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quarta-feira, 24 de abril de 2013

Na Feira do Livro de Itapé

       Na Feira do Livro de Itapé

                  Cyro de Mattos
             
            Nasci em Itabuna. Lá, naquela cidade da outrora rica região cacaueira baiana, tive uma infância diferente de hoje na qual os jogos eletrônicos transmitem o prazer ausente de  sentidos e  valores na aventura da vida. Foi lá, naquela cidade com trinta mil habitantes,  que   tive a primeira escola, a primeira comunhão,  a primeira namorada, o primeiro Carnaval, a primeira gravata, o primeiro banho de rio, o primeiro São João. Joguei a primeira partida de futebol com os queridos amigos de infância.
          Fiz o curso primário em minha cidade natal. Cursei dois anos no Ginásio Divina Providência. Minhas primeiras leituras foram em revistas de quadrinhos, os meninos de meu tempo chamavam de gibi e guri. Nem sabia que com meus heróis inesquecíveis, Mandrake, Homem-Morcego, Tarzan,  Capitão Marvel, Super-Homem,Tocha Humana, O Fantasma, Flash Gordon, Roy Rogers, Príncipe Submarino e outros – estava entrando na morada dos sonhos para nunca mais sair.  No único ginásio da cidade conheci trechos das obras de Camões, Bilac, Eça de Queiroz, Machado de Assis e Ruy Barbosa. Tive os primeiros contatos com os clássicos de nossa língua, através do sujeito, predicado, objeto, adjunto adverbial e outros elementos gramaticais de análise lógica. Os primeiros livros que eu li foram da coleção O tesouro da juventude, de Júlio Verne, os de Edgard Allan Poe, Charles Dickens e Monteiro Lobato. Seu Zeca Freire, o dono da farmácia, emprestava-me os livros desses autores e incentivava para que eu não deixasse de ler outros, também importantes, como Machado de Assis e José de Alencar.   
            O menino do interior foi para Salvador,   como o pai queria,  para se tornar advogado. Na Capital  concluí o curso ginasial  no Colégio Nossa Senhora da Vitória, dos Irmãos Maristas, onde descobri histórias de Machado de Assis, crônicas de Humberto de Campos, romances de José de Alencar e poemas de Castro Alves,  na pequena biblioteca do grêmio estudantil. Fiz o curso clássico no Colégio Estadual da Bahia (Central). Meu professor de português, Antônio Barros, indicou-me uma lista do que julgava serem os cem melhores livros da literatura brasileira. Fui devorando-os na biblioteca durante os anos de estudante naquele colégio.                    
            Publiquei  o conto “A Corrida” quando cursava a Faculdade de Direito, em 1959, no suplemento literário do Jornal da Bahia, dirigido por meu amigo e colega João Ubaldo Ribeiro. De leitor passava pela primeira vez  para autor de uma história.   A sensação dessa passagem foi de pura alegria. Não parei mais de andar nesse caminho de dar palavra ao sonho.  Depois de escrever alguns volumes de contos e novelas  migrei para a poesia. De repente surgiu de dentro de mim aquele menino, pedindo que escrevesse também para crianças. Obedeci e tenho prazer quando brinco com as palavras e as crianças. Quero que esse menino nunca mais se afaste de meu pequeno coração,  que um dia foi trancado na alma com pedaços de infância pelo mundo dos homens, e  assim teve o gosto de uma fruta que acaba.   Fiz até um poema em que falo disso,  está no meu livro “O Marujinho Poeta”, ainda inédito.   Eis o poema:  

            





A Estrelinha

Achei uma estrelinha
Que caiu no mar
E veio dar na praia.

Perguntei pra ela:
- O que vale mais,
Brilhar no céu
Ou no vaivém das ondas?

Ela então respondeu:
-  O mundo me encanta
Quando brilho lá dentro
E nunca se apaga
Seu coração de criança.

