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quinta-feira, 26 de setembro de 2019





São Paulo

Cyro de Mattos

Para Samuel Penido,
em memória

            O Brasil é uma nação com várias nações dentro de seu território de dimensões continentais. Encontramos em São  Paulo todas essas nações brasileiras com pessoas vindas dos lugares mais distantes do País. Nessa cidade com uma superpopulação sempre crescente ouvimos, diariamente,  vozes estranhas,  costumes vindos  de povos que possuem  tradições das mais singulares.
          O homem do interior que pisa pela primeira vez nessa aldeia global fica como peixe fora d’água. Impressiona-se com a paisagem feita de cimento e aço, de grandes edifícios, que buscam as nuvens mais altas.  No asfalto, pneus cantam,  o homem passa anônimo e veloz nessa forja gigantesca que nunca descansa.
       Corre no tempo que nessa cidade  trabalho e dinheiro andam de mãos dadas.  O homem aqui tem que ganhar dinheiro com unhas e dentes numa maratona suicida.  O coração financeiro da cidade é a Avenida Paulista  com o seu modo intenso de estipular o mundo.
      Riqueza e pobreza são vizinhas em São Paulo. Ao céu aberto e nas galerias, elas estão juntas, vivem em seu ritmo tumultuado.  Soltam fumaça nas fábricas com suas inúmeras chaminés, que tornam o sol pálido, as nuvens cinzentas e o ar que tosse constante. Prenhe de detritos, o Tietê percorre a cidade na descida triste inventada por  bocas de vômito. Um rio com sua mágoa desce  no curso viscoso, pulmões quase sem ar nas águas escuras, , como a dizer SOS São Paulo antes tarde do que nunca.
Falam que o ser humano em São Paulo está  prisioneiro  num tempo de bruma. Diluído na multidão. É um partir que não chega, um caminhar sem parar. Hospitais,, escolas, igrejas, fichários,, descargas de fumaça, lá se vai o fiel habitante sem bagagem e com suas armas que comovem.  Nas esquinas, bares, restaurantes, , danceterias, madrugadas. Nos motéis com fumos, com cio, álcool, drogas. Colmeia gigantesca, aqui o homem tem a língua presa na sua ânsia de falar com solidariedade e doçura.  Esse homem sem nome na selva de pedra.  No shopping  center, no subsolo, na Avenida São João,  no estádio, no metrô,  no supermercado,  na fábrica, no elevador. O homem e seus dentes de fera naquele velho aprendizado de ter uma vida com sobras.  Nessa cidade onde o povo é fluxo e refluxo em torno de si mesmo, tão luta.
O homem tão do mundo, vivendo o seu medo na cidade enevoada.
Você acha um lugar ao sol na praça, onde os pombos fazem uma bela aparição. Igual à Cinelândia, no Rio de Janeiro. Os pombos fazem uma bela formação, baralham em festa tormentas, suavizando o animal insano, o desarmado pedestre, o audaz andarilho diário em seu estado de graça.


·        

domingo, 22 de setembro de 2019







          Homem Insuportável

Cyro de Mattos


Não que fosse cheio de rancor. Depressivo, pessimista.
Alimentada era a alma com as coisas boas da vida.
Só que ninguém queria chegar perto dele para um dedo de prosa. Vizinhos evitavam  encontrá-lo. Não queriam cruzar com ele  no mesmo passeio.
A pobre mulher faleceu daquele odor horrível. Generosa, sacrificada. Uma santa, os vizinhos comentavam. Durante anos suportar o cheiro mal-cheiroso do marido. 
Comigo ninguém pode, nem percevejo nem bode, dizia contente, sorrindo.
Acostumado  à solidão da casa.
Desde pequeno o pavor de água. A mãe empurrava–o para o banheiro aos gritos. Ameaçava-o com os piores castigos.  Resistia até quando podia. A presença do pai com a taca na mão intimidava-o. Ficava sem saída. Um horror quando a água do chuveiro batia na pele fétida. Chorava alto.
 Quando ficasse grande, sairia de casa para não sofrer o castigo diário. Banho de água fria ou quente nunca mais. 
 Jovem, em plena força da idade, cada dia mais distante de um banho para refrescar o corpo no verão. Demorava dias. Mesmo que fosse rápido. Num abrir e fechar de olho. Resistia.
O cheiro insuportável aderindo à pele, grossa como casca de madeira,  com o lodo dos  anos passando, encrespando, cascuda. 
Aproveitava o calorão do tempo abafado como numa estufa. Passeio sob o sol a pino.  Voltava para a casa com o corpo molhado de suor. Tirava a roupa, torcia a calça, a camisa. Deixava aquele caldo oleoso ir caindo da roupa  na bacia. Aí, sim, jogava-o no corpo aos poucos.  Não se enxugava. Lograva com isso  o suor extraído  do corpo,  suficiente para banhá-lo como se água fosse. 
No ônibus ninguém se aventurava a ficar perto dele. Passageiros espirravam. Tapavam o nariz. Alguns esbravejavam.
Urubus ficavam assanhados no telhado, pressentiam que ele circulava entre os cômodos da casa.
          Os vizinhos nem conseguiam mais dormir.
          Achou conveniente ir morar na cadeia. Conviver com aquela gente imunda. Como ele. Certamente não gostava de tomar banho.
          Os presos fizeram greve de fome. Exigiram que saísse o mais breve da cadeia. O mau cheiro vindo de sua cela deixava todos eles enfurecidos, gritando, ameaçando-o de morte.
          Sem querer mais transtornos, decidiu morar  nos arredores da cidade. Lugar solitário. Somente ele, ninguém mais. Junto do lixão.
Teve um dia que trancou portas e janelas. E lá dentro,  no escuro, permaneceu  para sempre. Protegido dos clamores, ameaças, xingamentos. Em seu reduto intransponível. Somente ele com a fedentina do  corpo.
Deleite das horas,  absorvidas com o maior prazer.        



