O Menino e os Passarinhos
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Cyro de Mattos
A renda de meu pai tinha aumentado com o dinheiro que
começara a emprestar a juros altos. Como era muito econômico, juntou uma boa soma
de dinheiro durante dois anos. Comprou uma fazenda pequena, de herdeiros.
Estava abandonada, quase não tinha benfeitorias. Ficava nas imediações da vila
de Ferradas, na zona Ribeirão do Gado, a cerca de uns doze quilômetros da
cidade. Ele quis que minha mãe
fosse conhecê-la comigo
- O empregado não tem filhos – revelou-me. – Você
agora vai ter que brincar sozinho – disse.
Não queria afastar-me dos amigos lá da rua, mesmo
sabendo que era apenas por umas duas semanas. Brincar sozinho era o que menos queria
no mundo. Teria que me conformar com essa nova situação, que sem dúvida ia me
causar dissabor enquanto
permanecesse na fazenda.
Viajei num domingo. Achei graça quando vi meu pai
chegar do curral da Prefeitura, puxando
o burro pelo cabresto, mal o sol havia despontado acima do morro, no outro lado
do rio. Usava um chapéu de abas largas, calça e camisa de mescla. Estava
calçado numas botinas de couro de zebu e
tinha um facão na bainha pendurado na cintura. Minha mãe usava um chapéu grande
de palha para se proteger do sol ou da chuva.
Fiz a viagem montado na cangalha de um burro
castanho, que sacolejava o tempo todo
pelo caminho estreito no meio do mato. Era um burro manso, novo, que tinha as pisadas firmes. Dava a entender que
conhecia o caminho onde de vez em quando aparecia uma curva. Nos passos
cadenciados, seus cascos ora chispavam os pedregulhos, ora levantavam a poeira
nos trechos da terra de chão batido.
Levava comigo meu estilingue e a capanga cheia de
bolotas duras de barro. Era aquele um estilingue que ainda não tinha sido usado
por mim. Embora soubesse que não tinha uma pontaria certeira para matar
passarinho, pensava em aprimorá-la no primeiro dia que passasse na fazenda.
Pretendia exercitá-la, atirando com o estilingue em lata ou garrafa colocada na
ponta das estacas.
Nos primeiros dias que passei na fazenda não usei meu
estilingue nem para matar calango nem para espantar os passarinhos, que
pousavam em algazarra nas árvores do quintal pelo fim da tarde, em busca de
dormida. Acordava cedo pensando em pescar e tomar banho no ribeirão, que
passava nos fundos da casa com as águas espumantes de uma cachoeira bonita.
Pescava de anzol quando estava sozinho, de rede
com minha mãe e a mulher do empregado. Quando pegava os peixes grandes,
minha mãe sorria da sorte, dizendo de brincadeira que o almoço e o jantar iam ser com fartura naquele dia.
Meu pai saía quase no turvo com o empregado, rumo a
uma área de terra queimada onde antes havia uma capoeira grossa, segundo ele me
disse. Estava plantando uma roça de milho, mandioca, aipim, mamão e banana.
Almoçava com o empregado lá mesmo, as latas de manteiga levavam a comida para
eles dois. Só voltavam pelo entardecer.
Já fazia uma semana que havia chegado à fazenda, ainda
não tinha usado meu estilingue para caçar passarinho. A mãe não gostou quando
soube que ia aproveitar os dias agora
para matar passarinho com o estilingue, que comprei num sábado na feira. Ela nunca gostou
que meu pai criasse passarinho em gaiola quanto mais aceitar que o filho fosse
matar os bichinhos com bala de estilingue.
- Os passarinhos nasceram para alegrar a natureza,
filho - disse.
Pedia que esquecesse o estilingue e prestasse atenção
como era bonito o canto do sabiá na laranjeira quando o dia estava amanhecendo.
Aconselhava, insistia, cobrava-me para não matar os bichinhos, mas não
conseguia demover-me da idéia de ser um caçador de passarinho, como os meninos lá da rua. O Marcinho, por exemplo,
chegava pelo entardecer com a capanga cheia de sanhaçus, que ele havia abatido
com bala de estilingue no jardim da Prefeitura.
- Cuidado com o Amigo-Folhagem - ela observou.
- Quem é esse Amigo-Folhagem?
- Um homem que vive no mato com o corpo coberto de
folhas, protegendo os bichos e os pássaros. Ele castiga quando encontra alguém
caçando os bichos e os pássaros nas matas. O caçador fica perdido sem achar o
caminho de volta, andando, andando, saindo no mesmo lugar. E tem mais: o
Amigo-Folhagem não é como a caipora, que aceita promessa de fumo e cachaça
feita pelo caçador para que o castigo seja desfeito.
Sem ligar para
o que minha mãe disse, indaguei:
- Como é que esse
Amigo-Folhagem consegue viver no mato?
- Por onde ele passa, os bichos saltam e brincam no
caminho. Os passarinhos voam e não param de cantar. Alguns chegam a pousar nos
ombros dele.
- O que é que ele come pra não morrer de fome?
- Ele não precisa comer nada porque é um espírito
encantado dos matos. Não tem idade como nós humanos e nunca morre.
