Sonetos da Vassoura-de-Bruxa
Cyro de Mattos
Ó morte quão amarga
É a tua memória.
Eclesiástico, 40-41
I
Julguei que seria esta a minha sorte
Desfrutar do meu trabalho no anel
Generoso de teus ramos. Do mel
Gozar todo o prazer até a morte.
Calo e calor em horas rastejadas
Encheram o meu sono de agonia,
Colher nuvens verdes e não ciladas
De tua luz sonora o que eu queria.
Só, nesse deserto, depois de muito
Arrastado entre sombras, fico vendo
No chão cinzas de tuas bruxas soltas.
De aflição sei, o sangue nas disputas,
A servos e donos do orvalho diga
O vento sobre aroma em terra amarga.
II
Pensei encontrar o paraíso nas
Terras do sem fim. Nas manhãs serenas
Frutos dourados. Verdejantes veias
Da vida retomada sem urgências.
Lá, no verde sem fim, perseverava
No velho aprendizado da utopia
Que me habita transpirando no hálito
De pesares e rumos da agonia.
Salpicado de flores, me queimava
Em teu sol forte, ardendo o pensamento
No ouro de tuas amêndoas. De tanto
Querer-te não reparti. De repente
Eis que me encontrei, nos meus rastros, triste.
Então vi nas mãos quanta solidão.
III
Vês morte no ar fendido por bruxas,
Aragem que na solidão despenca
Nostalgia, gargalhar incessante
Dos frutos já mortos. Desfazer este
No espaço profundo que em tua alma há
Do animal ferido em face do mundo.
Estranho não habitar mais a terra
Dos frutos de ouro. Nunca mais colher
Hábitos aprendidos com mãos crespas,
Peito molhado, vozes enfeitadas
De flor e chuva. Diante de ti
Desalento e silêncio, estas sombras
Que te empurram através de desertos.
Como o vento nós mesmos não ficamos
IV
Falo das léguas com sua música
Incandescente, da voz na crônica
Lendo as estações em torno das rumas,
Sonho que projetei dentro das brumas.
Falo do fervor na hora mais suada
Que me esparramava, do ter ávida,
Das trilhas pelo olhar que já não voa,
Dos atalhos que um respiro magoa.
Da alma na constante canção impressa
De nódoas, sumindo na velha queixa
Daquilo que entardece sobre manchas.
Agora sob cinzas, no desamor
Espalhado por vassouras-de-bruxa,
Calo-me sem saber para onde vou.*
*Soneto incluído na Antologia de Poesia Contemporânea Brasileira, organizada por Álvaro Alves de Faria, Editora Alma Azul, Coimbra, Portugal.
V
Maior prova de que já não existo
Está nos ares desse triste vento
Onde bruxas com suas crinas soltas,
Ao cabo de vassouras pelas pontas,
Ceifam-me. Dias e noites sem dó
Cobrem de sombras, deixam-me no pó,
Lamenta o coração estremecido.
Perfuram verão de outrora habitado
Do verde constante naqueles frutos
De ouro, suor molhado de acalantos
Em que me pus bem dentro desse mito.
Maior prova de que já não existo
Emerge agora da agonia, eu no meio,
Tentando na memória ser exílio.
VI
Tive muitos navios. Eles todos
Sob o brilho das safras, carregados
Nas estações das colheitas douradas,
Os cascos incansáveis pelas ondas.
Dentro de mim aquele alegre apito
Das distâncias, trazido pelo vento
Que dos campos de chuva e flor chegava.
Ó alma, ó força, ó vida. Sustentava
Um país inteiro o tempo arrumado
Aos montes por mãos nas vagas do espanto.
Relembro esses navios no pesar
Que sou em mim. No percurso do azar
Por vassoura de bruxas habitado.
No ar ressecado do que sou de morto.
VII
Infame, miserável, tesconjuro!
Eu que dormi na c ama da caipora,
Engoli da mata o silêncio duro,
Nos confins desci das ancas da aurora.
Eu que no buraco o saci peguei,
Lobisomem no tiro derrotei,
No boitatá uma sela botei,
Com o teu esgar o que fazer não sei.
Eu que como menino só fiz rir
Quando os frutos de ouro no meu jardim
Vi, colho só dores dentro de mim.
Feitas, no ocaso, de flores queimadas
Por bruxas que não param de sorrir.
Nada sou nas vastidões desoladas.
VIII
Comi da bosta que o diabo cagou.
Muitas vezes enfrentei o desamor
Duro da mata fechada, carreguei
Nas costas os espectros da noite. Andei
Com os pés estremecidos e mãos rachadas.
Tive para beber danações, doridas
Paisagens postas na mesa rústica,
Só pra te ver fruto de ouro na música
Dos deuses por mim roubada. Tudo enfim
Venci. C aça e caçador. Só não sabia
Que o sol se levanta e pra laçar o dia
A noite vem. Nada valho. Sei em mim
O inevitável que me varre pro canto.
De bruxas, cinzas ao vento, sou de fato.
IX
Dentro de mim ressoa uma nação.
O clima que vem dela nas raízes
Se alimenta em razão de verdes vozes
Do suor derramado pelo chão.
Houve tempo de dedos corroídos,
Duro clamor nos dias mais sofridos,
Cobra no inverno, bala no verão,
De cacau era a flor no coração.
Homem de saga molhada, sangrada,
O ouro vegetal vi sustentar toda
Essa nação enquanto pela estrada
O tempo dava voltas. Tudo agora
Se desfaz. Cai das folhas, insonora,
Essa flor murcha que a agonia gera.*
*O soneto IX foi incluído na Antologia do Terceiro Encontro Internacional de Poetas, da Universidade de Coimbra, Portugal, com a versão para o inglês por Manuel Portela, poeta, tradutor e Doutor em Cultura Inglesa. E também na antologia Poesia do Mundo/3, organizada por Maria Irene Ramalho de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra, Doutora em Literatura Norte-Americana.
X
Da mata treva que junto de ti
Retornas, o sol do espanto pálpebra
Abriu pra te ver nervos brabos de ânsia,
O acordar do mundo que estremeceste.
Do talho no espaço profundo a terra
Sangrando, do animal conhecedor,
Só, em torno dos dias mutilados,
Como o vento em face da vida dúbio.
Diante dos frutos de ouro apencados
Aroma dos céus conquistados, selva
De servos onde as noites estercam.
Ó flagelador de cantos no verde,
Essas bruxas penduradas nos galhos
Tu vês. Mãos gastas de varrer as cinzas.
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