         Hoje sou autor de uma dezena de livros, volumes de contos, crônicas, poemas e literatura infanto-juvenil, além de ser organizador de antologia. Tenho livro publicado também em Portugal, Itália, França e Alemanha. Alguns prêmios de expressão, como o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, o Nacional  Ribeiro Couto da União Brasileira de Escritores (Rio), o  da Associação Paulista de Críticos de Artes, o Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Genova, Itália, duas vezes, e fui finalista do Jabuti três vezes.
          Nessa estrada de solidão e solidariedade, a essa altura comprida, venho sempre me perguntando o que é literatura. Para que servem os livros? Muitas vezes já me fiz essas perguntas. Literatura é forma de conhecimento dos seres e coisas, da vida e do mundo, através dos sinais visíveis da escrita. É fundamental como o amanhecer. É linguagem representativa, condensada, de ricos significados. A literatura usa metáforas para provocar reações emotivas no receptor. Exemplo de texto não literário:  O  sol amanheceu quente neste verão. Vejamos o do texto literário: O bem-te-vi, batendo as asas, canta radiante  para o sol:  Bem-te-vi! Bem-te-vi!
              A literatura oral ou escrita  acompanha os seres humanos para devolver a eles o que  é próprio deles, ideais,  razões, sentimentos, desejos, vontades, imaginações, fantasias. Dar ao homem a possibilidade mais ampla de  conhecer a si mesmo, os outros mais o mundo.  Com a  literatura fico sabendo que estou inserido na natureza em contínua transformação. Sou um animal social compromissado com a história.
        Sinto que sou uma pessoa  quando começo a ler um livro,  outra quando termino a leitura. Com o livro, esse bom amigo que gosta de morar na estante,  passo a conhecer  tantos casos, tantas coisas. Viajo por terras tão distantes, falo com gentes diferentes, de todas as cores, alegres e tristes, ricas e pobres.   A  literatura pode ser concebida como adulta e não adulta. A literatura não-adulta indica tanto os livros infantis, destinados  a pré-leitores, leitores iniciantes e leitores em processo, como os infanto-juvenis, para os leitores fluentes e os juvenis, para leitores críticos. Na generalidade do conceito, a literatura não-adulta destina-se à criança, “o pequeno leitor, o ser em formação ou em processo de aprendizagem da vida e da cultura, para quem tal literatura é criada ou produzida”, como ensina no livro Literatura Infantil  a escritora Nelly Novaes Coelho, Doutora em Letras, Professora Emérita da USP.   
        Os críticos costumam dizer que  dificilmente o termo literatura poderá ser definido com exatidão devido à complexidade de sua natureza, que expressa  uma determinada experiência humana, através de linguagem específica. Mas não é preciso ser crítico para saber que cada época produziu e compreendeu a literatura ao seu modo Fez emergir do seu contexto histórias e poemas para  representar os seres e as coisas.  A literatura é fenômeno da criatividade humana,  é arte, a vida e o sonho entrelaçados na linguagem específica. E  a literatura infantil é literatura porque funde os sonhos e a vida circunstanciada,  a fantasia e o real, os ideais, ternuras,  sentimento e sua possível ou não realização.
            Há um equívoco quando se concebe  a criança como uma criatura minúscula do homem e  que por isso mesmo a literatura que a expressa é inferior. Livro bom é o  rico de conteúdo inaugurando novos sentidos da vida.   A literatura infantil  possui seu tempo e espaço,  sua gradação que corresponde a um estágio da nossa evolução biopsíquica. Destina-se ao leitor em desenvolvimento. Para que o convívio  desse leitor e o livro  resulte eficiente, nessa aventura harmoniosa do espírito,  é necessária a intervenção do adulto. O auxílio dos pais em família, do professor na sala de aula,  desses agentes do amor, que nesse diálogo leitor/livro devem estimular as potencialidades da mente em formação, com vistas à sua progressão na existência. 
           Ao contrário do que existia antes,  em que o ensino na escola era rígido,  alimentado em bases dogmáticas, a  intervenção agora do professor é  de contribuir para a humanização do mundo de hoje,  manipular  o saber que leve a descobertas e redescobertas dos caminhos a serem  trilhados pelas novas gerações. O educador deve estar antenado com os meios adequados e modernos de estimular esse leitor/criança, através de jogos, contação de histórias, brincadeiras com a palavra e a imagem, teatrinhos, tudo que sirva para engajar  a mente em formação em uma experiência rica de vida. Contribua para estimular a inteligência em desenvolvimento para que nela entrem e latejem sustos esplêndidos, surpresas admiráveis,  ternuras e emoções.     
           Na globalização do mundo,  de assustador aumento de populações e  crescente consumismo, nessa embriaguês constante do embalo motivado pelas coisas materiais, nesta era da informática, na sociedade da imagem e som, o elétrico no ar galopando milhares ao largo, sob o furor selvagem das manadas, nesses tempos saturados de informações, tratamento computadorizado,  velocidade, encurtamento das distâncias, em que se lida mais com signos, sabores desenfreados do corpo e mente, desviados dos  valores e verdades humanas, gerando o vazio, a ausência de sentidos da vida, é ao livro, à palavra escrita metaforizada que devemos atribuir  a maior responsabilidade na formação da consciência do mundo das crianças  e dos jovens.
          Educar é ato de amor,  alimenta a recepção verdejante dos sentimentos e ideias. Maneira de se doar para as descobertas e revelações da alma invisível das coisas, da história, da vida com suas propostas  e desafios. Com suas fluências e confluências, entre suave e alegre, sacrifício e persistência, é maneira de participar de seu tempo em forma de entendimento, auxílio  e carícia.  Nenhuma forma de ler o mundo é tão abrangente e rico  quanto a que a literatura propõe em seu prodígio de dialogar com seres e coisas.  Õ exercício de novas estratégias,  em salas de aula e bibliotecas, que são espaços privilegiados para a circulação da leitura,  é fundamental para auxiliar essa criança  desenvolver sua mente. É, assim,   de grande importância o estímulo para o fluxo dessa energia mágica que só a palavra produz, inventa, simboliza  e perdura.  E nos conduz para uma humanidade tantas vezes desumanizada ontem e hoje.
        Contente,  agradeço aos diretores da Escola Pingo de Gente, na pessoa de Luan Felizardo, coordenador do evento,  e aos produtores do Projeto Caravana de Escritores, da Fundação da Biblioteca Nacional, na pessoa da professora e escritora  Suzana Vargas, pelo convite para participar  nesta Feira do Livro, ao lado dos autores de livros infanto-juvenis Ulisses Tavares e  Kalunga.
            Chego ao fim de minhas anotações  com estes versos de meu livro “A Poesia de Calça Curta”:

