórico, ao invés disso o ensaísta sempre vai descrevendo e provocando a reflexão do leitor, auxiliando-o na fixação de sua opinião, para assim ir mostrando o texto impregnado de lucidez interpretativa com os elementos extrínsecos e intrínsecos necessários à elucidação da escritura em conexão com a vida, tanto na forma quanto no conteúdo para conseguir o efeito. 

 

Parece que Cyro está abraçado com o melhor da crítica do século XIX quando se escrevia sem viés de preferência diante de um manuscrito, com uma disposição poética e alexandrina que impressionavam. Conscientemente usa elementos de muitas teorias literárias e filosofias da interpretação da obra e assim permite que as ideias se interconectem com a fatura romanesca de Amado, com sua existência, seu conhecimento abundante dos seres e das coisas, valores, razões, pensamento mágico e lógico, linguagens literárias e populares. Os saberes são apresentados, passo a passo, como numa atitude rosácea, conduzida por uma variedade de estilos, que nos lembram a lição de Hume quando observa que não existe um único caminho para se chegar à beleza, e pode ser, por isso mesmo, o que Cyro preferiu nesse modelo de práxis literária com diversos prismas para comentar os saberes de Jorge. O ensaísta debruça-se principalmente sobre fontes primárias do saber e do fazer, ao mesmo tempo que cobre o espaço de uma cultura mestiça do povo baiano com a variedade de ângulos que elaborou com felizes descobertas e achados importantes no correr do estudo.

 

O capítulo analisando Capitães da Areia está tão bem urdido que me trouxe de volta a análise que fiz das apropriações de Amado do universo medieval, a narrativa centrada em Pedro Bala, louro com sua cicatriz vermelha, a liderar o grupo, fugindo da tentativa bastarda de transformá-lo em negro, para atender a supostos preceitos do politicamente correto, tão em voga nesses dias de desvario em que se deseja até queimar todo o acervo de Monteiro Lobato. O enfoque desse romance de aspirações sociais mostra como nesses pobres meninos abandonados na areia acontecem mazelas, que são as de hoje, e que já existiam na década de 30, mas ainda recalcitrantes quase cem anos depois, no novo século.

 

Em certo momento da leitura que fiz preferi também ficar com o ângulo idealizado de Amado no que diz respeito à imagem de personagens com a dimensão dos contrastes raciais, dentro das discussões da época, lideradas por Gilberto Freire em sua tese de estudos multirracial, escrita sob a orientação de Franz Boas, vinculada a uma época em que se buscava novas ideias sobre raças para dar uma resposta ao crescente arianismo defendido por Adolf Hitler.

 

As narrativas de pesquisas e memórias, contidas nesses saberes de Jorge Amado, abordando a cidade da Bahia assentada numa cultura popular mestiça e sua preferência pela vida urbana, com feitiçarias e heróis míticos como os de Os Pastores da Noite e Tenda dos Milagres, assim como os ensaios sobre as mulheres heroínas e guerreiras com suas imagens impregnadas de ousadia e coragem,  são todas elas excelentes leituras para compreender a dimensão do ficcionista e seu compromisso com as questões sociais, lutas de classe e escárnio à burguesia dominante.

 

É magnífica a interpretação do ensaísta sobre a realidade da vida popular  no romance de Jorge Amado, como um dos saberes configurado na expressão mística, fantástica, mágica, socialista, enfatizado em Tenda dos Milagres, Os Pastores da Noite, O Sumiço da Santa e Dona Flor, mas que navega em toda a narrativa do romancista, desde País do Carnaval, a englobar, até mesmo, seu relato de caráter autobiográfico, onde existência e imaginação se misturam como vinho e água durante certa navegação de cabotagem.

 

O ensaísta Cyro de Mattos teve a iluminação para tratar de todas as variações de realismos e estilos literários usados por Jorge Amado de uma forma poética e grapiúna, dialogando com os pés na terra, viajando por toda complexificação do flutuar de teorias, usando aqui a ali alguma fonte teórica, mas mantendo em suas leituras dos saberes a base maior para o entendimento do autor: sua fortuna crítica literária. Do ponto de vista crítico é marcante como esse conjunto de ensaios ou crônicas teorizantes sobre o amado escritor baiano adote como pano de pesquisa as obras do romancista e uma dose de referências a muitas ações conjuntas, de amizade, advindas das relações sociais, vivências e convivência no mundo grapiúna, no universo pré-místico do cacau, e que também inclui nelas a religiosidade trazida pelos descendentes de africanos, sobretudo a religião dos orixás, ijexá e dos Bantus de Angola e sul da África.

