RIO CACHOEIRA
Cyro de Mattos
Cada cidade ou região tem o seu rio,
com sua gente, águas, bichos e lendas. Escorrendo sentimentos líquidos, cada
pessoa carrega no coração o rio de sua cidade. Cachoeira é como se chama o rio
que atravessa a minha cidade. Divide-a em duas partes. Já teve lavadeiras,
aguadeiros, pescadores e tiradores de
areia quando ainda não existia a represa
próxima à Ponte Velha. Baronesas não ficavam entulhadas entre as pedras pretas,
espalhadas em vários trechos do rio. A Ilha do Jegue era comprida e nela nunca
se viu uma garça. Bocas de vômito não despejavam detritos nas águas claras.
Lavadeiras estendiam roupas que
coloriam as inúmeras pedras pretas. O rio lavava suas águas com o canto das
lavadeiras. Cores e cantos davam um belo visual ao velho rio. Pequenas
correntezas conversavam entre as pedras. O leito era límpido, dava para se ver
a areia com pedrinhas lisas e redondas.
Borboletas pousavam nas margaridas silvestres que cobriam os barrancos.
Andorinhas trissavam acima do rio quando acontecia o entardecer.
O rio Cachoeira perdeu muito de seu
encanto, sem as lavadeiras, os pescadores, os aguadeiros e os tiradores de
areia. De sol a sol, homens e meninos buscavam com suas pás no fundo do rio a areia, que servia para as
construções na cidade. Os jumentos transportavam em latas as cargas de areia.
Tempo bom para o areeiro retirar a areia do fundo do rio era nos meses de
verão. A cidade toda sabia, pelas mãos do areeiro, que o rio era uma dádiva e a
argamassa da casa feita de fibra específica: calo, suor e areia. O homem
passava pelas ruas, tangendo com a taca
os jumentos carregados de areia nas latas. As casas cochichavam. Areia sem a pá
não seria dádiva. Nada seria a pá sem a areia. Ajoelhando as fachadas, as casas
tomavam a velha bênção ao rio. Ao tirador de areia agradeciam comovidas.
Para quem não sabe, o velho Cachoeira já forneceu à cidade água boa no
bebedouro da vida. Esse tempo já vai longe, muito longe. Um tempo de fontes puríssimas do nosso rio. Foi
na infância da cidade quando ela tinha poucas ruas calçadas, três ou quatro
bairros. Tropeçava nas pernas quando era chegado o inverno. Caminhava alegre
batida pelos raios de sol quando era tempo de estio, o verão temperado de
ardências por entre verdes e azuis das safras.
Tempo melhor não havia para tomar
banho com os querido amigos nas águas do nosso rio.
O nosso rio Cachoeira ficava brabo nas
cheias, descia feito um réptil sem
tamanho, espumando e invadindo as ruas ribeirinhas, até mesmo a avenida do
comércio, a principal da cidade. Descia feito um bicho do outro mundo, levando
no lombo toro de pau, bicho morto, porta e janela. Algumas dessas enchentes
ficaram na memória do povo de minha cidade. Um poeta popular chegou a
fotografar em versos a zanga do pequeno rio. Leia um trecho do que o poeta
popular dizia.
As casas comerciais,
Assim que o dono chegava,
A que tinha ainda porta,
Quando ele a destrancava,
A sua mercadoria
Coberta de lama achava.
A
água levando tudo, Fazendo
o maior destroço, O pobre salvava a vida Com
água pelo pescoço.
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