                         
                            A Poesia de Calça Curta

Acende a lanterna no porão,
Vai à caça de fantasma.

Suja a toalha de mesa
Enquanto limpa a cara.

No vaivém do balanço
Ri do vento quando sopra.

Aparece de espingarda
Pra atirar no bicho onça.

Sobe  no muro do quintal,
Dá um salto para a rua.

Tropeça no galho seco,
Cai e não levanta.

Com essa não contava,
De perna engessada na cama.
                         



·        Palestra proferida na Feira do Livro de Itapé, Sul da Bahia, 21 de abril de 2013.


segunda-feira, 22 de abril de 2013

Feira do Livro de Itapé (Bahia)

Itapé/ Ba: 1ª Feira do Livro - A festa

          Ontem, 21 de abril de 2013 foi dia de festa literária na bela cidade de Itapé.
          Realizou-se  a PRIMEIRA FEIRA DO LIVRO que durante todo o dia manteve em atividade escolas, artistas, escritores numa interação maravilhosa com o povo da cidade e os muitos visitantes que lotaram a praça da Igreja Bom Jesus. Com abertura às 9 horas aconteceu apresentação de Show musical, Balllet clássico, grupos de dança, música popular brasileira, poesia, leitura, etc. Ao adquirir um livro, você recebia um cartão bônus que lhe dava direito a outro livro à sua escolha.
          Notável a presença do escritor/poeta Grapiúna Cyro de Mattos membro da Academia de Letras da Bahia (ALB), da Academia de Letras de Ilhéus (ALI) e da Academia de Letras de Itabuna (ALITA) em sessão de autógrafos e lançamento do seu livro de crônicas “Alma mais que tudo”. Acompanhava Cyro de Mattos sua esposa e musa Mariza.
          Também presentes o escritor gaúcho Kalunga e Ulisses Tavares, escritor paulista. Os dois  posaram para fotos, autografaram e esbanjaram simpatia e alegria todo o tempo.
          O poeta itabunense Oscar Benício dos Santos e sua irmã, a poetisa Jasmínea Benício dos Santos, membro da Academia Grapiúna de Letras (AGRAL) também visitaram a 1ª Feira do Livro.
         Um dia diferente e muito gratificante para a população de Itapé. E serve de exemplo para as demais cidades do sul da Bahia, ao mostrar que é possível numa região marcada pela violência principalmente contra os jovens dar um primeiro passo para uma mudança profunda, ao colocar em prática o imperativo do poeta baiano Castro Alves, no poema O livro e a América: “Oh! bendito o que semeia livros, livros à mão cheia e manda o povo pensar...”
          ITABUNA CENTENÁRIA – RSIC esteve presente, participou e fotografou.

