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sexta-feira, 9 de outubro de 2015



                      O Menino e os Passarinhos
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                   Cyro de Mattos


A renda de meu pai tinha aumentado com o dinheiro que começara a emprestar a juros altos. Como era muito econômico, juntou uma boa soma de dinheiro durante dois anos. Comprou uma fazenda pequena, de herdeiros. Estava abandonada, quase não tinha benfeitorias. Ficava nas imediações da vila de Ferradas, na zona Ribeirão do Gado, a cerca de uns doze quilômetros da cidade. Ele quis que  minha mãe fosse  conhecê-la comigo
- O empregado não tem filhos – revelou-me. – Você agora vai ter que brincar sozinho – disse.
Não queria afastar-me dos amigos lá da rua, mesmo sabendo que era apenas por umas duas semanas. Brincar sozinho era o que menos queria no mundo. Teria que me conformar com essa nova situação, que sem dúvida ia me causar dissabor enquanto  permanecesse  na fazenda.
Viajei num domingo. Achei graça quando vi meu pai chegar  do curral da Prefeitura, puxando o burro pelo cabresto, mal o sol havia despontado acima do morro, no outro lado do rio. Usava um chapéu de abas largas, calça e camisa de mescla. Estava calçado numas  botinas de couro de zebu e tinha um facão na bainha pendurado na cintura. Minha mãe usava um chapéu grande de palha para se proteger do sol ou da chuva.  
Fiz a viagem montado na cangalha de um burro castanho,  que sacolejava o tempo todo pelo caminho estreito no meio do mato. Era um burro manso, novo, que  tinha as pisadas firmes. Dava a entender que conhecia o caminho onde de vez em quando aparecia uma curva. Nos passos cadenciados, seus cascos ora chispavam os pedregulhos, ora levantavam a poeira nos trechos da terra de chão batido.
Levava comigo meu estilingue e a capanga cheia de bolotas duras de barro. Era aquele um estilingue que ainda não tinha sido usado por mim. Embora soubesse que não tinha uma pontaria certeira para matar passarinho, pensava em aprimorá-la no primeiro dia que passasse na fazenda. Pretendia exercitá-la, atirando com o estilingue em lata ou garrafa colocada na ponta das estacas.
Nos primeiros dias que passei na fazenda não usei meu estilingue nem para matar calango nem para espantar os passarinhos, que pousavam em algazarra nas árvores do quintal pelo fim da tarde, em busca de dormida. Acordava cedo pensando em pescar e tomar banho no ribeirão, que passava nos fundos da casa com as águas espumantes de uma cachoeira bonita. Pescava de anzol quando estava sozinho, de rede  com minha mãe e a mulher do empregado. Quando pegava os peixes grandes, minha mãe sorria da sorte, dizendo de brincadeira que o  almoço e o jantar  iam ser com fartura naquele dia.
Meu pai saía quase no turvo com o empregado, rumo a uma área de terra queimada onde antes havia uma capoeira grossa, segundo ele me disse. Estava plantando uma roça de milho, mandioca, aipim, mamão e banana. Almoçava com o empregado lá mesmo, as latas de manteiga levavam a comida para eles dois. Só voltavam  pelo entardecer.
Já fazia uma semana que havia chegado à fazenda, ainda não tinha usado meu estilingue para caçar passarinho. A mãe não gostou quando soube que ia aproveitar os dias agora  para matar passarinho com o estilingue, que  comprei num sábado na feira. Ela nunca gostou que meu pai criasse passarinho em gaiola quanto mais aceitar que o filho fosse matar os bichinhos com bala de estilingue.
- Os passarinhos nasceram para alegrar a natureza, filho - disse.
Pedia que esquecesse o estilingue e prestasse atenção como era bonito o canto do sabiá na laranjeira quando o dia estava amanhecendo. Aconselhava, insistia, cobrava-me para não matar os bichinhos, mas não conseguia demover-me da idéia de ser um caçador de passarinho, como os  meninos lá da rua. O Marcinho, por exemplo, chegava pelo entardecer com a capanga cheia de sanhaçus, que ele havia abatido com bala de estilingue no jardim da Prefeitura.
- Cuidado com o Amigo-Folhagem - ela observou.
- Quem é esse Amigo-Folhagem?
- Um homem que vive no mato com o corpo coberto de folhas, protegendo os bichos e os pássaros. Ele castiga quando encontra alguém caçando os bichos e os pássaros nas matas. O caçador fica perdido sem achar o caminho de volta, andando, andando, saindo no mesmo lugar. E tem mais: o Amigo-Folhagem não é como a caipora, que aceita promessa de fumo e cachaça feita pelo caçador para que o castigo seja desfeito.
Sem  ligar para o que minha mãe disse,  indaguei:
- Como é que esse  Amigo-Folhagem consegue viver no mato?
- Por onde ele passa, os bichos saltam e brincam no caminho. Os passarinhos voam e não param de cantar. Alguns chegam a pousar nos ombros dele.
- O que é que ele come pra não morrer de fome?
- Ele não precisa comer nada porque é um espírito encantado dos matos. Não tem idade como nós humanos e nunca morre.
