Jorge Amado Contista
Cyro de Mattos
Existem
escritores que preferem a amplidão para expressar a vida, optam nas suas
criações por um gênero que corresponda ao seu imaginário fecundo, numa forma
capaz de representar com sobras as visões críticas do mundo, seguidas vezes
repetindo no tempo suas questões agudas
Jorge Amado
nunca se interessou pelo conto em seu percurso de ficcionista. Sua experiência
de vida fez com que a metamorfose da história se expressasse através do
romance, que em essência se expande ligado na vastidão do mundo. Seu romance no
volume alentado acontece na geografia de três regiões, Salvador de Bahia, o
Recôncavo e o Sul da Bahia, no tempo da conquista da terra. Desde cedo escutou muitas histórias das
gentes que iriam ser habitantes de seu universo literário no espaço das zonas
urbanas e rurais. Com uma vida
prodigiosa, marcada de aventuras e perseguições, em Jorge Amado tudo funciona
como enormes experiências, por isso só o romance se prestaria para representar
o conteúdo de um universo literário assim tão grande. O conto vai acontecer no
percurso desse escritor vasto como um simples episódio.
O livro Cinco
Histórias (2004), de Jorge Amado, como diz o título, é a reunião de cinco
prosas de ficção breve, que integraram publicações avulsas no período
compreendido entre 1959 e 1989, em revistas, periódicos e antologias, O volume
de capa dura, com ilustrações de artistas famosos, traz as histórias seguintes:
“Do jogo de dados e dos rígidos princípios”, “História de carnaval”, “As mortes
e o triunfo de Rosalinda”, “De como o mulato Porciúncula descarregou o seu
defunto” e “O Episódio de Siroca”.
Nesses cinco
contos, o leitor terá encontro de novo com o narrador de prosa envolvente, que
bem sabe recriar o cotidiano do povo, com seus costumes, aptidões, façanhas e
artimanhas usadas por seus tipos com caracteres próprios. Na prosa prazerosa
irá absorver a linguagem fluente do narrador admirável, conhecedor do ofício,
íntimo de suas gentes populares, dos seus valores, alegrias e tristezas. O
expositor do erótico como essencialidade da natureza humana sem apelar às
lubricidades.
Em “Do jogo dos
dados e dos rígidos princípios”, Jorge começa dizendo:
Nada mais perigoso do que confundir o destino irremediável de cada um de
nós com sem-vergonhice, safadeza, falta de caráter. Não é por querer, por falta
de princípios e de firmeza, que o homem repete uma, duas, três, dez mil e
tantas vezes a mesma e irreparável besteira. (pg. 9)
E observa que neste sentido muitas injustiças
acontecem com verdadeiros cidadãos devido à ligeireza dos juízos. Justamente o
que se vê na história protagonizada por Pedro Porró, cabo Martim, Antônio Bispo
com seus dados viciados, e Clímaco, o que trabalhava em madeira, em chifre e
até em marfim.
Já “História de Carnaval” é uma obra
prima sobre o tema. Narrativa em que Maria dos Reis, Teodoro e Antonieta formam
o trio principal de protagonistas, coadjuvado por Dona Marocas. O drama desse relato, que acontece no
carnaval baiano, apresenta-se com sectária rigidez ligada ao machismo,
contrapondo-se nessa condição aos sentimentos puros do sonho e da emoção.
Escrita sob encomenda, a inspiração da história aflora com toques de alegria e
em sequência se transpira no drama ritmado nas relações conflitantes,
terminando de maneira dolorida.
Então as Felizes Borboletas cantaram ainda mais
alto, tão alto, que Maria dos Reis não pode fingir
que não ouvia e teve que parar para olhar, apertar
os lábios para que os soluços não rebentassem.