Veja abaixo fotos do evento:

segunda-feira, 15 de abril de 2013

O Índio Pataxó

Cyro de Mattos
      
    Apareceu de repente, sem ninguém esperar ou pensar que isso pudesse acontecer um dia. Não usava cocar feito com penas de tucano. Nem usava enfeites nos braços e pernas com penas de arara. Não tinha o beiço de baixo furado e metido por ele um osso, como uma vez eu tinha visto na revista. Ao invés de tanga, uma calça de mescla azul arregaçada nas pernas até o joelho. O peito nu. Era alto, tinha braços compridos, musculosos. Lábios grossos, cara achatada, cabelos pretos, crescidos, amarrados atrás com um cordão grosso, dando idéia de um pequeno rabo de cavalo.

            Passou a morar na Ilha do Jegue, que ficava no meio do rio. De onde ele tinha vindo? Um menino metido a saber das coisas disse que veio da Reserva Paraguaçu-Caramuru, que ficava a cerca de algumas léguas da vila de Pau-Brasil. Devia ter cometido algum malfeito na aldeia e foi colocado pelo cacique para fora da tribo. O menino acrescentou que o pai tinha fazenda de pecuária lá naquelas bandas. Uma vez ele foi de jipe com o pai até a Reserva Paraguaçu-Caramuru conhecer os índios. Trouxe de lá um cocar, que o pai comprou do cacique e deu para ele.

            O menino foi logo desmentido. O que acabara de contar era  pura conversa fiada. Segundo a professora de geografia e história, aquele índio pertencia ao povo Pataxó, que vivia amalocado em Camacã, um povoado que surgiu com os acampamentos armados pelos forasteiros no meio da mata. A professora havia informado também que os homens derrubavam as árvores nativas com o machado para que a madeira de lei fosse aproveitada como tábua, peças, esteios e estacas. Com a derrubada das árvores grandes, a mata ia sendo raleada. Apareciam as clareiras e,  ao mesmo tempo, a caça desaparecia. Os índios tinham dificuldade para encontrar o que comer nas matas onde a caça ia cada vez mais desaparecendo com a presença dos machadeiros.

            A professora observara que, em contato com os homens que derrubavam as árvores nativas, os índios iam pegando sarampo e gripe, doenças que eles não conheciam. Como remédio feito com folha e raiz não curava aquelas doenças que foram  trazidas pelos machadeiros, os índios iam morrendo da noite para o dia. Dizimados pelas doenças dos brancos, talvez só restasse da tribo apenas aquele índio que acabava de aparecer na cidade e estava morando na Ilha do jegue, lá no meio do rio.

            Os outros meninos ficaram sorrindo com o que acabava de contar o mais franzino da turma, aquele pixote que um dia ia se tornar escritor para narrar histórias de gente grande e pequena acontecidas na região com suas vilas e cidades, que iam surgindo com a derrubada das matas.

            Ele não falava, o tempo todo tinha o rosto fechado. Os olhos pretos quase imóveis. Do barranco gostava de ficar olhando o rio. Pegava o arco, esticava-o e disparava a flecha, que subia feito um raio, sumia e ia cair na ilha, lá longe. Os meninos ficavam pasmados, abrindo a boca e fazendo óóóóó! Só um homem como aquele índio, com força descomunal, era capaz de fazer tamanha proeza. Um homem habilidoso no manejo do arco e flecha, que tivesse a pontaria certeira como a dele.