sexta-feira, 13 de setembro de 2019



Literatura Infantil e Juvenil Baiana

Entrevista a Cyro de Mattos por Normeide  Rios,
Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana.


Normeide Rios - Como o senhor se tornou escritor? O que o motivou a escrever para crianças e jovens?
Cyro de Mattos - Publiquei  meu primeiro conto “A Corrida” no suplemento literário do Jornal da Bahia, editado por João Ubaldo Ribeiro, em 1960. Daí para cá nunca mais parei. Meu  livro de estréia foi Berro de fogo, contos, em 1966. Está riscado de minha bibliografia porque seu texto envelheceu em pouco tempo. Pelo menos serviu para deflagrar meu processo criativo. Escrever começou assim  na adolescência e se fez dentro de mim fundamental como o amanhecer. Ainda que seja um grão no deserto, escrever é a minha maneira de inaugurar sentidos, estar sozinho e solidário num só tempo,  dizendo silêncios. Este é meu  lugar onde arrisco tudo. Agradeço à ternura que herdei de minha mãe  a inclinação para escrever livros infanto-juvenis. Quando já tinha escrito uma vintena de livros para adultos, aconteceu no escritor idoso o menino acordar  e pedir  que eu escrevesse para crianças e jovens. Tudo foi de repente, sem programar nada. Não sei explicar. De uns vinte anos para cá, tenho escrito para crianças e jovens.  Vem dando  certo, com prêmios importantes e reedições sucessivas de livros.

Normeide Rios - Existem diferenças entre escrever para adultos e escrever para crianças e jovens?
 Cyro de Mattos - O livro para adultos tem suas características próprias, sua técnica, espaço, tempo, lugar  e modo. Tratamento e abordagem que o diferem da obra escrita para crianças e jovens. O livro infantojuvenil possui  universo criativo específico, com suas nuances, linguagem, ritmo, psicologia. Mas livro bom é o  rico de sentidos, servindo  para idosos e pequenos. Convenhamos que Kafka, Pessoa, Jorge Luís Borges, Eça de Queiroz e Machado de Assis, entre outros, que eu saiba não escreveram seus livros importantes  para crianças e adolescentes.  Não é o caso de Bartolomeu Campos Queirós, Ana Maria Machado, em parte Monteiro Lobato, esse que veio para encantar e morar  no coração de crianças e jovens. Para não se falar em Cecília Meireles  com o  seu admirável Ou isso ou aquilo .

Normeide Rios -  O que é preciso considerar para escrever para o público infantojuvenil?
 Cyro de Mattos -  A psicologia do que se pretende dizer deve  emergir e corresponder às razões e emoções da criança e do jovem. A linguagem ser clara, sem perder o poético. Ternura, graça,  ritmo ágil, rima cativante. Na prosa uma história que prenda do princípio ao fim, como aprendi em minhas primeiras  leituras das revistas em quadrinhos, os meninos de meu tempo chamavam guri e gibi. 