- Ele tem amigo sem ser  passarinho e bicho?
- Tem a manhã e a noite como seus companheiros de viagem. O vento é outro velho amigo, que o acalenta quando dorme.
Achei que aquelas coisas que a mãe havia falado sobre o Amigo-Folhagem não passavam de invenção dela  para eu desistir de matar com o estilingue os passarinhos.
 No outro dia acordei cedo e, depois de exercitar minha pontaria durante horas, nas latas e garrafas que coloquei nas estacas, pela primeira vez fui caçar passarinho com o estilingue novinho.
 Saí então com a capanga a tiracolo, cheia de pedras e bolotas duras de barro. Andei cauteloso pelo pasto, confiante de que mataria  alguns passarinhos com o estilingue na minha primeira caçada. Atirei primeiro nos anuns que pulavam numas touceiras de cana, perto da casa de farinha. Depois atirei várias vezes nos sanhaçus  que faziam algazarra na ingazeira. E ainda atirei num sabiá que pousara  no pé de carambola. Nem cheguei a atirar nas jandaias que estavam no jenipapeiro, próximo ao curral com cobertura de zinco velho. Elas voaram assustadas quando pressentiram meus passos aproximando-se do jenipapeiro.
 A sensação que tinha naquele dia de minha primeira caçada era de um  caçador imprestável, que chegava com  a capanga vazia, envergonhado  porque  não possuía  boa pontaria para acertar cada balaço de estilingue  no alvo que se movia  no galho.
Lembrei então da rolinha que tinha  dois filhotes no ninho feito  na jaqueira. Vi quando ela passou pela primeira vez com a comida no bico e foi pousar na copa da jaqueira. Observei que ela dava vôos incansáveis para alimentar os filhotes. Resolvi então ir  até lá para saber em que parte da jaqueira ficava o ninho e de  que tamanho estavam os filhotes. Quando lá cheguei, eles tentavam sair do ninho feito numa forquilha de um galho nem muito alto. Vinham quase para fora, dando para ver que já estavam empenados. Batiam as asinhas, inquietos. Voltavam para dentro do ninho porque não tinham coragem de se precipitarem no vazio. Com certeza iam dar os primeiros vôos na companhia da mãe a qualquer momento, pensei.
O calor do dia envolvia-me dos pés até a cabeça. Um vento quente soprava meus cabelos quando vi  a rolinha pousar na jaqueira. Ia começar a dar comida aos filhotes. Não vacilei, firmei a pontaria e atirei bem no peito. Tive a certeza de  que  havia acertado num passarinho daquela vez quando vi a  rolinha ser atirada para fora da jaqueira, indo cair numa touceira de capim. Quando fui buscá-la, ela tinha o peito ensangüentado e se batia com as asas que não conseguiam voar.  Bati com o cabo do estilingue na cabeça dela para acabar a sua agonia. Ia  colocá-la   na capanga quando de repente alguma coisa no íntimo lembrou-me de que caçador que se prezava não matava passarinho que estava  dando comida aos filhotes.
Essa era uma regra que os meninos lá da rua aprendiam cedo e seguiam sempre. Pensei com dó como era que os filhotes iam sobreviver agora sem a mãe deles. Fiquei apavorado quando vi eles saírem  do ninho  num vôo baixo, atabalhoado,  estonteados, rumo a uma capoeira rala que ficava depois do pasto.
Cheguei lá em casa com a camisa colada ao peito molhado de suor. As veias do rosto latejavam.
Assim que me viu com um jeito diferente do menino que gostava de entrar em casa falando sem parar, parecendo um papagaio, minha mãe perguntou:
-  O que aconteceu, filho?      
- Nada, foi só um susto  com uma cobra que passou perto de minhas pernas, deslizando no capim rumo ao ribeirão.
Naquele domingo foi comemorado o meu aniversário. Depois que cantaram o “Parabéns a Você”, soprei com dificuldade  as onze velinhas no bolo com cobertura de amendoim. Era o bolo que mais gostava, mas com aquele enjôo na barriga  apenas comi um pequeno pedaço. Não quis estourar as bolas de soprar, que enfeitavam as paredes da sala.. Não me interessavam os tabletes de chocolate, caramelos, chicletes com gosto de menta, que minha mãe trouxe em duas caixas e colocou à  mesa forrada com uma toalha de linho branco. Nem doce de goiaba com calda, nem suco de laranja, nem nada.  Por mais que tentasse tirar de mim alguma explicação sobre o meu comportamento estranho, desligado de tudo  num dia especial, minha   mãe não logrou extrair sequer uma palavra minha..
 Depois que voltei para casa, tive noites mal-dormidas. Evitei brincar com os companheiros durante dias. Doía, como doía, quando pensava que os filhotes da rolinha tinham morrido sem a companhia da mãe deles. Se estivesse com os filhos, naturalmente que ia ensinar-lhes a dar os primeiros vôos e  a catar comida nas migalhas da  terra. Nada podia fazer. Apenas prometer a mim mesmo que nunca mais ia usar um estilingue para caçar passarinho no mato ou em qualquer lugar da cidade  onde existisse uma árvore frutífera.
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