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quinta-feira, 12 de janeiro de 2017


Inocentes e Selvagens

Conto de Cyro de Mattos

Uma neblina densa passa vagarosa e envolve  a fazenda por todos os cantos. Esfuma-se nos pastos da baixada e na Serra do Japu. O  canto do galo pedrês acorda as galinhas no poleiro, fere as últimas sombras da noite e se perde sanguinolento por entre os vestígios da madrugada. Quando a manhã chega ao terreiro, a mulher não sabe o que fazer para acalmar as galinhas assanhadas em torno dela. A falta de comida torna inquietas as aves, umas ferem às outras com os bicos  famintos. Há meses que não cai  um pingo de chuva, a plantação de milho e feijão não vingou na roça plantada com tanto sacrifício. A única  mão de milho que a mulher joga no dia provoca nas aves uma danação que assusta e dá pena..Cruz-credo! De sua boca o cuspe sai violento,  dá para  ver no rosto  a expressão de rancor,  que se alojou nela desde que o tempo tornou-se  abrasador na estiagem prolongada. Nas roças, os cacaueiros estão parecendo visagem em seus ares fúnebres, com os galhos e as folhas secas. Muita plantação naquela cor sem brilho, que  infunde medo, os olhos aproximam-se e não chegam a compreender, até as árvores altas   mostram as folhas amarelecidas.
            Esfomeados, os porcos estão grunhindo constantemente no chiqueiro. Fuçam nos pés das estacas, escavam em todos os cantos da terra seca. Não sossegam no  trincar de dentes,  à noite escuta-se o som metálico de suas ferezas batendo  nas queixadas.
           Todas as  manhãs, o homem segue para o curral pequeno, feito de estacas velhas e arame enferrujado, a cobertura de zinco furado.O homem vai tirar o leite da vaca Borboleta, que mesmo com os pastos sem o capim verde  ainda dá cinco litros na espuma, sem falhar um dia. Não sabe como ela consegue dar esse  leite, quente e bom. Não existe o  capim verde para alimentar Borboleta, o pasto está com uma cor de ferrugem, o ribeirão é um fio d’água na baixada.. Depois de feita a ordenha, o homem deixa uma quantidade pequena de leite no úbere de Borboleta para alimentar o bezerro.
O baque na cancela da estrada real desperta a atenção do homem, que acaba de soltar a vaca e  entregar o balde com leite para o filho ir levar para a mulher, que se move agora  na cozinha pequena da casa com paredes de adobe, erguida num outeiro. O  menino avista como o pai os dois homens que vêm andando pela estrada real.
- Parece que é Seu Dorinato acompanhado de outro homem  - observa o menino com os olhos espertos. 
A neblina vai diminuindo no terreiro aos poucos, continua lá  na serra com suas toalhas gelatinosas, esbatendo-se entre as árvores nativas, de tronco grosso e copa frondosa. A  neblina  aparece inclemente na madrugada, nesses meses de estiagem forte, penetra os ossos e corta como faca afiada.  A terra já começa a receber na baixada os raios de um sol quente, que logo mais irá queimar tudo que existir como plantação verde. A paisagem ficará iluminada por todos os cantos,  os ares abafados, como nunca acontecera   na região do Japará  onde a chuva sempre caiu grossa nas estações estáveis.
Os dois homens chegam limpando o suor do rosto. Seu Dorinato, o dono da fazenda Boa Sentença, dá o bom-dia  num rosto aborrecido,  fixando os olhos nos   cacaueiros  da roça, ali atrás do curral, com as folhas secas.
            - Só mesmo os credores me faziam vir aqui nesse momento  - ele diz numa voz triste, acrescentando: - Quem  vendeu o cacau antes da safra  para entregar no futuro, vai enfrentar  um tempo difícil para efetuar os compromissos, com tanto sol e tudo seco ninguém vai ver um só fruto do cacau na época da colheita.
           Pensativo:
           - Só se vê fazendeiro vendendo a roça de cacau e ninguém arrisca comprar nem por baixo preço.
            Ao lado do fazendeiro, o outro homem que veio comprar os porcos: alpercatas de sola grossa, camisa por fora das calças, queixo de ponta no rosto vermelho, os olhos frios, quase imóveis, neutros, distantes da paisagem com seus ares fúnebres.
            - Onde estão os porcos?  Como estão eles, Abdias?  – as perguntas do fazendeiro revelam sua  preocupação sobre o estado dos porcos.  
            - Estão magros, há semanas não comem nem mandioca nem jaca. Só estão comendo folha de bananeira.
            Após acender o cigarro feito com fumo enrolado na palha de milho:           
             - As trovoadas não demoram, as águas caindo tudo vai melhorar, os porcos vão ter comida farta e engordam em pouco tempo.
            Com a voz mansa:
            - Digo isso porque vi  no minador da roça velha um fio d’água descendo pela terra seca.
- Não quero mais  criar porco aqui na fazenda, ainda mais com esse tempo seco e até  as dívidas pequenas crescendo.
             Os homens caminham até o chiqueiro, irascíveis os porcos lá dentro, os dentes trincando na manhã que prossegue com suas lâminas de calor.
             O comprador com os olhos sagazes:
             - Esses bichos nem podem sentir cheiro de gente.
             Sem qualquer interesse:
             - Pior que a magreza vai ser o transporte deles até o embarque de caminhão na estrada real
           - Isso não é problema.
           - Como não é problema?
           - Abdias sabe guiar os bichos.
            O comprador faz os cálculos, examina os porcos atentamente, olhos  saltados das  órbitas no gesto de repulsa e desprezo.
        - Posso até fazer uma proposta por esses famintos.
- Qual?
- Fico com todos na base da arrobação.
- Impossível. Só pra engorda devem ser vendidos e não pelo peso.
O comprador tranqüilo:
- Só na arrobação mesmo.
- Quantas arrobas você dá por eles?
- Duas arrobas, um pelo outro: talvez nem  cheguem a 80 arrobas todos eles.
       - E qual o seu preço por arroba?
- Metade da metade  do preço que é pago na região.
- Negócio fechado com as 40 cabeças.
É quando com a voz tímida interfere Abdias.
- 39, Seu Dorinato.
-  Não estou entendendo.
       - O porco reprodutor, todo pintado no pelo,  é do meu menino Dadico. Ele comprou
lá na feira da cidade quando  ainda era um leitãozinho, tinha sido  apartado da porca há poucos dias.
      - Como é mesmo? O que foi que você disse?
      No ar quente vibra o que pergunta Seu Dorinato; na verdade não passa de uma afronta que fere um rosto apreensivo. Aloja-se na garganta de Abdias uma massa de humilhação,  que ele bem conhece em seus modos antigos. “Quem já viu naquelas bandas qualquer animal ter como dono filho de capataz ou de roceiro?” – pensa  o fazendeiro com uma cara feia.
     - Pois foi, acredite no que  afirmo.
     - Lamento que só agora eu  venha  saber isso, mas nada  posso fazer, o porco de seu menino também está vendido.

