Cyro de Mattos
Matou os pássaros. Nem ligou para a mancha que envergonha, afogando o canto e a plumagem. Renovou a sua sede, estúpido na fome de novo se impeliu. Envenenou os peixes. Uivou, como um bicho, para o sol, que fechou as pálpebras quando viu aquelas águas oleosas.
Ondas no peito dos outros ressoaram, em dó e lágrima, batendo, voltando, batendo. De ira excedeu-se, desamor era o que o coração mais queria. Botou fogo no verde. Da relva a lágrima correu por entre vastidões desoladas. Da flor carbonizada resultaram borboletas ausentes de odores e fragrâncias. Sem finas saliências o verde hesitante de tremor. A teia ficou sem tecer da natureza minúsculos dramas. Para matar os bichos de carreira restantes, sorveu a sanha de todas as forças que pode reunir, pulsando veias e nervos num ritmo frenético. Sob o calor abrasador, buscou ativar-se com o cheiro enfurecido das manadas.
Aconteceu o som das patas nas têmporas, na fronte do animal compulsivo, babando e bufando. Nas rugas do tempo teve só amargas lembranças. Achou pensando que no antigamente havia nele o semeador no campo de centeio. Fez uma cara de nojo ao se lembrar disso.
Decididamente se desviou da rota alegre dos dias. Preferiu ser o que se acha nos gestos impuros. Com rudes mãos impassíveis, o passo dentro da bruma, quem tudo deflora, desfaz, prolifera o não, perdura. De tal assombro, clamor que perfura a inocência da mais difícil prova, irromperam vozes débeis. Emanavam dos peitos esvaídos miasmas e contaminações, aparecendo no cenário deserto estas mãos abertas em súplicas sopradas por vento de amanhecer sem o sol.
Alardearam verdades os que eram vítimas do insano animal andarilho:
- NÃO NOS MATE MAIS. SOMOS A INFÃNCIA QUE VIVE NAS COLMEIAS DO METRÕ. DORME EM ESCADARIA DE IGREJA E ROLA NAS RUAS SOLITÁRIAS. ADOLESCENTES PUTAS NO CALABOUÇO DA CARNE E DA CAMA. NEGROS E POBRES AÇOITADOS NOS PORÕES DA MEMÓRIA INVERSA. NATIVOS SOBREVIVENTES EM GRITO E FUGA TRESPASSADOS NOS RASTROS DA DESGRAÇA.
Fuzilava com o sorriso, aplaudia com os dentes de metralha. Assim habitava no velho mundo o inventor prazeroso de fornos crematórios, opressor da inocência triturada, amontoada nos vagões como boi para o matadouro. De tão frágeis sequer adeus podiam dar aos que ficavam sonâmbulos nos campos aramados, regados de angústia pelas trilhas do horror. As mãos dele tinham agora um volume inconcebível. Tão pesadas davam para amassar o mar. “Minha voz exclui o ar, cores, sadios saberes e bem-vindos sabores de frutas doces.‘’ Cuspia cobras e lagartos numa incrível capacidade de armazenar e crepitar só labaredas. Gritava no ápice do transe: QUERO QUE O POBRE EXPLODA. MENINO DE RUA SE FODA. PRETO QUE SE LASQUE. PUTA QUE VÁ PRA PUTA QUE PARIU. ÍNDIO MATO AGORA É COM GRANADA.
Optou para disseminar pétalas atômicas por milhas sem fim. Chamejar inclemente com cheiro queimado de gente, flora, fauna. Do seu olho atento no céu nenhuma lágrima escorreu. Recheou a aurora de drogas e tráficos, urdiu o cerco da agonia com seqüestros hediondos. O caçador das cavernas, o viajante das estrelas, corruptor e corrompido, estampava-se no mundo não mundo como o matador incansável dos que cantam no verdor o vento da união geral feito de amor e verdade. Na bomba o elogio dos escombros. Entre tudo que deixou soterrado, exilado nas próprias sombras dos anos consumidos, desejou então morrer, embora sabendo que havia banido a morte para as profundezas mais escuras dos eternos abismos. Sem poder encará-lo, aí foi que a morte passou distante dele, evitando olhar para trás. Na carreira tão veloz que o vento mais rápido jamais ia conseguir alcançá-la.
Nenhum comentário:
Postar um comentário