(pg. 36)
“As mortes e o triunfo de Rosalinda” é uma história
que Jorge Amado dedicou ao amigo Campos
de Carvalho, autor dos romances A Lua Vem da Ásia (1956), Vaca de
Nariz Sutil (1961), A Chuva Imóvel (1963) e O Púcaro Búlgaro
(1964). Esquecido pela crítica a princípio, esse romancista de romances
transgressivos foi valorizado tempos depois como importante da ficção
contemporânea. Riqueza do vocabulário, linguagem com precisão semântica,
agilidade nas frases bem construídas, períodos longos a serviço de uma
narrativa inovadora, com enredo pouco convencional, são as marcas que Campos de
Carvalho imprime em seus romances construídos com elementos estruturantes
avançados.
Na dedicatória de “As mortes e o triunfo de
Rosalinda”, Jorge Amado refere-se ao amigo como mestre jovem da literatura
contemporânea. Alude ao estilo realista-anárquico desse autor considerado como
possuidor de uma linguagem carnavalesca, comparado às vezes com um clown, tanto
o insólito é tomado pela ironia, doses engraçadas de humor e ácida alegria na
crítica.
É visível a experimentação que Jorge Amado
empreende na linguagem da história “O triunfo e as mortes de Rosalinda”. Não
lembra a entonação de sua linguagem simples, espontânea, que prende da primeira
à última página, sem esforço. No fluxo verbal de seu
discurso, agora um tanto diferente do que nos acostumamos, o assassino confesso
de Rosalinda conta as diversas vidas e as múltiplas mortes dessa mulher
incrível, que se reinventa em várias ocasiões, ao mesmo tempo como dona de
casa, madre superiora e dona de prostíbulo, além de ter sido amante do
patriarca de Alexandria.
No entendimento de Jorge Amado, a narrativa “De como o mulato
Porciúncula descarregou o seu defunto” pode ser considerada como uma história
para cachaça comprida, noite de chuva, ou melhor, para uma viagem de saveiro,
em noite de lua. A história é contada por Porciúncula, mulato que se apaixona
por Maria do Véu, que nunca quis dormir com ele.
Esse Porciúncula
era o mulato mais bem falante que eu conheci, o que é muito dizer. Tão cheio de
letras, tão de maciota, que, não se sabendo de seus particulares, podia-se
pensar ter ele alisado banco de escola, quando outra escola não lhe deu o velho
Ventura senão a rua e a beira do cais. (pg. 70)
O último conto dos cinco reunidos
no volume de bela confecção gráfica é “O episódio de Siroca”. Zélia Gattai
informa que Jorge Amado inspirou-se em Siroca com a empregada de sua filha, uma
pouca maluqueta, que um dia sumiu. Espontâneo na linguagem solta, na narrativa
que se descarrega com lances intrigantes, à primeira vista incoerentes, Jorge
Amado usa também o diálogo como recurso pertinente para conduzir a história com
seus personagens chegados a umas maluquices, ora irritantes, ora
incompreensíveis. Na Bahia Siroca namora Bóris, moço com a fama de boca de mel,
com ele provando de febricitantes ternuras, beijos demorados, que provocam
intenso prazer, em especial quando visitam com a língua como brasa o bico dos
peitos. Ela deixa que o Boris faça tudo com ela, menos se atrever a arrancar os
tampos da virgindade, “tire a mão daí, tem dono.” Guardava-se para o
eletricista José Daniel, que retornara ao Rio, dando a ordem de lá para ela
voltar de Salvador para junto dele, prometendo que ia se casar com a amada. A maluquice da história segue o seu percurso
para o final quando Siroca pede a Boris para ajudá-la a fugir da patroa Nazá, a
madrinha, que não se cansa de perguntar à afilhada se ainda continuava virgem,
chegando ao ponto de fazer o exame com o médico para tirar a dúvida. Boris
ajuda Siroca a fugir para o Rio para se encontrar com José Daniel, na
expectativa de que sua virgindade vai ser arrancada por ele, era só querer.
Jorge Amado escreveu mais três histórias de ficção breve: O
milagre dos pássaros (1979), O gato Malhado e a andorinha Sinhá
(1976) e O goleiro e a bola (1981). A primeira dessas insere-se na
linhagem do realismo mágico, já a segunda
é uma fábula, a terceira destina-se ao leitor infantil.