 

Os capítulos sobre o criador de personagens, o prosador e o poeta, não podem deixar de ser apreciados com cuidado, em razão de sua riqueza de detalhes.

 

Resulta esse livro de um conjunto de ensaios que produzem uma análise clara e imprescindível para o conhecimento da obra de Jorge Amado. O ensaísta Cyro distribui também farto conhecimento sobre os personagens masculinos e femininos. Aponta como ocorre a fusão entre engenho e arte para traçar o modo de construção desses protagonistas, tanto no romancista estudado como em outros da grandeza de Machado de Assis e Graciliano Ramos. Tem razão quando pergunta como esquecer Baleia, de Graciliano Ramos, Moby Dick, de Melville, Dona Flor ou Pedro Archanjo, do autor de Tenda dos Milagres, personagens que ocupam lugar de destaque na galeria das fascinantes criações de todos os tempos, eternizadas como referências obrigatórias na literatura ocidental.

 

Por fim, lembremos que Jorge Amado rompeu com o partido comunista, mas permaneceu, em toda sua dimensão de construção narrativa, ligado às verdades essenciais de um sistema organizado com feição igualitária. Podemos ver isso na delimitação de personagens, dentro da estética com mensagens de teor libertário conduzido para um mundo melhor. Escreveu neste sentido a fábula infantil O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, tão bem lembrada por Cyro em um de seus lúcidos ensaios. 

*Grapiúna é assim chamado o pioneiro ou o que nasceu no tempo da conquista da terra.  Ao longo dos anos, o termo passou a significar aos que se identificam com as tradições e valores de uma civilização criada com bases na lavra do cacau, no sul da Bahia.   

**Nelson Cerqueira é escritor, tradutor, poeta, professor doutor em Letras.

 

 

 

 

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

 

               Um Homem Bom

                Cyro de Mattos

Homem alto, forte, voz grossa e mansa. Gostava de usar boné. Era sempre visto na feira do Centro Comercial aos sábados. Cedo recolhia com a pequena cesta donativos para a feira dos pobres. De porta em porta, na semana, pedia ajuda para a construção de mais leitos no albergue.

Dormia pouco, o tempo disponível era dedicado ao próximo. Dor é vida, sofremos porque estamos na vida, li no poeta Jorge de Lima. O homem que usava um boné ensinou que a vida torna-se leve quando habitada com amor. Há milênios que as religiões estão tentando mostrar ao ser humano que só o amor constrói. Braço ao abraço a rota fica mais fácil. Há milênios nós os humanos estamos construindo a história de nossa condição com intolerâncias, violência, egoísmo. Com uma escrita às avessas, desviada da ternura, mais para urubu do que para curió. O que sabe hoje o nosso pobre coração humano de Deus? Do enigma, da dor e do amor?

Essa lição fácil, dar alpiste aos desvalidos, pássaros tristes com as penas doídas, aquele homem de coração solidário ensinou no dia a dia. Por onde andou o seu coração foi para dizer que Deus existe. Podemos senti-lo na flor do coração. Basta amar o outro. A flor do coração sente-se em outros que a ele se juntam. O semeador de esperança no país dos frutos dourados, no chão onde o emblema da vida consiste em perseguir o dinheiro como a chave de todas as coisas.

Homem filho de um território onde no início o ser humano matava e morria por um pedaço de terra fértil, numa fome sem precedentes. Ensinou que a vida tem sentido com excesso de pobreza. Como pode vencer léguas do chão áspero e construir grande abrigo para centenas de pássaros sem voo e canto? Recolhidos aos dias tristes? Acreditava que a morada neste planeta é possível com todas as mãos numa só comunhão.

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Gandhi lembra que a cada dia a natureza produz o suficiente para nossas carências. Se cada um de nós tomasse o que lhe fosse necessário, não haveria pobreza no mundo. Ninguém morreria de fome. O genial Charles Chaplin fala do caminho da vida com beleza e liberdade. Lamenta que tenha ocorrido o desvio da ternura. A cobiça envenenou a alma dos homens, ergueu muralhas de ódio no mundo, fazendo-nos marchar a passos de ganso para a miséria e horror dos morticínios.

Aquele homem, que usava um boné xadrez, gostava de oferecer uma rosa a qualquer um quando percorria a cidade, em seu rito de recolher donativos para os pobres. Em linguagem simples dizia que todos nós somos missionários. Consistia a prática em doar-se ao outro, semear o amor entre os excluídos de uma vida digna, muitos deles sem saber a razão da fome e sede. Ele, Bionor Rebouças, o pai, o filho, o irmão. Um homem como outro qualquer. Um libertador para os enfermos do Albergue Bezerra de Menezes. Um anjo que desceu do céu.