Discurso
do Homem Real
Cyro de Mattos
Ilma. Sra. Vice-Presidente do Pen Clube do
Brasil, Escritora Clair Matos. Na
sua pessoa, estou saudando os ilustres integrantes desta
Mesa.
Illma. Sra. Doutora Olívia Barradas,
estimada conterrânea, que muito honra a
Bahia com o brilho de sua inteligência e erudição, a quem agradeço as palavras
ressaltando aspectos de minha obra literária. Incentivam-me a continuar na
jornada.
Meus senhores, minhas senhoras.
Vou começar lendo este poema:
Lá longe o velho sol
Não
pintava os desertos
Com as
cores da manhã.
A lua
não espalhava dores,
A chuva
não fecundava
O
ventre mineral da terra.
O vácuo
inútil era tudo.
A razão e a emoção
Estenderam
a palavra
No
vazio do mundo.
Com
suspiros e pesares
A vida
deu-me os sabores.
A
poesia, os rumores.
Assim é que eu chego a esta Casa
das Letras, portador da crença de que sou útil à sociedade quando me exerço na
aventura da linguagem. Bem sei que, nesta aventura, não consigo solucionar os
problemas econômicos, políticos, sociais e religiosos. Mas é assim mesmo que eu
sou e caminho entre seres e coisas, o guardador de memórias, cúmplice do eterno
riscado num instante. É esta minha
maneira de estar sozinho, dar testemunho ao meu tempo. Ainda que seja um grão no deserto, onde tudo
eu arrisco, todo tecido de ilusão é esta minha condição, o meu lugar, pois é aqui que me sinto como um
homem real. Sem essa hora no caos desencanto-me. Lembro Fernando Pessoa: “Tudo é
ilusão. Sonhar é sabê-lo”. Com a palavra que me representa nos instantes idênticos
de dores e ternuras, fecunda o imaginário e escuta o espírito do mundo é que busco dizer em versos o contrário das
coisas. Escrevo histórias para adultos e crianças pensando tornar a vida viável.
Descubro rostos, abro portas, questiono
fissuras e rupturas, sou surpreendido com graça e alegria no reino dos
pequenos. Acontece a reinvenção do pensamento lógico e do pensamento mágico. Os
sinais visíveis da escrita, tão antigos,
são que me anunciam cativo da solidão solidária. Bem ou mal, tentam dizer o
quanto eu sou no certame do amor e da
dor. Afirmam que sem a literatura não há
a lágrima, o beijo, o sorriso, o epitáfio. Não há a música dos sentidos.
Com a literatura sou capaz de mergulhar no tempo e constatar que
na idade dos homens o país do antigamente tem o gosto de uma fruta que termina. Fica sem
os verdes e os azuis, trancado lá dentro. Assim está minha voz no poema “Infância”.
O meu boi morreu
Que será de mim?
Não posso ir buscar outro
Nem lá em Pasárgada
Nem lá no Piauí.
Quem matou meu boi?
Foi a pancada dessa chuva,
O febrão desse verão,
A dureza dessa pedra
Quando topei e caí?
Na gangorra dos quintais,
Nas águas de meu rio,
Nos campos de futebol
Dos terrenos baldios
Quem matou meu boi?
Montava no lombo dele,
Eu voava com meu boi,
Eu saia aí pelo mundo
Que conhecia num só dia,
Sem precisar ir longe daqui.
Meu boi mágico de circo,
Meu boi bumba-meu-boi.
Meu boi divino no Natal
Meu boi palhaço no carnaval.
Quem matou meu boi?
No rigor de atitude o tempo
Que comanda o mundo
E não depende de mim
Foi o que matou meu boi?
Quem me dera fosse estrela
Para dançar com meu boi
No folguedo de madrinha-lua.
Botava ele pra comer capim
Beber água da bica no cocho
Feito de casca de cacau.
Eu adormecia sem ter medo
Quando ele cantava para mim
Que tinha uma cara preta.
Quem matou meu boi
Não sabe o que fez de mim.
Sem a literatura nunca vou dizer do
homem no gesto de extrema brutalidade. De seu ataque às Torres Gêmeas fazendo ressoar o mundo a Deus como absurdo. Assim
escrevi o poema “Derrame de Dor”, dedicado à memória daqueles que morreram
vítimas de tamanha estupidez, em 11 de
setembro de 2001, em Nova York.
Ceifados
os sonhos pela fúria do insano matador
Dor e
tristeza soluçam pelos que morrem sem defesa.
Tantos
e nada podem fazer para provar a inocência.
Nessas
duas torres da agonia. Nesse trágico voo cego
Partilhado
com o pânico. Por mais que eu saiba
Os dias
errantes e nefastos de duas guerras mundiais
Que se
instalam com horror no inferno de nós mesmos.
Sinto
o gosto de Guernica, Pearl Harbor,
Hiroshima.
O quanto sou nos escombros. Todo esse peso
terrestre
Estraçalho
no peito diluviano. Agacho-me sem limites.
Escrevo-me
às avessas deslocando sem dó e lágrima
A
eterna aurora para o mais profundo dos abismos.
Ó
peleja de traumas. Arde sem trégua. Vaza gritos
Que ferem. Sufoca-me no terror do mundo fugindo.
Seus ritmos rasgam a manhã nas
desconstruções do ego.
