Esse Tempo de Mim
Cyro de Mattos
O Rio
A cidade toda sabia que o rio era uma dádiva. Tão ser, tão pedra, tão água. À margem o efêmero ante o eterno que passava. Pelas mãos do areeiro a argamassa das casas era feita de fibra específica: calo, suor e areia.
Boi São Bernardo
Foi vendido velho para cumprir seu destino de boi: pasta em conserva de lata. Mas nunca ficou longe de mim. Com seu mugido ausente ecoando no verde.
King
Acompanhou-me nas mais incríveis aventuras. Tinha o melhor salto, o melhor olfato, o melhor agrado. Tempos depois se tornou uivo em hino. Até hoje patas no meu peito me festejam.
O Aguadeiro
Quando chegava o aguadeiro, o pessoal lá de casa não sabia o que era melhor. Se a água fresca e boa que o jumento trazia nos carotes ou a limpidez de sua voz, amiga, anunciando a manhã cristalina.
O Trem
Não ficou fogo morto, nem sucata quando o trem deu o último apito. Permaneceu aquele percurso de vagões em trilhos festivos. Bandeirolas nas janelas interligando estações coloridas. Vales e outeiros, pastos e roças, criaturas simples nos vilarejos e cidades pequenas repletas de surpresas magníficas.
A Idade Pequena
Embora eu brincasse como qualquer menino por todos os cantos da cidade, de maneira afoita e intensa, sujas não passavam minhas roupas pelas mãos da lavadeira. No sol das manhãs claras certamente havia um fragor de espumas. Certamente as horas com música sem a impressão das impurezas.
O Leiteiro
Ensinava o preto velho a leitura do leite. Do seu amor, sua paz; de sua generosidade, sua alegria; de sua justiça, sua sabedoria; de seus sabores brancos e líquidos nunca me esqueço. De seu canto geral para matar todas as sedes no bebedouro da vida. Das manhãs sem mácula na cidade fresca.
O Areeiro
Quando homem passava com os jumentos carregados de latas de areia, cochichavam as casas que a areia sem a pá não seria dádiva. e a pá sem a areia não seria inventiva. E a bênção tomavam ao rio, ajoelhando suas fachadas.
Doceira
Velhas doceiras de minha cidade, cativando com açúcar. Minha mãe era uma delas. Em suas mãos de mel, as amargas nunca.
O Sábio
Um dia, o homem mais velho da cidade, beirando 100 amos de idade, disse-me: “Sábio é o que descobre a importância da vida nos seres e coisas comuns”. No rosto enrugado pelo tempo, com a voz serena, disse mais: “A inveja, o ódio, a mentira e a intriga são as bebidas preferidas dos que bebem os dias como cães. Roubam a beleza da vida. Buscam matar Deus”.
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