            Um dia, o índio surpreendeu ao menino franzino, mostrando o rosto tomado por um sorriso. Ele tinha acabado de avistar um gavião lá no alto do céu. Soltava pios estridentes e seguia soberbo no voo, rumo às serras que cercavam uma das partes da cidade, no outro lado do rio. Nesse dia, o céu estava bem azul e brilhava feito um espelho, com poucas nuvens gordas. Nesse mesmo instante em que ele havia avistado o gavião, disse alguma coisa numa fala que não se entendia, como se fosse feita de ruídos, grunhidos ou talvez gemidos. O que ele falara era por causa do gavião, não havia dúvida, os olhos dele brilhavam na direção da ave que foi sumindo num ponto longínquo. O que seria que ele queria dizer no momento que avistou o gavião atravessando o céu alagado de azul?

             De dia era visto nadando e mergulhando nos poços mais fundos. Demorava muito no fundo das águas, tinha um fôlego que deixava gente grande admirada. Quando vinha à tona, trazia o peixe espetado na lança. Nadava veloz, atravessava o rio sem precisar descansar em alguma pedra, proeza que homem algum da cidade conseguia fazer. Em pouco tempo se tornou no fato mais importante da cidade, através de comentários constantes, face às façanhas mais incríveis que só ele fazia. Para tristeza minha e de outros meninos, desapareceu de repente como havia aparecido, sem ninguém esperar ou pensar que isso fosse acontecer um dia.


quarta-feira, 10 de abril de 2013

Convite


Berro de Fogo e Outras Histórias de Cyro de Mattos Ganha Nova Publicação da Editus


Berro de Fogo e Outras Histórias (2ª edição)
Cyro de Mattos
2013 / 203p. / 25,00 / 15X22 cm
ISBN: 978-85-7455-297-2


Um dos primeiros livros publicados pela Editus, Berro de Fogo e Outras Histórias traz o olhar do contista sobre a civilização cacaueira baiana e sobre situações da existência com seus conflitos permanentes e recebe agora novo trabalho gráfico. Obra vencedora do Prêmio Nacional Vânia Souto Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras, tem ainda vários contos com reconhecimento no Brasil e no exterior, conquistando prêmios como Miguel de Cervantes da Casa dos Quixotes, do Rio de Janeiro, e Concurso Internacional de Literatura, da Revista Plural, no México. Outros contos integram antologias publicadas na Alemanha, Rússia e Dinamarca.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Mestre Calasans Neto

