Depois de
cortar com a tesoura o pano marrom, minha mãe ficou na máquina de costura, fazendo aquela roupa,
que parecia mais um vestido folgado de mulher.
Quando ficou pronta, ela me chamou para que fosse experimentá-la. Ela
chamou de hábito aquela roupa que ela passou a manhã toda costurando na velha
máquina de costura, marca Singer, que foi de minha avó. Ora, toda menina vestia vestido, menino usava
calça. Como era então que minha mãe foi arranjar aquela roupa de mulher para
que eu vestisse no domingo quando fosse com ela
para a missa? Quando andava, a barra do hábito roçava nos meus pés.
Meu corpo ficava abafado quando estava
vestido nele no domingo azul de verão.
O suor escorria do peito, as costas coçavam.
A mãe cortou
meu cabelo baixo, sem esquecer de fazer uma coroinha ali no meio da cabeça. Até
alpercata de duas tiras ela mandou que calçasse. Agora tinha que ir à missa aos domingos
vestido como um frade. Durante um ano. Tinha que cumprir a promessa que ela fez
porque não tinha morrido com o fundo de panela que fiquei arremessando para o
alto como se fosse um disco.
Encontrei o fundo de panela na Praça Camacã, perto da
beira do rio. Com dificuldade desenterrei-o da terra molhada com a chuva que
caiu durante a noite. Várias vezes eu o lancei para o alto,
tentando fazer com que chegasse cada vez mais longe, como uma vez vi um menino
fazer no areal deixado pela cheia do rio Cachoeira. Era um menino maior do que
eu. Mas tinha confiança em mim: aquela brincadeira de lançar fundo de panela
para o alto eu também sabia fazer. Era só aparecer uma primeira oportunidade.
Esperava que
daquela vez o fundo da panela fosse subir mais alto. Quando o lancei como um
disco bem para o alto, com todas as forças que pude reunir, mal tive tempo de
vê-lo atravessar célere o espaço de cima, brilhando como um espelho na manhã com
seus raios de sol que flechavam a terra. Voltou mais célere ainda e desceu como
se quisesse me atingir.
Tudo foi bem rápido. Senti o corpo balançar quando ele me atingiu na testa. O sangue desceu pelo rosto, cambaleei e caí. Botei a boca no mundo, chamando por minha mãe. Soube depois que seu Isaías, que tinha uma oficina para consertar bicicleta no beco perto da padaria, foi quem me levou nos seus braços cabeludos para minha casa. Quando acordei, escutei a empregada dizendo que cheguei desmaiado, a cara toda melada de sangue. Minha mãe prometeu que, se eu escapasse daquela, ia fazer uma promessa para São Francisco.
O médico disse que o fundo da panela não varou minha testa e atingiu o cérebro porque tive muita sorte. Era morte certa, se o cérebro fosse atingido pelo fundo da panela. São Francisco não deixou que isso acontecesse, minha mãe observou. Achava que o santo de sua maior devoção havia escutado seus pedidos para que o filho não morresse. Ela tinha certeza disso.
E o pior de tudo isso estava para acontecer. Ia ser motivo de mangação pelos amigos. Bastava que um deles descobrisse a novidade e corresse para dizer aos outros. Não demorou. Aconteceu isso no primeiro domingo quando então fui à missa vestido como um frade, o crucifixo de madeira no peito, pendurado na corrente, o cordão grosso amarrado em volta da cintura.
Duda, que só andava sorrindo se via alguma coisa engraçada nos outros amigos, não conteve o riso quando me descobriu vestido de São Francisco na missa das oito. Não parava de sorrir quando olhava para mim, os olhos cintilando de contente. Foi ele quem me botou o apelido de Ciroca Fradeco, assim que contou aos amigos como tinha me encontrado na missa vestido de frade. Minha sorte foi que a professora de português pegou Duda dormindo na aula. Como castigo, ela passou para ele fazer uma composição sobre o rio Cachoeira com quinze linhas. Era para trazer na próxima aula. Ele nunca tinha feito uma composição sobre qualquer assunto. Eu falei que ia ajudá-lo contanto que ele deixasse de me chatear, chamando-me daquele apelido irritante, além de incentivar os colegas para que também mangassem de mim.
Fiz a composição sobre o rio para tirar o amigo do vexame. Ele foi elogiado pela professora, que chegou a dizer que quando o aluno se entrega com interesse a um dever de aula parecendo difícil não existe tarefa que ele não consiga fazer. Claro que ele cumpriu a sua parte no trato que fizemos. Os colegas prontamente deixaram de me chamar pelo apelido de Ciroca Fradeco, o que não deixou de ser um grande alívio para mim.
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