Normeide Rios -  O conceito de literatura está sempre mudando, de acordo com o contexto histórico e cultural. Qual é a sua visão de literatura? O que é literatura?
Cyro de Mattos - Forma de conhecimento da vida através dos sinais visíveis da escrita. Não resolve os problemas econômicos, políticos, sociais e religiosos. Mas torna a vida viável e viver  sem ela é impossível.  Meu livro de crônicas  Alma mais que tudo traz esta epígrafe  retirada de Drummond: Se procurar bem, você acaba encontrando/ Não a explicação (duvidosa) da vida/ Mas a poesia (inexplicável) da vida. Se quiserem, é como digo neste poema mínimo: Poesia. Meu amor. Minha dor. Ó flor.

Normeide Rios -  O que é literatura infantojuvenil?
Cyro de Mattos - Caminhos da escrita que se abre para a formação de uma mentalidade em crescimento. Dá prazer, faz sorrir, viajar na infância ou juventude, enriquece e nada toma em troca. Como a que é feita para adultos,  sua matéria são as palavras - o pensamento, a ideia,  a imaginação – estando ligada diretamente a uma das atividades básicas do indivíduo em sociedade: a leitura.  Busca alcançar o leitor iniciante para uma formação integral, em que entra o eu mais o outro mais o mundo. Seu espaço, como se vê, é o da iniciação à vida,  que  cada um deve cumprir e viver em seu meio social.  

Normeide Rios - A literatura direcionada a crianças e jovens durante muito  tempo foi marginalizada por ser considerada um gênero menor. Qual a sua opinião sobre isso?
Cyro de Mattos - Esta é uma visão que se ressente de perspectiva crítica. Um grande equívoco, preconceito calcado em uma ótica  de que o que vale é o sujeito adulto, criança e jovem ainda não são gente, seu universo pouco tem a dizer, dado que superficial e  inconseqüente.  Isso é um absurdo adotado pelos distraídos  que ainda não perceberam que a verdadeira evolução de um povo se faz ao nível da consciência  de mundo, situações  e circunstâncias   que cada um vai armazenando  desde a infância.  

Normeide Rios - Apenas recentemente a literatura infantojuvenil começou a abandonar o vínculo com a pedagogia, que a marcava desde o seu surgimento, e buscou se afirmar como arte literária. Como escritor de obras literárias para crianças e jovens, quais as suas considerações sobre a relação literatura infantojuvenil, pedagogia e arte?
Cyro de Mattos - O livro predisposto a fazer a cabeça da criança e do jovem revela deformações flagrantes. Tal predominância parece-nos sem sentido. Estamos com Nelly  Novaes Coelho quando diz que  a Literatura, em  especial a infantil, tem uma tarefa fundamental a cumprir nesta sociedade em transformação: a de servir como agente de formação, seja no espontâneo convívio leitor//livro, seja no diálogo leitor/texto estimulado pela escola.  A escola é hoje o espaço em que a relação entre o leitor e o livro mais se desenvolve na descoberta do eu mais o outro mais o mundo. Natural que  os princípios ordenadores da vida  neste espaço  transmitidos contribuam para motivar o acontecimento de uma nova civilização. De outra parte, a literatura infantojuvenil é arte que se faz com engenho e linguagem sedutora.  As relações de aprendizagem  e vivência  são fundamentais nesta perspectiva que nos informa ser somente ela, como a que é feita para adultos,  capaz de devolver à criatura humana o que é próprio  da criatura humana: inteligência e sentimento.

Normeide Rios -  E sobre a tríade autor-obra-leitor?
Cyro de Mattos - Ninguém escreve  um livro para ficar no fundo da gaveta.  O autor  pretende com o livro transmitir uma experiência de vida e estabelecer uma dialética de tácito entendimento com o leitor pelas vias e arredios do ser, entre o  belo e o feio,  o alegre  e o triste , o riso e o rancor,  o amor e o ódio, a aventura e o risco, a vida e a morte.

Normeide Rios -  Como autor, de que forma o senhor busca interagir com o seu leitor?
Cyro de Mattos - Comprometido  com as verdades essenciais do ser humano. Cheio de sonho.

Normeide Rios -  Como é o processo de criação de suas obras literárias infanto-juvenis? Quais os elementos que o senhor considera essenciais para garantir a qualidade artística das produções?
Cyro de Mattos - É uma viagem gratificante sob os instantes do menino e  jovem. Retorno ao tempo colorido  do  antigamente, que já vai longe. Reúno  pedaços da infância  e adolescência que os homens  trancaram na alma.  Noto  que os componentes estruturais do texto resultante desta pulsação  do coração  devem corresponder ao mundo da criança ou do jovem. Tanto na forma como no fundo. Entra nisso  como ingredientes importantes   a espontaneidade e  a habilidade, que o autor deve possuir na criação de  um livro de poesia ou prosa de ficção para crianças e jovens. A expressão deve se manifestar com simplicidade  no aparentemente fácil.   .