- Ele tem amigo sem ser passarinho e bicho?
- Tem a manhã e a noite como seus companheiros de
viagem. O vento é outro velho amigo, que o acalenta quando dorme.
Achei que aquelas coisas que a mãe havia falado sobre
o Amigo-Folhagem não passavam de invenção dela
para eu desistir de matar com o estilingue os passarinhos.
No outro dia
acordei cedo e, depois de exercitar minha pontaria durante horas, nas latas e
garrafas que coloquei nas estacas, pela primeira vez fui caçar passarinho com o
estilingue novinho.
Saí então com a
capanga a tiracolo, cheia de pedras e bolotas duras de barro. Andei cauteloso
pelo pasto, confiante de que mataria
alguns passarinhos com o estilingue na minha primeira caçada. Atirei
primeiro nos anuns que pulavam numas touceiras de cana, perto da casa de farinha.
Depois atirei várias vezes nos sanhaçus
que faziam algazarra na ingazeira. E ainda atirei num sabiá que
pousara no pé de carambola. Nem cheguei
a atirar nas jandaias que estavam no jenipapeiro, próximo ao curral com
cobertura de zinco velho. Elas voaram assustadas quando pressentiram meus
passos aproximando-se do jenipapeiro.
A sensação que
tinha naquele dia de minha primeira caçada era de um caçador imprestável, que chegava com a capanga vazia, envergonhado porque
não possuía boa pontaria para
acertar cada balaço de estilingue no alvo
que se movia no galho.
Lembrei então da rolinha que tinha dois filhotes no ninho feito na jaqueira. Vi quando ela passou pela
primeira vez com a comida no bico e foi pousar na copa da jaqueira. Observei
que ela dava vôos incansáveis para alimentar os filhotes. Resolvi então ir até lá para saber em que parte da jaqueira
ficava o ninho e de que tamanho estavam
os filhotes. Quando lá cheguei, eles tentavam sair do ninho feito numa
forquilha de um galho nem muito alto. Vinham quase para fora, dando para ver
que já estavam empenados. Batiam as asinhas, inquietos. Voltavam para dentro do
ninho porque não tinham coragem de se precipitarem no vazio. Com certeza iam
dar os primeiros vôos na companhia da mãe a qualquer momento, pensei.
O calor do dia envolvia-me dos pés até a cabeça. Um
vento quente soprava meus cabelos quando vi
a rolinha pousar na jaqueira. Ia começar a dar comida aos filhotes. Não
vacilei, firmei a pontaria e atirei bem no peito. Tive a certeza de que
havia acertado num passarinho daquela vez quando vi a rolinha ser atirada para fora da jaqueira,
indo cair numa touceira de capim. Quando fui buscá-la, ela tinha o peito
ensangüentado e se batia com as asas que não conseguiam voar. Bati com o cabo do estilingue na cabeça dela
para acabar a sua agonia. Ia
colocá-la na capanga quando de
repente alguma coisa no íntimo lembrou-me de que caçador que se prezava não
matava passarinho que estava dando
comida aos filhotes.
Essa era uma regra que os meninos lá da rua aprendiam
cedo e seguiam sempre. Pensei com dó como era que os filhotes iam sobreviver
agora sem a mãe deles. Fiquei apavorado quando vi eles saírem do ninho
num vôo baixo, atabalhoado,
estonteados, rumo a uma capoeira rala que ficava depois do pasto.
Cheguei lá em casa com a camisa colada ao peito
molhado de suor. As veias do rosto latejavam.
Assim que me viu com um jeito diferente do menino que
gostava de entrar em casa falando sem parar, parecendo um papagaio, minha mãe
perguntou:
- O que
aconteceu, filho?
- Nada, foi só um susto com uma cobra que passou perto de minhas
pernas, deslizando no capim rumo ao ribeirão.
Naquele domingo foi comemorado o meu aniversário.
Depois que cantaram o “Parabéns a Você”, soprei com dificuldade as onze velinhas no bolo com cobertura de amendoim.
Era o bolo que mais gostava, mas com aquele enjôo na barriga apenas comi um pequeno pedaço. Não quis
estourar as bolas de soprar, que enfeitavam as paredes da sala.. Não me
interessavam os tabletes de chocolate, caramelos, chicletes com gosto de menta,
que minha mãe trouxe em duas caixas e colocou à
mesa forrada com uma toalha de linho branco. Nem doce de goiaba com
calda, nem suco de laranja, nem nada.
Por mais que tentasse tirar de mim alguma explicação sobre o meu
comportamento estranho, desligado de tudo
num dia especial, minha mãe não
logrou extrair sequer uma palavra minha..
Depois que
voltei para casa, tive noites mal-dormidas. Evitei brincar com os companheiros
durante dias. Doía, como doía, quando pensava que os filhotes da rolinha tinham
morrido sem a companhia da mãe deles. Se estivesse com os filhos, naturalmente
que ia ensinar-lhes a dar os primeiros vôos e
a catar comida nas migalhas da
terra. Nada podia fazer. Apenas prometer a mim mesmo que nunca mais ia
usar um estilingue para caçar passarinho no mato ou em qualquer lugar da
cidade onde existisse uma árvore
frutífera.
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