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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Cyro de Mattos Empossado no Pen Clube do Brasil

Discurso do Homem Real     

                                     
                                     Cyro de Mattos

            Ilma. Sra. Vice-Presidente do Pen Clube do Brasil,  Escritora Clair Matos. Na sua  pessoa,  estou saudando os ilustres integrantes desta Mesa.
            Illma. Sra. Doutora Olívia Barradas, estimada conterrânea, que  muito honra a Bahia com o brilho de sua inteligência e erudição, a quem agradeço as palavras ressaltando aspectos de minha obra literária. Incentivam-me a continuar na jornada.   
           Meus senhores, minhas senhoras.    
            Vou começar lendo este poema:

 Lá longe o velho sol
Não pintava os desertos
Com as cores da  manhã.
A lua não espalhava dores,
A chuva não fecundava
O ventre mineral da terra.
O vácuo inútil era tudo.
A  razão e a emoção
Estenderam a palavra
No vazio do mundo.
Com suspiros e pesares
A vida deu-me os sabores.
A poesia, os rumores.

              Assim é que eu chego a esta Casa das Letras, portador da crença de que sou útil à sociedade quando me exerço na aventura da linguagem. Bem sei que, nesta aventura, não consigo solucionar os problemas econômicos, políticos, sociais e religiosos. Mas é assim mesmo que eu sou e caminho entre seres e coisas, o guardador de memórias, cúmplice do eterno riscado num instante.  É esta minha maneira de estar sozinho, dar testemunho ao meu tempo.  Ainda que seja um grão no deserto, onde tudo eu arrisco, todo tecido de ilusão é esta minha condição,  o meu lugar, pois é aqui que me sinto como um homem real. Sem essa hora no caos desencanto-me. Lembro Fernando Pessoa: “Tudo é ilusão. Sonhar é sabê-lo”. Com a palavra que me representa nos instantes idênticos de dores e ternuras, fecunda o imaginário  e escuta o espírito do mundo  é que busco dizer em versos o contrário das coisas. Escrevo histórias para adultos e crianças pensando tornar a vida viável. Descubro rostos, abro portas,  questiono fissuras e rupturas, sou surpreendido com graça e alegria no reino dos pequenos.  Acontece a reinvenção  do pensamento lógico e do pensamento mágico. Os  sinais visíveis da escrita, tão antigos, são que me anunciam cativo da solidão solidária. Bem ou mal, tentam dizer o quanto eu sou  no certame do amor e da dor. Afirmam que sem a literatura  não há a lágrima, o beijo, o sorriso, o epitáfio. Não há a música dos sentidos.   
                Com a literatura sou  capaz de mergulhar no tempo e constatar que na idade dos homens o país do antigamente  tem o gosto de uma fruta que termina. Fica sem os verdes e os azuis, trancado lá dentro. Assim está minha voz no poema “Infância”.

 
O meu boi morreu
Que será de mim?
Não posso ir buscar outro
Nem lá em Pasárgada
Nem lá no Piauí.

Quem matou meu boi?
Foi a pancada dessa chuva,
O febrão desse verão,
A dureza dessa pedra
Quando topei e caí?

Na gangorra dos quintais,
Nas águas de meu rio,
Nos campos de futebol
Dos terrenos baldios
Quem matou meu boi?

Montava no lombo dele,
Eu voava com meu boi,
Eu saia aí pelo mundo
Que conhecia num só dia,
Sem precisar ir longe daqui.


Meu boi mágico de circo,
Meu boi bumba-meu-boi.
Meu boi divino no Natal
Meu boi palhaço no carnaval.
Quem matou meu boi?

No rigor de atitude o tempo
Que comanda o mundo
E não depende de mim
Foi o que matou meu boi?
Quem me dera fosse estrela
Para dançar com meu boi
No folguedo de madrinha-lua.

Botava ele pra comer capim
Beber água da bica no cocho
Feito de casca de cacau.
Eu adormecia sem ter medo
Quando ele cantava para mim
Que tinha uma cara preta.
Quem matou meu boi
Não sabe o que fez de mim.

            Sem a literatura nunca vou dizer do homem no gesto de extrema brutalidade. De seu ataque às Torres Gêmeas  fazendo ressoar o mundo a Deus como absurdo. Assim escrevi o poema “Derrame de Dor”, dedicado à memória daqueles que morreram vítimas de tamanha estupidez, em 11  de setembro de 2001, em Nova York.


Ceifados os sonhos pela fúria do insano matador
Dor e tristeza soluçam pelos que morrem sem defesa.
Tantos e nada podem fazer para provar a inocência.
Nessas duas torres da agonia. Nesse trágico voo cego
Partilhado com o pânico. Por mais que eu saiba 
Os dias errantes e nefastos de duas guerras mundiais
Que se instalam com horror no inferno de nós mesmos.
Sinto  o gosto de  Guernica, Pearl Harbor, Hiroshima.
O  quanto sou nos escombros. Todo esse peso terrestre
Estraçalho no peito diluviano. Agacho-me sem limites. 
Escrevo-me às avessas deslocando sem dó e lágrima
A eterna aurora para o mais profundo dos abismos.
Ó peleja de traumas. Arde sem trégua. Vaza gritos
Que  ferem. Sufoca-me no terror do mundo fugindo.  
Seus  ritmos rasgam  a manhã nas  desconstruções do ego. 
 Habito este  som  e não entendo. Este modo feito medo.
Os gemidos da noite. O embate da fúria repetindo negações. Contra o amor e o riso. Como dói. Como dói tudo isso.