Normeide Rios - Como aconteceu o seu primeiro contato com livros literários? O que costumava ler na infância e adolescência?
Cyro de Mattos - Quando era pequeno comecei lendo revistas em quadrinhos. Descobri  Júlio Verne, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Poe e Dickens na biblioteca de seu Zeca Freire,  o dono da farmácia em minha cidade natal, e também na livraria e papelaria  A Agenciadora.. Quase adolescente fui estudar interno em Salvador, e, na biblioteca do Colégio Maristas,  foi a vez de ler Castro Alves, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, José de Alencar, Humberto de Campos e Machado de Assis. Ingressei na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia  e nesse tempo gostava de visitar pela tarde a Livraria Civilização Brasileira, na Rua Chile. Sedento, buscava ali o pote da leitura.  Foi o tempo do conhecimento  de Dostoiewski, Tolstoi, Checov, Katherine Mansfield, Sartre, Kafka, Pessoa, Brecht, Joyce, Faulkner,  Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Adonias Filho, Lúcio Cardoso, José Lins do Rego, Jorge Amado,  Autran Dourado, Aníbal Machado, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Mário de Andrade,  Drummond, Cecília  Meireles, Cassiano Ricardo, Jorge de Lima,  entre tantos admiráveis escritores  que me ensinaram a  ver melhor a vida,  equilibrar-me entre vazios,  crenças e verdades,  que se formavam  tecidas com  os fios eternos do imaginário. 

 Normeide Rios -  Qual a sua opinião sobre a atual produção de obras para crianças e jovens?
Cyro de Mattos - Muita boa, digna de qualquer literatura no mundo. Lembro Bartolomeu Campos Queirós, Elias José, Ana Maria Machado, Lígia Bojunga, Sylvia Orthof, Mário Quintana  e outros. Entre nós baianos, gosto da literatura infantojuvenil de   Gláucia |Lemos..

Normeide Rios -  No panorama nacional, como se posiciona a produção de escritores baianos?
Cyro de Mattos -  Há quem diga que a melhor poesia brasileira está sendo feita hoje no Nordeste e, em especial, aqui na Bahia. Concordo. Ressalto que contistas e alguns romancistas daqui são também  de qualidades insuspeitadas.  A literatura brasileira está entregue hoje em boas mãos aqui na Bahia. Não entendo por que ainda  não se escreveu uma crítica e ampla   História da Literatura Baiana, de Gregório de Matos aos tempos atuais. Seria um projeto para ter o apoio do   Governo do Estado,   executado  por um corpo  de professores universitários e autores expressivos, que preencheria  certamente uma  omissão no mínimo lastimável.     

Normeide Rios -  Suas obras infantojuvenis são produzidas tanto em verso quanto em prosa. Há predileção do autor entre essas duas formas de escritura?
Cyro de Mattos - Sinto-me à vontade na prosa como no verso. Quem determina se prosa ou verso  é o assunto, o momento,  a inspiração ou seja lá o que for. 

Normeide Rios - Cyro de Mattos recorre a lembranças da infância e da adolescência para criar seu mundo ficcional? Pode-se dizer que Histórias do mundo que se foi é um livro de “memórias da infância”?
Cyro de Mattos - A infância é uma das vertentes de minha  poesia para adultos, da prosa de  ficção para crianças e jovens. Como acontece em Histórias do mundo que se foi, “memórias da infância” transfiguradas como ficção podem ser encontradas também em Roda da infância, novela que está acabando de sair do forno da editora  Dimensão, e O Menino na memória, pequeno romance juvenil ainda inédito. 

Normeide Rios -  O menino e o trio elétrico é a história de um sonho que se realiza, mas é também uma narrativa que aborda questões culturais e diferenças sociais. Houve o objetivo de fazer denúncia social? Qual o papel da literatura infantojuvenil frente aos problemas sociais e econômicos presentes na realidade do leitor?
Cyro de Mattos - Não tive intenção de fazer denúncia social na história triste do Chapinha com final  feliz. Do texto escorre  humanismo social entrelaçado  com a poesia da vida. Não forcei nada. Simplesmente busquei representar o real  com ternos sentimentos de mundo, ser  coerente frente aos problemas e contradições do carnaval  hoje em Salvador. Alguns críticos disseram que fui o primeiro a trazer a realidade aguda do carnaval de hoje, em Salvador, para a literatura infantil, numa história bem concebida,  escrita com espontaneidade, solidariedade e amor.  