                                          Cyro de Matos
                                                  
                          
Mestre Calá era o chamamento carinhoso que as pessoas do círculo afetivo e a boa gente da Bahia davam  ao artista Calasans Neto. Assim chamado por seu jeito agradável de ser. Também por reconhecimento a quem soube imprimir uma linguagem pessoal  ao sonho, povoar de iluminados  olhares as zonas da criatividade artística. Era um homem simples. Foi ator de cinema, participou das Jogralescas no Colégio da Bahia. Ilustrador durante anos das Edições Macunaíma, editora que ajudou a fundar, de tiragens limitadas, baixo custo, preocupada com a feição gráfico-artística do livro. Pastor de cabras, impregnado da paisagem sob o sol escaldante do agreste. Marinheiro sedutor de baleias e sereias, navegador do azul no principado de Itapuã.     
Suas ilustrações figuram em inúmeros  livros de autores baianos. Qual o autor baiano  que não queria ter  seu livro com o desenho da capa e páginas internas com ilustrações do Mestre Calá? Jorge Amado ficava contente, contente, quando um livro seu tinha ilustrações de  Mestre Calá. Eu tive a sorte de ter alguns livros ilustrados por esse  mestre com sua fina arte de gravar o mundo.  Natal permanente, Canto a Nossa Senhora das Matas, De cacau e água,  Natal das crianças negras. E mais:  a segunda edição de Os brabos, que  está para entrar no forno da Editora Ler, de Brasília, vem com quatro ilustrações  do  pequenino grande Calá.
         Florisvaldo Mattos, Myriam Fraga, Frederico José de Souza Castro, Sonia Coutinho, Godofredo Filho, Carvalho Filho, Alberto Luís Baraúna, Guido Guerra, Fernando da Rocha Peres e Humberto Fialho Guedes são alguns autores baianos que tiveram seus livros ilustrados por Mestre Calá.  A lista dos que gozaram desse privilégio é grande. Para não se falar em textos  de poetas e ficcionistas baianos, publicados  em revistas culturais e suplementos literários. E de poetas bem grandes como Vinicius de Morais e Pablo Neruda.
        Tinha prazer em ilustrar um livro de ficção ou poesia. Se fosse de autor baiano, melhor. Fortalecia os laços criativos do artista  com os escritores da terra.  Tinha  a oportunidade de ver depois seu  trabalho conhecido pelos leitores do autor do livro. Ganhava assim recepção mais duradoura e maior o seu trabalho, que  alcançava mais gente do que uma exposição, segundo ele.
       Um livro ilustrado por Mestre Calá era uma coisa, sem a sua marca, outra. Transmitia beleza decorrente da  harmonia de duas linguagens, a textual e a visual, que se apresentavam em momento rico da criação artística. Não houve livro publicado pelas Edições Macunaíma que não teve  ilustrações, da capa e páginas  internas, enriquecidas com o prodígio criativo de Mestre Calá. Nesses livros ficava visível  tanto na concepção como na execução a marca do bom gosto artístico. 
        Conheci Mestre Calá, criatura  aparentemente frágil, rapazinho com passos curtos de quem teimava em andar, quando eu cursava o clássico no Colégio da Bahia, lá pelos idos de 1955.  Soube que tinha sido vítima de  poliomielite quando criança. Mas isso, que poderia ser um obstáculo instransponível, não impedia que ele estivesse ali mesmo no colégio, todos os dias em que houvesse aula.  Firme, altivo,  com seu jeito fraternal, às vezes engraçado no prosear bem baiano, as amargas nem pensar.
           Um dia fui encontrá-lo junto com outros estudantes. Saboreava o abará da baiana  Maria, o  melhor da Bahia, na opinião unânime  da estudantada que freqüentava o Colégio da Bahia (Central). Na entrada do colégio, embaixo do fícus frondoso, mostrava-se irritado. Falava que o abará e o  acarajé corriam sério perigo. Já havia baiana na cidade que estava cedendo à pressão do dólar e vendendo as iguarias aos turistas americanos com salada, molho de mostarda e maionese,  ao invés de molho de pimenta, pouquinho de vatapá ou caruru também pouquinho, vá lá, e camarão. O fato representava  um duro golpe ao acarajé e ao abará, que se tornaram saborosos ao paladar do baiano com o acompanhamento de seus complementos  naturais, ligados a uma tradição trazida de terras africanas. Os gringos não estavam nem aí se para os baianos o abará e o acarajé  não combinavam com salada e molho de mostarda. Para eles, sequiosos em impor sua cultura de dominação aos povos, abará e acarajé deviam ter salada e molho de mostarda  como no  hot dog e hamburg, observava o ferrenho defensor da culinária baiana com  raízes africanas.      
       Cativava ao primeiro encontro.  Qual era o segredo que  aquele hominho guardava para se mostrar sempre de bem com os dias, embora a vida fosse contrária a isso desde os sete anos de idade ? O amor de Auta Rosa, a companheira, a mulher e insubstituível musa de sua vida?  Sua saga surpreendente  na qual constantemente ele vinha recriando a vida com pinceladas, talhos vivos de um descobridor de gente, bichos e cores?
       Com um metro e quarenta cinco centímetros de altura, esse príncipe de Itapuã   jamais fora pequeno.  Mostrou que  a vida vale a pena, depende de nós mesmos fazê-la sem sobressaltos e depressões,   se povoada de coragem, simplicidade, solidariedade. Com a goiva, o martelo e o formão nas argutas percepções  das manhãs e tardes.   Até com o pincel, sempre com as cores da natureza.  
         Calasans Neto nasceu em 11 de novembro de 1932, em Salvador, e faleceu na capital baiana, em 30 de abril  de 2006.