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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Esse tempo de mim

 

                         Esse tempo de mim                                               

                             Cyro de Mattos

 

O Rio

 A cidade toda sabia que o rio era uma dádiva. Tão ser, tão pedra, tão água. À margem o efêmero ante o eterno que passava. Pelas mãos do areeiro a argamassa das casas era feita de fibra específica: calo, suor e areia.

 

Boi São Bernardo

Foi vendido velho para cumprir seu destino de boi: pasta em conserva de lata. Mas nunca ficou longe de mim. Com seu mugido ausente ecoando no verde.

 

King

Acompanhou-me nas incríveis aventuras. Tinha o melhor salto, o melhor olfato, o melhor agrado. Tempos depois se tornou uivo em hino. Até hoje patas no meu peito me festejam.

 

O Aguadeiro

Quando chegava o aguadeiro, o pessoal lá de casa não sabia o que era melhor. Se a água fresca e boa que o jumento trazia nos pequenos barris ou a limpidez de sua voz, amiga, anunciando a manhã cristalina.

 

O Trem

Não ficou fogo morto, nem sucata quando o trem deu o último apito. Permaneceu aquele percurso de vagões em trilhos festivos. Bandeirolas nas janelas interligando estações coloridas. Vales e morros, matas e roças, criaturas simples nos vilarejos e cidades pequenas repletas de surpresas generosas.

 

A Idade Pequena

Embora eu brincasse por todos os cantos da cidade, de maneira afoita e intensa, sujas não passavam minhas roupas pelas mãos da lavadeira.  No sol das manhãs claras certamente havia um fragor de espumas. Certamente as horas com música sem a impressão das impurezas.

 

O Leiteiro

Ensinava o preto velho a leitura do leite. Do seu amor, sua paz; sua generosidade,  sua alegria; de sua justiça, sua sabedoria; de seus sabores brancos e líquidos nunca me esqueço. De seu canto geral para matar todas as sedes no bebedouro da vida. Das manhãs sem mácula na cidade fresca.

 

O Areeiro

Quando homem passava com os jumentos carregados de latas de areia, cochichavam as casas que a areia sem a pá não seria dádiva e a pá sem a areia não seria inventiva. E tomavam contritas a sua bênção  ao velho rio, ajoelhando suas fachadas.

 

 

Doceira

Velhas doceiras de minha cidade, cativando com açúcar. Minha mãe era uma delas. Em suas mãos de mel, até certo ponto divinas, lambuzando-me com sorrisos, as amargas nunca.

O Sábio

Um dia, o homem mais velho da cidade, beirando  cem anos,  disse-me: “Sábio é o que descobre a importância da vida nos seres e coisas comuns”. No rosto enrugado pelo tempo, com a voz serena, disse  mais:  “A inveja, o ódio, a mentira e a intriga são as bebidas preferidas dos que bebem                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            os dias como cães. Roubam a  beleza da vida. Buscam matar Deus”. 

 

O Campeador

De verde gibão,  cruz no chapéu, nas manhãs acesas pelo sol do verão,  montado no meu burrico sempre vencia a solidão.

 

A Mãe: Sempre dizia, primeiro a obrigação, depois a diversão. Em tua partida, não regresso, não ouvi mais aquela voz suave, que me abrigava da chuva cortada por relâmpagos e trovoadas. Até hoje continuei apalpando-me nessa viagem pelo chão de forasteiro.

 

A Chuva

A chuva agora, em meu tempo adulto, quando escorre nas telhas já não  conta  uma boa história, não me traz  o sono com o sonho temperado de verdes e azuis,  tomado emprestado à aventura da vida pelos campos de vento e flor. 

 

Viver

É estar no que eu fui, no que sou e no que serei. É perder o presente em cada instante. Enquanto o tempo repete-se, não muda. Mudo eu, muda você, para isso fomos feitos, passamos, como esse vento que aqui apareceu e sumiu num instante. É isso mesmo, vê nascer, vê morrer, nada se pode fazer. Ai de mim. E Deus? Deus é. 

 

O Velho Rio

E dizer que este rio, antes de ser um esgoto a céu aberto, ofereceu água de beber das suas fontes límpidas à cidade quando não tinha um sistema de abastecimento como hoje. Havia peixe em abundância.  Gente simples que coloria o visual com cantigas de amor no esforço dos dias. A lavadeira, o tirador de areia, o pescador, o aguadeiro. Os meninos faziam dos barrancos trampolins improvisados.  Por que desceram todos eles na canoa rumo ao mar de Ilhéus e nunca mais retornaram? Cachoeira o teu nome, do rio morto de sede, que chora água.

 

Amada

Bastou encontrar-te para tornar-me campeador no campo dos dilemas. Sem temer os que não querem aceitar um homem desse feito, inventor de ingenuidades.  Que nada ambiciona, um pobre homem, do mundo só deseja o belo.

