Páginas

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

          Boate Id


 ( Cyro de Mattos)


A Boate Id ficava  em um desses sobrados antigos de Salvador, na cidade alta.  Uma escada estreita terminava no terceiro andar onde funcionava a boate. Lá dentro, as mesas com quatro cadeiras distribuídas por vários cantos do salão e ao redor do círculo que servia como pequena pista de dança. À direita da entrada da boate havia um barzinho onde apenas o garçom ia buscar no balcão a bebida com  o tira-gosto pedido pelo cliente. Ao lado do barzinho, a toalete masculina e a feminina.
   À música era ao vivo. A orquestra com o pianista, baterista, saxofonista e cantor tocava no pequeno tablado, armado junto a uma das paredes laterais. Às vezes aparecia por lá um cantor famoso da música popular brasileira. Cantava sem cobrar nada porque era amigo do dono da boate ou então porque gostava de cantar naquele tipo de ambiente noturno. Não chegava a ser um show ou espetáculo demorado. Era apenas uma apresentação rápida do cantor famoso. Foi assim que tive a oportunidade de assistir cantar bem  perto Miltinho e Jamelão, dois nomes famosos da música popular brasileira à época, que se apresentaram para um público hipnotizado na boate lotada.
Ninguém podia entrar no recinto acompanhado de mulher. A Boate Id tinha as suas meninas, que assim eram conhecidas, cada uma com o seu jeito sensual para atrair a atenção do homem que acabava de chegar ao recinto, interessado por goles desse vinho vertido de gozo. Os pares conversavam sentados à mesa, misturando vozes com o prazer que dava a bebida e o cigarro.
Naquele tempo era comum a cidade de Salvador  propiciar encontro de amigos, que nem sempre tinha um local marcado. A cidade ainda era pequena, mesmo se tratando de uma das capitais mais importantes do Nordeste. Sua população talvez tivesse uns seiscentos mil habitantes. A capital baiana conservava muita coisa de cidade de interior. Em alguns locais como a Rua Chile  a cidade toda passava durante a semana. 
A noite oferecia a oportunidade de extrair o tédio ou a angústia, que à época se chamava de fossa, escondida atrás de uma fachada aparentemente brilhante, mas em situação crítica sob qualquer aspecto íntimo. Por tudo isso, e porque tinha gente que sobrevivia vendendo acarajé, abará,  mingau e churrasquinho de carne no espeto, na rua onde estava localizada a Boate Id, como em outros pontos semelhantes da cidade alta,  a noite da capital baiana era considerada como uma das coisas generosas da vida.  Para os que circulavam na boêmia, podia significar um desabafo no encontro fugaz do amor com uma das meninas da Boate Id. Reciclava-se dessa maneira,  no ímpeto máximo do  prazer, a energia que o corpo necessitava para no outro dia seguir nos caminhos da vida.                           
          As meninas que trabalhavam na Boate Id tinham origens pobres, sem preparo e proteção familiar. Levavam a vida nada fácil de mulheres que vendiam o corpo na cama para sobreviverem. Ainda não sabiam esse lado do mundo que de uns anos para cá passou a matar a vida com tóxicos e drogas, sem deixar rastros. Era na bebida que as meninas afogavam as mágoas, tentavam  enganar e aliviar os ferimentos causados pela dura realidade que levavam.
Trabalhavam de terça-feira a sábado, das 22 às 3 da madrugada, o domingo era para o descanso e o lazer. Reservavam a segunda-feira para fazer compras com o namorado. Quando estavam na boate, usavam saia curta, seios salientes de propósito quase saindo do decote. A maquiagem constava de cabelos brilhantes, rosto levemente de ruge, lábios pintados de preferência com batom vermelho. Pulseira no braço, anel  com a pedra de brilhante simulada, bolsa a tiracolo quando no fim da noite, o trabalho encerrado, iam jantar em algum restaurante da Ajuda. O preferido dos restaurantes era o Cacique, que ficava na vizinhança do Cine Guarani e do Tabaris, um famoso cabaré  que atraía as prostitutas em fim de noite, marginais do luxo e da ociosidade, comerciários, estudantes, jornalistas,  músicos e cantores. Camada de gente que se encontrava naquele ambiente procurado  porque achava que a vida noturna da cidade  tinha um prazer especial escorrendo por ladeiras e becos.
Na Boate Id era reprovado o gesto de algum homem que saísse do limite e ousasse chamar uma das meninas de puta. Por sua inconveniência, calcada em ressentimentos pessoais ou paixão compulsiva, era colocado para fora do recinto pelo segurança quando insistia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário