Rio de Janeiro Antes e Depois
Cyro de Mattos
A primeira vez que vi o Rio de Janeiro foi pela janelinha do
avião. Perde-se na memória dos anos
quando isso aconteceu. Por ter sido aprovado no exame do vestibular do curso de Direito, em Salvador, recebi como
presente do pai uma viagem para
conhecer o Rio de Janeiro onde permaneceria
durante trinta dias, divertindo-me e
conhecendo os lugares pitorescos da
cidade cantada como maravilhosa em nosso
cancioneiro.
Na minha terra natal, no interior da Bahia, e em Salvador, onde fui estudar o curso
clássico, ouvia ser chamada de maravilhosa a cidade que seduzia os brasileiros e gente que vinha
do estrangeiro para conhecê-la de perto,
com o seu jeito mestiço e alegre. Uma canção dizia que Copacabana era a
princesinha do mar, não existia praia mais bela cheia de luz, nas suas areias desfilavam sereias.
O Maracanã tinha jogos empolgantes, entre as principais equipes
cariocas, era uma festa de bandeiras, erguidas por torcedores vibrantes, a cada lance empolgante da partida
jogada no tapete verde. De qualquer lugar você via o Cristo abençoar
a cidade, os generosos braços abertos ao abraço imenso. O bondinho do Pão de Açúcar transportava gente brasileira e do estrangeiro para lá em
cima do morro percorrer os olhos
deslumbrados pela paisagem da cidade embaixo, cercada de morros e favelas,
povoada de edifícios como espigões que furavam o céu.
Do Pão de Açúcar você tinha a cidade a seus pés, pressentindo-a com o
seu ritmo por dentro, na alegria que
irrompia do futebol no Maracanã e
nas escolas de samba quando chegava o
Carnaval. Havia, nesse tempo bom para ser vivido, sempre
um sorriso na passagem da vida, embora as favelas fossem se expandindo por
vielas e becos, intimidando lá do morro
com as quadrilhas disputando o poder no tráfico de drogas. Gente perigosa descia a ladeira e no asfalto investia contra a cidade, tendo
no rosto o espanto do assalto
acompanhado da morte.
A cidade ainda não ultrapassava os limites sem fim do seu galope amarelo. Na Rua
do Catete, por exemplo, com sua gente nas esquinas, discutia-se futebol e política, as luzes dos postes
iluminavam à noite os ônibus e carros que passavam, alguns
gatos fugiam dos velhos
casarões e vinham caminhar nos passeios. O bairro do Flamengo era povoado de bares,
lojas e pensões, o vento trazido do mar
despejava o cheiro de maresia nos ares em silêncio.
Durante o dia, no centro, a cidade acontecia com um povo afobado, andando com pressa, a subir
nos ônibus, a encher os cafés e as lojas, a entupir os passeios, a zumbir como abelhas nos ruídos de uma colmeia
gigantesca. O barulhão dos motores e das buzinas, o fumaceiro dos ônibus, os
sacos de lixo nas calçadas, fregueses
comprando jornal ou revista nas bancas do passeio e das galerias, tudo isso
enchia de prognósticos a vida diária,
que a cada dia aumentava com sua
gente, entre o alegre e o triste, pressentida do prognóstico que iria extraviar-se por várias
direções.
A cidade ainda era cantada em prosa e
verso como a que tinha encanto de sobra, chegando a causar arrepio. Naqueles idos de 1968, depois da refeição do
jantar, ia com a esposa fazer o percurso entre a Rua Correia Dutra e o Largo do Machado. Era
bom caminhar despreocupado. Sentir o movimento da cidade que passava segura,
sem muita pressa. Voltávamos de mãos dadas, sem ter medo de nada, pois
aquele vento bom, que vinha do mar,
dava-nos a certeza de que viver naquela cidade grande valia a pena, chegando a
ser um privilégio.
Depois de transcorridos alguns anos
na cidade grande, voltei a residir em
minha terra natal, no interior baiano.
Os três filhos, já criados e
casados, deram-me seis netos. Quanta generosidade da vida! Se me perguntassem
se gostaria de morar hoje no Rio de Janeiro, seria difícil dizer sim. Nem sempre é fácil um homem do interior acostumar-se a morar
numa cidade imensa, com ritmo veloz e
intenso nos tempos de hoje, de disputa exacerbada pelo espaço, para não se
falar do medo que ultrapassou os limites
de seu galope amarelo.
Medo de ir ao supermercado. Medo de
andar de ônibus. Medo de sair de casa e
não voltar. Medo de ser alcançado pelo tiroteio trocado entre a polícia e os
traficantes de droga, em plena luz do
dia. Medo de ser atropelado por um ônibus, que subiu desembestado no passeio.
Medo de ser morto pela briga das torcidas antes mesmo de o jogo ser iniciado.
Medo de ser pisoteado na passeata pela multidão, que de repente confrontou-se com a facção
rival. Medo de ser queimado no ônibus.
Medo de ser morto por uma bala perdida
quando estava rezando na missa.
Meu Rio
de Janeiro, apesar de todos os traumas dos tempos atuais, gosto muito de você.
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