 

 

 

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

 

TRÊS INFORMAÇÕES DA ACADEMIA DE LETRAS DE ITABUNA - ALITA

 

FELLINI

 

Toda a Itália festeja este ano o centenário de um dos maiores gênios do Séc. XX, o cineasta Federico Fellini, de tantas obras-primas, patrimônios da Sétima Arte. São muitas as manifestações, e uma delas, talvez a mais significativa, será a inauguração do Museu Internacional Fellini, em Rimini, sua cidade natal, na costa adriática da bota italiana. E o mundo também o homenageia: aqui em Salvador, a Editora da Universidade Federal da Bahia - Edufba, dirigida por Flávia Goulart Rosa, acaba de lançar "Diálogos com Fellini", organizado por Cássia Lopes e Paulo Henrique Alcântara. O livro reúne textos deles, de Antonella Rita Roscilli (de Roma) e Mauro Porru, entre outros, num total de 11 artigos.

 

ATELIÊ FRANCÊS

 

Um grupo de jornalistas internacionais da APE, que é a Associação da Imprensa Estrangeira de Paris, já tem encontro marcado após as férias de verão, na capital francesa: vão visitar o fantástico ateliê da Reunião dos Museus Nacionais da França, e do Grand Palais que fica nos Champs-Élysées. É onde técnicos e artistas moldam e fabricam cerca de seis mil peças conhecidas mundialmente, a partir das obras-primas, e que ficam à venda nas butiques desses museus. Será no dia 19 de setembro, e à frente da iniciativa está a diretora de comunicação das butiques da RMN, Sophie Mestiri.

 

 

PROSA E POESIA

 

 Membro das Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna,  publicado também  no exterior, Doutor Honoris Causa da Uesc - Universidade Estadual Santa Cruz, autor de extensa obra, de vários gêneros, o escritor e poeta Cyro de Mattos acaba de publicar pela editora baiana Via Litterarum o livro “Poesia e Prosa no Sul da Bahia”, com capa do consagrado desenhista Juarez  Paraíso,  também membro da Academia de Letras da Bahia. Na obra, estuda autores que enfocam em seus textos a civilização cacaueira ou mantém com ela  laços de origem,  sintonizados na raiz com  um contexto de natureza, cultural, singular e importância histórica.
           Segundo Cyro, esse livro de ensaios, alguns escritos ao longo do tempo,  reúne  nomes consagrados que  ultrapassaram as fronteiras nacionais, outros que  são reconhecidos em nível nacional e alguns que  são retirados   dos limites de seu município, onde se encontram,  por certas circunstâncias,  fora de uma circulação literária  mais abrangente, o que nem sempre parece justo.  A obra funciona como testamento crítico valioso sobre a produção de uma região poderosa no campo das letras,  que  vem contribuindo para a expansão do acervo cultural e literário da Bahia e do Brasil.  
            No volume de 350 páginas, Cyro de Mattos estuda obras de 47 autores sulinos do Estado da Bahia. Entre eles estão: Jorge Amado, Adonias Filho, Sosígenes Costa, Telmo Padilha, Valdelice Soares Pinheiro,  Sônia Coutinho, Ricardo Cruz, Lilia Gramacho, Florisvaldo Mattos, Marcos Santarrita,  Piligra, Abel Pereira, Jorge Medauar, Ildázio Tavares, Euclides Neto, Afrânio Peixoto, Adelmo Oliveira, Hélio Pólvora, Fernando Leite Mendes,  Margarda Fahel,  Jorge Araújo e  Minelvino, dentre outros.

Para Gerana Damulakis, “uma coisa admirável nos  ensaios de Cyro de Mattos  é o fato de não ficar citando Roland Barthes, Deleuze, Derrida etc etc etc. Seus ensaios são verdadeiros ensaios, como os compreendo, como José Paulo Paes compreendia. Atualmente, os ensaístas se preocupam apenas em citar vários nomes que estão na moda. Na verdade, não dizem nada, reproduzem os outros. Seus ensaios plasmam o resultado de sua reflexão após a leitura e, como escritor que ele é,  oferece ao leitor uma percepção aguda da leitura realizada.”

 Gerana Damulakis é  crítica com vários livros publicados, durante dez anos assinou a coluna Leitura Crítica do Jornal A Tarde, pertence à  Academia de Letras da Bahia.

 

 

 

 

domingo, 16 de agosto de 2020

 

                    O  cego Marujo

                       Cyro de Mattos

                    

                 Na minha infância conheci criaturas interessantes que, na maneira de ser de cada uma delas,  davam cores e sons à cidade. Faziam parte do espetáculo da vida onde  quer que se apresentassem.  O cego Marujo era uma delas. Fazia ponto com a sua viola inseparável no estacionamento  de ônibus, que ficava no centro da cidade, atrás do prédio do Instituto de Cacau da Bahia, perto do Ginásio Divina Providência. 