     * Entrevista concedida à professora Normeide Rios, da Universidade Estadual de Feira de Santana,  incluída na tese de mestrado Os caminhos da literatura infanto-juvenil baiana: em sintonia com o leitor, apresentada na Universidade Estadual de Feira de Santana, aprovada com distinção e louvor. A dissertação foi publicada como livro pela Editora da Universidade Estadual da Bahia – EDUFBA.         

sexta-feira, 6 de setembro de 2019





  ABISMO DA RAZÃO
                     
                          Cyro de Mattos

Do lado de lá, nas terras longes, o homem irascível, bigodinho nervoso. Acabava de instalar  o império do medo. Desejava ser o dono do mundo, montado na crença da supremacia da raça branca. Dos mais sofisticados, em alta escala, os armamentos bélicos. Milhões de criaturas indefesas reduzidas  a cinzas nos fornos crematórios.
           Anos de fogo, sombras, pesadelos. O mal sem limites.  Corpos usados para expe­riências absurdas. Mães separadas dos filhos, maridos das mulheres. A terra virada no inferno. Milhões de inocentes eliminados sem dó, na enchente a morte. A liberdade recuada para os subterrâneos mais  indignos.
         Sirenes, bombas, torpedos. Explosões, cra­teras, escombros.  A fera ressurgia da antiga caverna, assoberbada galopava nas trevas. Não concedia  a trégua, bania a razão para os confins inimagináveis do abismo mais profundo.  A vida nutrida de fúria galopava  na engrenagem monstruosa do absurdo, o elogio de nadas,  tudo sem sentido. Orgulhoso o hominho irascível,  inundado de prazer, sorrindo de contente com o  holocausto, rostos de penúria, estilhaços de gente por todos os cantos.
         No final,  o triunfo do amor. Solda­dos uníssonos no campo da vitória. Retirada do estúpido  abismo,  de forças dementes   a razão açoitada no gesto vil, a pobre coitada ainda resistia.  Encerrada com os corpos de  pessoas fuziladas, o tenebroso acúmulo de ossatura, o teatro fétido  nos  odores da morte, empilhada nos canais enormes.  
         Grande passeata  pelas ruas do lado de cá, gente grande e  pequena  dando vivas à liberdade.  O sorriso que alarga o rosto apareceu na rua de barro batido,  os habitantes da cidade pequena em euforia incontrolável.  Bombas inimigas caladas para sempre. Já não existem mais as horas do mundo cheio de grito e agonia. Os sinos tocando sem parar a canção constante da paz, antiga, belíssima, irradiando bondade e alegria.  
       Acreditava-se nos dias promissores. O homem redimido agora, renascido da razão,   nervos fraternos, sentimentos do amor. Cânticos emanavam do peito o bem supremo da felicidade. Não mais o coração esmagado sob as patas impassíveis de manadas enfurecidas. Nos ares libertos da opressão, bemóis da  cantiga geral  da união como verdade.
     A praça,  um bloco extenso de gente, comoventes olhos brilhavam na direção do homem fardado no palanque. De volta da guerra, o rosto do herói numa máscara feita de tecidos sólidos. O locutor chamou  o  guardador dos ramos da vitória.  Entregou-lhe o microfone. “ Comece, por favor,  estão ansiosos para ouvir seu relato sobre o horror.”  O homem disse para o locutor, tinha o   olhar imóvel  diante da multidão,  soltando murmúrios, o vozear confuso,  “não posso”.   “Faça um esforço”, retornou  o locutor, animando-o.  “Não tenho palavras para descrever o terror. ” Acrescentou, mastigando as palavras, “é impossível”.   O locutor ainda perguntou, “não tem palavras?”  O herói fez um esgar medonho,  deixou todos com a expressão no assombro diante do silêncio impassível.  Com dificuldade,  confirmou,  “perdi as palavras nos anos de fogo e bombardeio.”  
           A multidão frustrada, gente triste rumo às suas casas, passos pesados, arrastados, em silêncio, rostos para o chão. Uma procissão de almas penadas,  visagens de outro mundo.  O herói  havia ajudado esmagar uma mulher diabólica, que arrasa os sonhos, bombardeia projetos, dizima a maravilha, mata a esperança, tritura a ternura, no lugar põe o abismo, que engole a razão sem remorso.  Com sua corrida desembestada, pisoteia tudo que nasce do amor.  Era importante ouvi-lo. Inútil sua palavra congelada. Imprestável para relatar o terror.  Sua razão não tinha sã consciência para descrever a imensa desgraça que viveu no pior abismo.