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segunda-feira, 24 de junho de 2019

        


            O Parceiro Ângelo Roberto
                        
                    Cyro de Mattos

          
         Consagrado desenhista baiano, Ângelo Roberto nasceu em Ibicaraí, antiga Palestina, Sul da Bahia, em 1938. Estava  radicado há décadas em Salvador. Pertenceu à geração de Glauber Rocha. Figurou nas famosas Jogralescas, movimento estudantil com encenação de poetas modernos, dirigido por Glauber Rocha, no Colégio da Bahia (Central). Cursou a Escola de Belas Artes da UFBA. Participou de teatro amador, desenhou cartuns, fez ilustrações para jornais, revistas e livros de autores importantes da Bahia. Muitas exposições individuais e coletivas, no Brasil e exterior. Compareceu às duas Bienais Nacionais de Artes Plásticas na Bahia. Expôs individualmente no Museu de Arte de São Paulo (MASP). Possui alguns prêmios de cartazes em salões universitários. É autor de várias apresentações de filmes de curta-metragem, tendo participado de alguns deles como ator.
Tive a sorte de ser amigo do Ângelo. Deus possibilitou nosso encontro na jornada da vida. Ele ilustrou vários dos meus livros. Foi  um parceiro fraterno,  que com seus desenhos de fina criação e conteúdo humano valoroso enriqueceu meus livros. Cito  A Casa Verde e Outros Poemas, Oratório de Natal, infantil, Poesie Brasiliane della Bahia (Poesia Brasileira da Bahia), publicado na Itália, Alma Mais Que Tudo, crônicas, e O Mundo É Uma Criança com  Palhaço e Lambança, ainda inédito, com projeto para ser publicado  pela editora baiana Kalango, neste ano.
Homem  simples, estimado no círculo de escritores e artistas baianos. Indiferente às traiçoeiras invenções da inveja.  Abria meu coração de alegria quando enviava as ilustrações  que iam figurar em algum dos meus livros.  De uma boa vontade que chamava a atenção pela repetição costumeira.   Sem querer nada de volta, a não ser o prazer que tinha  em fazer circular com o meu texto a beleza de sua arte. Tinha sentimentos dignos, inseridos,  sem esforço,  em seus desenhos para acender a luz do amor na inocência e no drama.
Foi um dia com as cores ressentidas de pesar  quando soube que o amigo Ângelo  havia nos deixado para  morar em outras paragens,  as quais no lado dos que ficam  expandem-se em mistério e no esquecimento. Aquele homem solidário, de boa prosa.  Quando se encontrava comigo em algum lançamento de livro  em Salvador,  na Academia de Letras da Bahia, por exemplo,  gostava de reviver  suas raízes provindas de Ibicaraí. Lembrava parentes e velhos amigos, gente que conviveu com ele na cidade natal, em tempo de infância. A conversa ficava animada e tomava ares de saudade incontornável  quando se dava com Mariza, minha esposa, sua conterrânea,  da mesma geração dele no chão de nascimento.
Tomo conhecimento que Marlene, a esposa de Ângelo, com a filha Naia,  teve a iniciativa de homenagear em boa hora a memória desse saudoso amigo, com a publicação póstuma de seu livro O Mistério do Arco-Íris, uma fábula para o público infantil. Ângelo diz na  escrita com os ares da pureza  que a  vida  só é possível com a amizade. Viável com os dias solidários, cheios de esperança.  Fiquei surpreso quando vi que  na última página desse pequeno grande livro consta o registro seguinte: “Ilustrador de mais de dez livros  de poesia e prosa do velho amigo, o escritor Cyro de Mattos, acredita (Ângelo)  que o fato de ilustrar seus  livros infantis, lhe deu a coragem para  retirar da gaveta esta velha história do arco-íris.”
          Claro que fiquei lisonjeado com a revelação do parceiro.  Se o Ângelo, em vida,  tivesse me dado para ler O Mistério do Arco-Íris,  não hesitaria em dizer-lhe:  “Amigo Ângelo, escreva mais livros para crianças, você sabe das coisas.” Encanto e graça nas asas da beleza,  foi o que eu senti quando fui arrastado pela  história de  O Mistério do Arco-Íris.  Os desenhos criativos como sempre dão  a sensação de pessoas se movendo num cenário vivo,  de tons que fazem bem aos olhos, de  rostos  nos  quais emanam  momentos  do riso,  de um lado, e, no outro, acalmam com a leveza dos gestos.     
        Conhecia Ângelo Roberto como desenhista dos bons,  o poeta do traço, como era chamado,  de fina  forma e conteúdo pontuado de lirismo.  Com O Mistério do Arco-Íris eis que passo a conhecer o autor de uma história interessante destinada à criançada,  mas que serve para o adulto amante de poesia  em prosa delicada,  ritmada de afeto e surpresa agradável. Delícia. 