         As marinetes, assim chamados os ônibus de cadeira dura daquela época,  chegavam e saíam daquele local  movimentado com  gente próspera e modesta. Ali,  os carregadores entregavam  os embrulhos grandes pelas janelas aos passageiros que  retornavam  a alguma cidade circunvizinha. Não importava o tempo, chuvoso ou de estio, lá estava o cego Marujo dedilhando a viola ao peito, a cuia ao lado.

         Ficava no passeio, embaixo da marquise, junto à entrada  para os guichês onde os passageiros compravam a passagem.  Antes que o ônibus partisse,  passageiros gostavam de ouvir o cego Marujo dedilhando a viola, que gemia ao peito. A cuida ia se enchendo de cédulas de dinheiro e  moedas na medida que ele ia tirando  suas cantigas, dizendo de coisas alegres e tristes, das ocorrências rotineiras que serviam de alimento à memória da cidade.

     .  Desfiava na viola a história que falasse de algum assunto  bastante comentado na cidade, como o da mulher  que foi esfaqueada pelo marido ciumento quando o casal atravessava a Ponte  Velha.  O marido acusava de estar sendo traído pela mulher com o vizinho.  A pobre coitada só fazia cuidar dos  afazeres da casa e fazer a comida gostosa para o marido ciumento. No meio da discussão acirrada, o marido golpeou a infeliz com várias facadas. Melado de sangue,  sem saber o que fazer depois da cena alucinada,   o marido ciumento  jogou da ponte o corpo da mulher no rio e saiu disparado rumo ao centro da cidade,  gritando que era um homem desgraçado.

      Outra vez o cego Marujo desfiou a cantiga da mulher que pariu no meio da Ponte Velha. Teve sorte. Deu à luz com a ajuda de duas mulheres idosas,  que cedo  iam fazendo a travessia na ponte.  Pariu um menino graúdo. Não deu um gemido durante o parto, não chorou, , não  fez cara feia.  Levantou-se com a ajuda das duas mulheres  que fizeram o parto. Saiu andando como se nada de mais tivesse acontecido, o menino nos braços, no rosto alegre o sorriso gordo.  

            Se o cego Marujo não enxergava, os olhos estavam submersos nas sombras,  como era que conseguia gravar aquelas histórias,  que pareciam  publicadas nos  cordéis escritos pelos  trovadores da cidade?  Comentava-se que o seu guia, um menino negro, esperto,  era quem lia as histórias de cordel  para ele no barraco onde moravam no bairro da Conceição. Ele fazia a música e encaixava a letra no  cordel  cujo conteúdo  mais o marcava. Mas também improvisava com  cantigas baseadas em histórias que ele mesmo inventava.

           Gostava de fazer o  público sorrir quando estava  aglomerado  diante dele. Certa vez, ouvi o cego Marujo  falar do tempo que era jovem, enxergava até agulha na areia, era pescador que saía cedo  para pegar o peixe  nos longes do mares bravios.

 

          O barco parecia brinquedo

          Nas mãos da onda gigante,

         Que assombrava a tripulação,

          Marujo não tinha medo,

         Quanto maior fosse o perigo

         Causando enorme  aflição.

 

       Não viesse pescar comigo   

       Nos mares longes  de Ilhéus

      Homem que fosse frouxo,

     Goste de sombra fresca,   

     Dormir gostoso na cama,    

    Comer mulher de bunda gorda.  

              

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

 

Poema en gratitud de mis amigos

 

 

Para Cyro de Mattos, David de Medeiros Leite

y Alfredo Pérez Alencart

 

La fe se me olvida, no la encuentro.

La noche se me cierra en los ojos,

me deja desmayado en mis despojos.

No sé en qué vacío, quedo, entro.

 

Me voy a las orillas, no es el centro

el sitio al que tiendo. Mis enojos

preceden mi llegada. Son muy flojos

los deseos del bien que llevo dentro.

 

Mas siempre mis amigos me acompañan.

No dejan que me duerma en mi sueño.

Me escriben y me enseñan cómo dañan

 

las sombras de las dudas mi empeño.

A quienes son de Dios no los engañan.

Vivimos si lo hacemos nuestro Dueño.

 

 

Xalapa-Equez., Veracruz, México, 10 de agosto de 2020

Juan Angel Torres Rechy

 

terça-feira, 4 de agosto de 2020



Minhas Palavras


Cyro de Mattos 


Ontem foi Joca,

Luís Henrique

Logo depois,

Agora o Jorge

De sobrenome

Portugal

Mas na verdade

Outro Jorge da Bahia.

Quantas perdas

De gente  amada,

Que nos ensinou

Que mãos nas mãos

A vida é possível.

Só nos deram amor.

Que Deus receba

Nesta  hora o Jorge

Santamarense

No seu amor de Pai.