Habito este som e não
entendo. Este modo feito medo.
Os
gemidos da noite. O embate da fúria repetindo negações. Contra o amor e o riso.
Como dói. Como dói tudo isso.
Há quem ache que ser escritor é destino,
fatalidade que começa mal desponta a manhã. Não deve ser nada bom. Não pode ser mesmo para
quem sustenta, na sua maneira de achar estranha a vida, todo o peso terrestre,
embora existam os pássaros cantando a madrugada com suas cores suaves. Para que serve a poesia? Respirar e viver,
disse Borges. Expressar que dentro de mim o rio flui, o mar cerca por todos os
lados, anotou Eliot. Para que serve o romance? Conhecer Deus e o diabo nas
vastidões do sertão alado do mineiro Guimarães Rosa. Ler o mundo quando ele diz
que maior do que os confins daquele sertão mineiro é o que descamba sem fim
depois do lado de lá, naquele destamanho de um enigma que ninguém consegue decifrar.
Precisamos da literatura como a atmosfera.
Dela nos servimos para inaugurar novos sentidos da vida. Sem querer polemizar,
penso que a literatura é uma profissão da qual não pode fugir quem a abraçou de
verdade. É condição, ato ou efeito de
professar, perseguir, proferir crenças e valores. Declarar publicamente ao
outro que não vivemos sozinhos, navegamos em águas precárias em que as
perplexidades avultam. Nosso discurso não é feito para agradar a grupos. Com a
diversidade que celebra seres e coisas, costuma perdurar nas lembranças, incertezas
e esperanças. Se quiserem, pode ser uma missão, pois tudo dá ao outro sem nada
querer de volta. A literatura é capaz de salvar o mundo. É o caminho para que os povos encontrem-se como irmãos, sintam-se em total união do amor como
verdade.
Peço a vocês um pouco mais de
tolerância. Desculpas por estar dizendo o que vocês todos sabem. Já vou
terminar com meu jeito de homem do
interior nascido no sul da Bahia, região que já teve ricas e vastas plantações
de cacau e que deu para o mundo os romancistas Jorge Amado e Adonias Filho, mas
que também acontece com outros talentosos escritores e artistas. Sou de Itabuna, cidade importante de um território que ocupa lugar
de destaque nas letras brasileiras. Com
os meus passos hesitantes de quem inicia nova experiência de vida, de homem que
preferiu ser um fazendeiro do ar ao invés de abastado produtor de ouro vegetal,
bato palmas e digo: Ô de casa, gente, posso entrar? Peço licença
para sentar entre os membros titulares
desta Casa das Letras. Venho aprender com todos vocês, personalidades importantes
de nossas letras, de como é necessária, hoje como ontem, a defesa da liberdade de expressão para que o ser
humano devolva a ele o que sempre foi de sua essencialidade: o braço ao abraço,
as mãos nas mãos, pois assim a vida fica mais fácil. Venho para desfrutar de um convívio saudável, que
transita com desejos e afetos, de tal sorte nas ondas da compreensão que anima a
incrível complexidade da vida.
Agradeço a Deus por ter me colocado
nesta estrada, fazendo com que chegasse até aqui; à minha esposa Mariza, neste instante compartilhando com o amado a
vida com alegria; à Doutora Helena Parente Cunha, conterrânea sempre lembrada, escritora de minha admiração,
amiga que me indicou para ingressar nesta Casa; ao presidente Cláudio Aguiar,
que mesmo impossibilitado de comparecer a esse evento por motivos de saúde sempre
se mostrou diligente para que tudo fosse bem realizado; e a vocês, que vieram
prestigiar, meus sinceros agradecimentos.
Termino como gosto em ocasiões como essa.
Leio o poema que escrevi ontem, à
noite, no hotel:
A
Árvore e a Poesia
A
árvore dá as flores
A poesia dá o perfume
Nos
fios sem fim do sonho
A
árvore dá os frutos
A
poesia dá as palavras
Onde
põe suas verdades
A
árvore dá a casca
A
poesia dá as rugas
No
galope do tempo
A
árvore dá as folhas
A
poesia dá as visões
Nas
vestes da vida e da morte
*Discurso proferido pelo escritor e poeta Cyro de Mattos, ao ser
empossado no Pen Clube do Brasil como Membro Titular, em 23 de outubro último,
no Rio de Janeiro.
O poeta Cyro de Mattos mostra aos convidados seu diploma de membro titular do Pen Clube do Brasil; na mesa oficial, a vice-presidente Clair Mattos, o escritor Eduardo Portella, da Academia Brasileira de Letras, e doutora Olívia Barradas, Professora Emérita da UFRJ, que proferiu o discurso de saudação.
O poeta Cyro de Mattos com os professores Olívia Barradas e Eduardo Portella.
O poeta adentra o salão nobre do Pen, conduzido pela escritora Gilda Sousa Campos.
Escritora Luíza Lobo, Olívia Barradas, Eduardo Portella, Cyro de Mattos, esposa Mariza e a escritora Helena Parente Cunha, Professora Emérita da UFRJ.
Cyro de Mattos na mesa oficial com o doutor Bernardo Maciel, vice-presidente Clair Mattos, Eduardo Portella e Olívia Barradas.
O poeta assinando a ata de sua posse no Pen.
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