*O Mistério do Arco-Íris, Ângelo Roberto, Pimenta Malagueta Editora,  Salvador, 

quinta-feira, 6 de junho de 2019






Pássaro Acauã

                                                                   Cyro de Mattos


 O canto agourento quando canta no galho seco. Cruz-credo, não sossega, com que insistência magoa o peito. O tempo anuncia com estiagem demorada, canta perto e longe. Céu de fósforo o amanhecer, forno quente no poente. Bocas na amplidão de fome e sede. Os pais, a mulher, os filhos pequenos, todos ouvindo o canto atanazado, ferindo os tímpanos. Manhãs e tardes. O pai: Não esmoreça nem desespere. Espere   que cante no galho verde. Lembre disso: No galho seco é do demo. No verde, canto bendito, o melhor tá pracontecer. O céu junta fiapos de nuvem no começo. Não demora de escurecer o teto. Vem chuvisco de primeiro, chuva de segundo, no fim aguaceiro. Relâmpago, trovão, temporal. Vento valente vira vendaval. Terra e água, uma só liga, mundéus. Quando o sol então abre o olho, a flor brota do chão humoso. Tronco morto vira árvore, o gavião rei amanhece. Pelos ares circulam  cantos, nas folhas o brilho dos pingos, no seio da natureza generosa tudo é festejo.
         Atravessar males da estiagem, ouvindo o canto agourento, veja que Deus tarda,  mas não falha, eis que um dia vem cantar no galho verde. Bom lembrar que acontecerão as  flores,  virão pra compensar os sentimentos esvaídos quando o canto é triste, repetido. O pai ouviu isso do avô, que ouviu do bisavô, que ouviu do trisavô, que ouviu do tetravô, que ouviu do tempo infindo.
         Crendice besta de velho sem juízo. Fizera pouco dos ditos, os ouvidos entupidos praquele tipo de iludição. O que existe mesmo pro pobre é trabalho muito e o pouco de-comer, vidas secas, destino. Pobre nasceu  pra ter na vida só secura, foi o que se deu com o pai, a mãe, os irmãos pequenos. Como dói olhar as cruzes deles nas covas junto do lajedo. Lembrar dos corpos com pele  e osso. Olhos mortiços.  
         Agora enfrenta essa estiagem braba há quase um ano. Nada pode fazer. Como brasa céu e margem. A história novamente acontece. Canto, encanto, desencanto. Frutos murchos, folhas mortas, choro oco, grito sem eco. Ele e o deserto, só deserto. Ares da morte nas pedras, tocos, troncos. Diabo de canto resinguento. E ainda o coro dos filhos nos  pedidos: “Tou com fome, tou com sede.” Surdo ele, muda a mulher. O coração de cada um doendo, a fome roendo nas tripas.
         Quem tem medo de acauã?
            Rumores, clamores, tremores: humanos anseios. Sonha com a chuva, no íntimo querendo ver a flor, o fruto,  pegar o verde. Inundar o olho alegre pela terra como brasa verdejante, de tanta beleza e brilho.  A-c-a-u-ã, a-c-a-u-ã, a-c-a-u-ã, o canto do Cão no arvoredo seco. Tenso apalpando, segue ouvindo, desespero no corpo, raiva  marca o ritmo da mente. Mira perfeita, dedo no gatilho, a bala bem no peito.do bicho. Como se saísse pela goela seca, latejando  ódio, vendo o bicho cair junto aos pés. Troço nojento, tão ruim quanto veneno!
         Quem falou que emudeceu? Na serra, baixada, jaqueira no terreiro. Depois do acontecido, mais cantou. Que estranha magia rege este canto secreto? Psiu, veja, homem de Deus,  chuvisco, daqui a pouco chuva, em pouco tempo aguaceiro. É mesmo?
         De cara virada  para o céu, chumbo, a chuva como chumbo  batendo na terra, o pai não disse? Esqueceu? Por que não quis ouvir o que os mais velhos bem conhecem? Encharcando-se, sentado no cepo do ipê,  lambendo os pingos. Do estômago à boca há um  gosto diferente. Sal de lágrima misturada com a água que cai do céu. Escorre  bendita por entre rachaduras, noites mal-dormidas. Ele todo febrento. Não é que o bicho cantou no arvoredo verde? Enfim, os olhos com visões alegres: capim chovido, a natureza toda alaridos.
         Solitário, cabisbaixo, a tristeza de dentro dele quer saber:  O que é, o que é, põe o sol como hóspede no arvoredo seco,  esperança no galho verde quando quer?
 A noite  envolve o casebre com as paredes de adobe exalando o cheiro de barro molhado. Ferrado no sono. Decerto um  canto propaga-se no sonho, atravessa caminhos sob o silêncio da noite turva. Preserva o mistério das falas. Sabe o flagelo do sol, o prazer da chuva.
De jejuns, de água. Desencanto ou encanto. Lá fora quieto. Por enquanto.  


