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sábado, 10 de agosto de 2019






                                  Uma Amizade Antiga

                                           Cyro de Mattos 


O livro é esse amigo que nos acompanha há séculos, possibilitando o crescimento interior. Conhecemos outras vozes do mundo com esse amigo. Inauguramos  a vida com novos olhares, superamos vícios e medos. Sabemos de casos que divertem, viajamos  por  terras nunca conhecidas. Damos voo à razão através da  linguagem que usa  para  cada tipo de leitor. Um de seus milagres consiste em tornar leve todo o peso terrestre feito  de solidões, angústias  e perdas. Sua amizade não trilha os caminhos do interesse, transpira  sinceridade. Com ele aprendemos que só talento não basta para quem quiser se tornar um filósofo, cientista ou poeta. É necessário  o hábito da leitura. Esse amigo está pronto para dizer que, vivendo  na sua companhia,  a vida fica mais fácil. Matamos até a morte. 
Gosta de se mostrar nas livrarias. O lugar mais digno para acomodá-lo  em nossa  casa é a biblioteca. Quem não tem poder aquisitivo para adquiri-lo,  pode achá-lo em uma   biblioteca pública.. Lá está nas prateleiras o amigo solidário,  esperando nossa  visita para uma conversa útil. Mostra muitas coisas numa cumplicidade que informa, dá prazer, encanta. Faz aparecer paisagens impossíveis, que  vão entrando  na  medida em que uma página puxa a outra..
Livro xilografado, impresso com pranchas de madeira gravadas. Em rolos de papiro e também de pergaminho, no Egito. Nas telas de seda da China. Recolhido em manuscritos, no trabalho paciente e anônimo dos bibliotecários de Alexandria. Livro da sabedoria, do Antigo Testamento. Filosófico, científico e literário. Repositório do pensamento humano, dos povos para os povos, de geração em geração, com seus rumores milenares.
Vem contribuindo para que o mundo mantenha portas e janelas abertas, o sol acenda manhãs, o vento sopre momentos que somam. Das formas primitivas às técnicas de editoração moderna,  com esse amigo, como o braço ao abraço, os seres humanos aprendem que os dias de exercitar  a existência e conhecer  o outro ficam menos falhos. 
          O padre Antônio Vieira disse certa vez que “o livro é um mudo que fala,  um surdo que responde, um cego que via, um morto que vive.”  Acho  que a  fala da nossa maior figura da oratória sacra combina com o que eu  li num para-choque de caminhão: “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê.”  Verdade. Hoje, na minha terceira idade, reli O Pequeno Príncipe, de Antoine Saint-Exupéry, a seguir  O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway. Saí depois  para a vida rejuvenescido.
De cabeceira ou de bolso, o livro é esse  fiel amigo por vias e arredios, capaz  de  dizer silêncios por meio dos sinais visíveis da escrita.  
Fiquei certa vez abatido por conta da afeição que nutro por esse amigo. Quando morei na fazenda São Bernardo, nas imediações de Ferradas, chão onde nasceu o  romancista do mundo Jorge Amado e o poeta Telmo Padilha,  os   livros que trouxe do Rio de Janeiro ficaram encaixotados até que pudesse comprar uma estante digna de recebê-los. E, numa noite sem estrelas, a chuva caiu pesada na terra centenária.  O telhado velho da pequena casa não suportou o volume da água que corria por entre as calhas.  Em pouco tempo, poças d’água formaram-se em vários cantos da casa por causa das goteiras.
No outro dia, encontrei molhados os caixões que guardavam velhos amigos. Lembro que apressado fui retirando do primeiro caixão  Além dos Marimbus,  de Herberto Sales, Uma Vida em Segredo, de Autran Dourado”, Poesias, de Manuel Bandeira, O Salto do Cavalo Cobridor, de Assis Brasil, Fábulas, de La Fontaine, Dom Quixote, de Cervantes,  Timeless Stories for Today and Tomorrow, de Ray Bradbury, Hamlet, de Faulkner, The Grass Harp, de Truman Capote,  A Metamorfose, de Kafka, O Muro, de Sartre, e A Moveable Feast, de Ernest Hemingway. Foram os livros mais atingidos pela chuva que  caíra  naquela noite cortada por relâmpago e trovoada. Páginas manchadas, letras borradas, capas danificadas. Ainda tentei salvá-los, espalhando-os abertos no passeio para que fossem aquecidos pelos raios de um  sol tímido.
Aqueles livros haviam sido adquiridos com o dinheiro da mesada que o pai mandava para o moço do interior na Capital, onde cursava a Faculdade de Direito.. Outros foram comprados nos meus anos de jornalista  no Rio de Janeiro. Meu coração sentia um tremor quando descobria um desses amigos na vitrina, balcão ou prateleira de livraria, acenando-me para que fosse adquiri-lo. 
À noite  peguei no sono como um herói inútil. Acordei deprimido no outro dia. Aqueles que não consegui salvar tinham me  ofertado ricos momentos de leitura, horas de sonho e palavras de amor varando as madrugadas. Madrugadas do homem solitário, que, no silêncio da noite, lograva  extrair sentidos  da vida com aqueles companheiros especiais. Jamais esqueci isso.  


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