       Há quem ache que ser escritor é destino, fatalidade que começa mal desponta a manhã.  Não deve ser nada bom. Não pode ser mesmo para quem sustenta, na sua maneira de achar estranha a vida, todo o peso terrestre, embora existam os pássaros cantando a madrugada com suas cores suaves.  Para que serve a poesia? Respirar e viver, disse Borges. Expressar que dentro de mim o rio flui, o mar cerca por todos os lados, anotou Eliot. Para que serve o romance? Conhecer Deus e o diabo nas vastidões do sertão alado do mineiro Guimarães Rosa. Ler o mundo quando ele diz que maior do que os confins daquele sertão mineiro é o que descamba sem fim depois do lado de lá, naquele destamanho de um enigma que ninguém consegue decifrar.  
      Precisamos da literatura como a atmosfera. Dela nos servimos para inaugurar novos sentidos da vida. Sem querer polemizar, penso que a literatura é uma profissão da qual não pode fugir quem a abraçou de verdade. É condição,  ato ou efeito de professar, perseguir, proferir crenças e valores. Declarar publicamente ao outro que não vivemos sozinhos, navegamos em águas precárias em que as perplexidades avultam. Nosso discurso não é feito para agradar a grupos. Com a diversidade que celebra seres e coisas, costuma perdurar nas lembranças, incertezas e esperanças. Se quiserem, pode ser uma missão, pois tudo dá ao outro sem nada querer de volta. A literatura é capaz de salvar o mundo. É o caminho  para que os povos encontrem-se como  irmãos, sintam-se em total união do amor como verdade.
       Peço a vocês um pouco mais de tolerância. Desculpas por estar dizendo o que vocês todos sabem. Já vou terminar  com meu jeito de homem do interior nascido no sul da Bahia, região que já teve ricas e vastas plantações de cacau e que deu para o mundo os romancistas Jorge Amado e Adonias Filho, mas que também acontece com outros talentosos escritores e artistas.  Sou de Itabuna, cidade  importante de um território que ocupa lugar de destaque nas letras brasileiras.  Com os meus passos hesitantes de quem inicia nova experiência de vida, de homem que preferiu ser um fazendeiro do ar ao invés de abastado produtor de ouro vegetal,  bato palmas e digo:  Ô de casa, gente, posso entrar? Peço licença para sentar entre os membros titulares  desta Casa das Letras. Venho aprender com todos vocês, personalidades importantes de nossas letras, de como é necessária,  hoje como ontem,  a defesa da liberdade de expressão para que o ser humano devolva a ele o que sempre foi de sua essencialidade: o braço ao abraço, as mãos nas mãos, pois assim a vida fica mais fácil.   Venho para  desfrutar de um convívio saudável, que transita com desejos e afetos, de tal sorte nas ondas da compreensão que anima a incrível complexidade da vida.   
       Agradeço a Deus por ter me colocado nesta estrada, fazendo com que chegasse até aqui; à minha esposa Mariza,  neste instante compartilhando com o amado a vida com alegria; à Doutora Helena Parente Cunha, conterrânea  sempre lembrada, escritora de minha admiração, amiga que me indicou para ingressar nesta Casa; ao presidente Cláudio Aguiar, que mesmo impossibilitado de comparecer a esse evento por motivos de saúde sempre se mostrou diligente para que tudo fosse bem realizado; e a vocês, que vieram prestigiar, meus sinceros agradecimentos. 
         Termino como gosto em ocasiões como essa.
          Leio o poema que escrevi ontem, à noite, no hotel:

A Árvore e a Poesia

A árvore dá as flores
A  poesia dá o perfume
Nos fios sem fim do sonho

A árvore dá os frutos
A poesia dá as palavras
Onde põe suas verdades

A árvore dá a casca
A poesia dá as rugas
No galope do tempo

A árvore dá as folhas
A poesia dá as visões
Nas vestes da vida e da morte




*Discurso proferido pelo escritor e poeta Cyro de Mattos, ao ser empossado no Pen Clube do Brasil como Membro Titular, em 23 de outubro último, no Rio de Janeiro.




O poeta Cyro de Mattos mostra aos convidados seu diploma de membro titular do Pen Clube do Brasil; na mesa oficial, a vice-presidente Clair Mattos, o escritor Eduardo Portella, da Academia Brasileira de Letras, e doutora Olívia Barradas, Professora Emérita da UFRJ, que proferiu o discurso de saudação.


O poeta Cyro de Mattos com os professores  Olívia Barradas e Eduardo Portella.


 O poeta adentra o salão nobre do Pen, conduzido pela escritora Gilda Sousa Campos.


Escritora Luíza Lobo, Olívia Barradas, Eduardo Portella, Cyro de Mattos, esposa Mariza e a escritora Helena Parente Cunha, Professora Emérita da UFRJ.



Cyro de Mattos na mesa oficial com o doutor Bernardo Maciel, vice-presidente Clair  Mattos, Eduardo Portella e Olívia Barradas.


O poeta assinando a ata de sua posse no Pen. 

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