terça-feira, 4 de junho de 2019


                 


                Euclides Neto e Seu Romance  Machombongo  
          
                                Cyro de Mattos


          Se com o romance Comercinho do Poço Fundo ( 1979) e a novela Os genros (1981) o ficcionista Euclides Neto passa a ocupar um lugar de destaque na expressiva literatura da região cacaueira na Bahia, é com o livro Machombongo (1986) que o escritor de Ipiaú consegue realizar a sua obra de ficção mais bem estruturada em termos de novelística moderna.
          Escritor que dá, em alguns de seus romances, um testemunho significativo de acontecimentos e vivências nas terras do cacau, outrora ricas,  registrando emoções, expressões e cenas típicas de uma realidade que tão bem conhece, Euclides Neto não coloca no coração do camponês a alegria que ele não possui. Não caminha também por certo regionalismo espiritual em que as impressões colhidas pelo ficcionista vão formando o clima da história, a atmosfera que sustenta a narrativa, deixando num plano secundário o ambiente onde os personagens vão mover seu drama.
        Euclides Neto não transfigura a realidade da região cacaueira na Bahia e nesta não instaura um império de tragicidade por onde as criaturas terão de inexoravelmente cavar as próprias sepulturas. O seu compromisso é antes de tudo com a realidade social, de exploradores e explorados em torno da lavoura cacaueira, da terra que brota o seu processo econômico com novos aspectos nos tempos atuais.
             Escritor experimentado, fiel à problemática social de sua região, Euclides Neto evita a gratuidade de certo esteticismo regionalista. Com um estilo vigoroso, impregnado de oralidade, muitas vezes com a linguagem recriada de maneira feliz, o romancista em Machombongo mais uma vez mostra ser conhecedor de sua arte, da psicologia de sua gente, da condição de miséria em que populações abandonadas vivem em sua região. E com isso nos dá em Machombongo um romance que é o resultado bem-acabado de ficção imbricada na realidade, envolvendo aspectos sociais, econômicos e culturais do homem como animal político.
        Machombongo trata dos desmandos do deputado Rogaciano, homem prepotente e atrabiliário, fazendeiro de cacau e pecuária, que antes do golpe militar de 64 já possuía muitas terras, mas que foi ampliando seu império durante o tempo da ditadura, quando passou a ter ampla influência na vida dos habitantes de sua região, no sudoeste baiano. Romance poderoso, de tema atual, relato da escalada ao poder do deputado Rogaciano em um teatro típico, com suas implicações psicológicas do coronel da região cacaueira na Bahia.
          Romance que, se fosse assinado por Jorge Amado, teria certamente grande ressonância no Brasil e, como sempre, correria o mundo.


·        Cyro de Mattos é poeta e escritor. .