O terrível Nonô Piquete
Crônica de Cyro de Mattos
Era feio, tinha a voz fanhosa. Troncudo, corcunda, a cabeça enterrada no pescoço. Pernas grossas, braços musculosos, os dentes sujos e falhos apareciam na boca larga quando dava um sorriso. Corria desengonçado, fungava e espumava na carreira esquisita. Com uma careta feia na cara, partia para cima do adversário para tomar a bola. Sua figura horrível crescia e metia medo ao jogador que estivesse com a bola dominada.
Era tido como perna de pau, não sabia dominar a bola, queria logo se desfazer dela, chutando-a com violência para o campo adversário. Gostava de fazer falta para parar o atacante, abusava de pontapés e cotoveladas. Seu rosto cor de carvão respingava de suor no vaivém do jogo. Como tinha porte físico avantajado para um adolescente de sua idade, não era surpresa vê-lo participando de uma pelada no meio de gente grande no campo da várzea.
Só queria na semana jogar pelada nos campos espalhados pelos terrenos baldios da cidade e na várzea. Não importava que os meninos dos dois times na pelada tivessem um tamanho menor que o dele. Para tranqüilizar e arranjar um lugar no jogo, ia se aproximando de jeito manso. Argumentava que tanto fazia ganhar como perder, queria apenas se divertir. Não entraria duro quando fosse disputar a bola. Só não topava jogar de goleiro, mas aceitava ficar em qualquer posição.
Era costume, entre os meninos, que o dono da bola escolhesse os jogadores que ficariam no seu time. Daí a vantagem de quem era o dono da bola quando ia se disputar uma pelada. Era sempre o que escolhia entre a meninada os melhores jogadores para jogar do seu lado. Os outros que sobravam na escolha iam atuar no outro time.
Naquele domingo de janeiro, o sol brilhado no céu azul, o dono da bola já havia escolhido os meninos que iam jogar no seu time. O jogo ainda não havia começado porque ficou faltando um jogador para completar o outro time. Ora, com um time superior e com um jogador a mais, a pelada não ia ter graça. O time do dono da bola ia sapecar no outro uma sonora goleada.
Começa o jogo, não começa, parecia que dessa vez não ia acontecer mesmo o jogo de bola numa pelada naquele campo sem grama, próximo a uma das margens do rio. Foi aí que um menino lourinho, vermelho feito peixe de água salgada, pediu ao dono da bola que deixasse Nonô Piquete participar da pelada para completar o time em que estava faltando um jogador..
Como quem não quer nada, com ares de bom amigo, humilde e sereno, Nonô Piquete pediu para completar o outro time com a sua escalação como zagueiro. Não ia entrar duro em qualquer menino, nem se esforçar para ganhar a bola dando pontapé na canela do adversário. Prometeu fazer vista grossa em todos os lances de qualquer atacante, estaria em campo apenas para fazer número, não deixar o time dos meninos que sobraram na escolha dos jogadores pelo dono da bola com um a menos, em desvantagem gritante.
O jogo transcorreu sem que o placar até a metade do segundo tempo fosse mexido por um dos dois times. O que parecia vitória fácil para o time do dono da bola, tinha virado um jogo bem disputado, que alternava lances aguerridos com jogadas sensacionais do menino vermelho feito peixe de água salgada. Então, aconteceu a penalidade boba contra o time do dono da bola. Um lance sem perigo, a bola já tinha sido dominada e chutada pelo zagueiro, que fez aquela besteira de dar uma rasteira no menino vermelho feito peixe de água salgada. O juiz não hesitou, trilou o apito e apontou para a marca do pênalti.
Nonô Piquete pegou a bola e disse que ia bater o pênalti. Não ia chutar forte, bater pênalti era jeito, sabia como fazer para que a bola entrasse no gol devagar, disse. Mas não foi o que se viu. Tomou distância e meteu o pé na bola com violência. O goleiro caiu dentro do gol, abraçado à bola. Preocupados, os meninos viram que o goleiro não saiu de lá de dentro do gol. Viram que ele não mexia os olhos, tinha uma cor esverdeada no rosto e chegou a golfar duas vezes uma saliva amarela.
– Água! Tragam logo água! Ele está morrendo! – gritou o dono da bola.
Despejaram a água no rosto dele. Ele acordou com os olhos sem enxergar os meninos que estavam à sua frente. Disse:
– Vi um bocado de borboletas, agora vejo tudo anuviado.
Como se nada de mais tivesse acontecido, Nonô Piquete aproximou-se do goleiro, que soltou a bola e ficou em pé com a ajuda de alguns companheiros.
Pensávamos que ele fosse pedir desculpas pelo que fez quando chutou a bola com violência.
De cara fechada, disse:
– Você viu, seu bobo, futebol é pra homem!
Depois que ele disse isso ao goleiro, ninguém mais quis que a partida continuasse. Fizemos um trato para o resto da vida de não participar de uma pelada com Nonô Piquete jogando até de goleiro em qualquer um dos times. De agora em diante ele estava riscado de participar em nossas brincadeiras.
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