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terça-feira, 2 de junho de 2015

Crônica da Infância



Cyro de Mattos



 Depois de cortar com a tesoura o pano marrom, minha mãe ficou  na máquina de costura, fazendo aquela roupa, que parecia mais um vestido folgado de mulher.  Quando ficou pronta, ela me chamou para que fosse experimentá-la. Ela chamou de hábito aquela roupa que ela passou a manhã toda costurando na velha máquina de costura, marca Singer, que foi de minha avó.  Ora, toda menina vestia vestido, menino usava calça. Como era então que minha mãe foi arranjar aquela roupa de mulher para que eu vestisse no domingo quando fosse com ela  para a missa? Quando andava, a barra do hábito roçava nos meus pés. Meu  corpo ficava abafado quando estava vestido nele no domingo  azul de  verão.  O suor escorria do peito, as costas coçavam.

 A mãe cortou meu cabelo baixo, sem esquecer de fazer uma coroinha ali no meio da cabeça. Até alpercata de duas tiras ela mandou que calçasse.  Agora tinha que ir à missa aos domingos vestido como um frade. Durante um ano. Tinha que cumprir a promessa que ela fez porque não tinha morrido com o fundo de panela que fiquei arremessando para o alto como se fosse um disco.

Encontrei o fundo de panela na Praça Camacã, perto da beira do rio. Com dificuldade desenterrei-o da terra molhada com a chuva que caiu  durante a noite.  Várias vezes eu o lancei para o alto, tentando fazer com que chegasse cada vez mais longe, como uma vez vi um menino fazer no areal deixado pela cheia do rio Cachoeira. Era um menino maior do que eu. Mas tinha confiança em mim: aquela brincadeira de lançar fundo de panela para o alto eu também sabia fazer. Era só aparecer uma primeira oportunidade.

 Esperava que daquela vez o fundo da panela fosse subir mais alto. Quando o lancei como um disco bem para o alto, com todas as forças que pude reunir, mal tive tempo de vê-lo atravessar célere o espaço de cima, brilhando como um espelho na manhã com seus raios de sol que flechavam a terra. Voltou mais célere ainda e desceu como se quisesse me atingir.

Tudo foi bem rápido. Senti o corpo balançar quando ele me atingiu na testa. O sangue desceu pelo rosto, cambaleei e caí. Botei a boca no mundo, chamando por minha mãe. Soube depois que seu Isaías, que tinha uma oficina para consertar bicicleta no beco perto da padaria, foi quem me levou nos seus braços cabeludos para minha casa. Quando acordei, escutei a empregada dizendo que cheguei desmaiado, a cara toda melada de sangue. Minha mãe prometeu que, se eu escapasse daquela, ia fazer uma promessa para São Francisco.

O médico disse que  o fundo da panela não varou minha testa e atingiu o cérebro porque tive muita sorte. Era morte certa, se o cérebro fosse atingido pelo fundo da panela.  São Francisco não deixou que isso acontecesse, minha mãe observou. Achava que o santo de sua maior devoção havia escutado seus pedidos para que o filho não morresse.  Ela tinha certeza disso.

E o pior de tudo isso estava para acontecer. Ia ser motivo de mangação pelos amigos. Bastava que um deles descobrisse a novidade e corresse para dizer aos outros. Não demorou. Aconteceu isso no primeiro domingo quando então fui à missa vestido como um frade, o crucifixo de madeira no peito, pendurado na corrente, o cordão grosso amarrado em volta  da cintura.

 Duda, que só andava sorrindo se via alguma coisa engraçada nos outros amigos, não conteve o riso quando me descobriu  vestido de São Francisco na missa das oito. Não parava de sorrir quando olhava para mim, os olhos cintilando de contente. Foi ele quem me botou o apelido de Ciroca Fradeco, assim que contou aos amigos como tinha me encontrado na missa vestido de frade. Minha sorte foi  que a professora de português pegou Duda dormindo na aula. Como castigo, ela passou para ele fazer uma composição sobre o rio Cachoeira  com quinze linhas. Era para  trazer na próxima aula. Ele nunca tinha feito uma composição sobre qualquer assunto. Eu falei que ia ajudá-lo contanto que ele deixasse de me chatear,  chamando-me daquele apelido irritante, além de incentivar  os colegas para que também mangassem de mim.

 Fiz a composição sobre o rio para tirar o amigo do vexame.  Ele foi elogiado pela professora, que chegou a dizer que quando o aluno se entrega com interesse a um dever de aula  parecendo difícil  não existe tarefa que  ele não consiga fazer. Claro que ele cumpriu a sua parte no trato que fizemos. Os colegas prontamente deixaram de me chamar pelo apelido  de Ciroca Fradeco, o que não deixou de ser  um grande alívio para mim.   

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