             Escutou a conversa do fazendeiro com o comprador dos porcos, a observação do pai acerca do porco que ele havia comprado na feira quando ainda era um leitãozinho. A venda do porco Pidão com os outros porcos repercute dentro como um sinal ameaçador, indicando grande  perigo. Sente um enxame de abelhas zumbindo nos ouvidos. Levanta-se nas pernas sem equilíbrio, cheio de medo com aquela decisão tomada pelo dono da fazenda Boa Sentença, onde ele nasceu e cresceu caçando passarinho com estilingue, armando a arapuca e botando o laço para pegar os bichos. Onde se uniu na amizade com um porco, que causava espanto a quem visse  como se não fosse coisa deste mundo o esquisito apego entre eles dois. 
             Por que o porco Pidão foi se meter no meio daqueles bichos famintos?  Tomaí, porco desobediente, como um castigo vai ser também vendido. Pensamentos vão passando por entre  magoados gemidos. Os passos agoniados encontram, enfim,  a velha mangueira perto do açude. Lugar escolhido como abrigo quando alguma coisa ruim acontecia e o deixava bastante aborrecido. Olhos espertos piscam agora sem brilho, circulam quase sem vida numa paisagem íntima, que se formou de aventuras  pelo mato a dentro. Com as  travessuras de um menino e um porco com suas  maneiras manhosas, bicho de  tanta estimação pelo dono que era tido como algo que não tem preço.
            Nesse instante de tristeza, somente ele e nada mais. Numa  paisagem que se ressente dessa vez dos ventos soprados com alegria. De pés afoitos que caminhavam por trilhas e atalhos, acompanhados de um porco especial. Mãos de cata-vento vasculhavam os cantos do dia e, quando ele retornava para casa, vinha  com o bornal cheio de descobertas, momentos generosos que o tempo lhe oferecia.

           Comprara o leitãozinho numa manhã de verão. Na feira da cidade que tudo tem, movendo-se aos sábados intensa de gente, naquela onda que   vai e vem. O céu estava como um espelho, nuvens alvas que formavam bichos mansos, barcos de algodão, enormes cogumelos. Quando chegou da feira, logo  apressou o pai Abdias para que retirasse os caçuás do burro, sabendo que  o leitãozinho fora  acomodado no fundo de um deles. Os olhos espertos tinham um brilho forte naquele momento,  admirados com o leitãozinho amarrado pelas pernas, o focinho nervoso, dentes trincando e esganiçando gritos. Quando foi desamarrado, ergueu o focinho num tremor engraçado, andou ligeiro e quase se batera nas pernas do menino. Farejou um monturo de lixo e lá se foi apressado, todo gozoso e roliço.
                - Corra,  bichinho, passa a conhecer seu terreiro! 
                Naquele mesmo dia recebera o nome de Pidão, rapidamente passou a ser as preocupações, os cuidados e os caprichos do menino Dadico. Sua comida era mandioca e milho verde, a água na gamela estava sempre limpa, a dormida ficava  num cercado que o dono  construíra  atrás do galinheiro. Com o passar dos dias, o leitãozinho foi encorpando, ficando cada vez mais apegado ao menino. Simples era a linguagem que o Dadico usava para ganhar a afeição dele. Agrados escorriam por lombo e barriga,  era costume ser recebido com alegria quem chegava com o focinho inquieto, farejando o ar e remexendo a terra. Sujo por andar se banhando nos buracos grandes da terra enlameada.
             Passados uns cinco meses, Pidão mostrava-se com  as papadas cheias de gordura,  as pernas fortes e mais ligeiras. Os trabalhadores da Boa Sentença nunca tinham visto um apego daquele entre um porco e um menino. Nas roças de cacau, nas caçadas de passarinho, nas armadilhas paara pegar bichos de carreira, nas pescarias pelo ribeirão ou na lagoinha, eles dois lá estavam. Um não saía de perto do outro. Eram estranhas as travessuras do menino com o porco todos os dias, os roceiros  reconheciam nos comentários freqüentes. Era o porco que nem cão de guarda ou de caça? Seria um bicho  possuidor de  alguma magia especial,  que nesse mundo aparece como coisa do sobrenatural e ninguém consegue explicar a razão de tal  encantamento? O menino sabia que o inverno era venturoso, o verão tonto de azul com as suas surpresas. Aquele porco manhoso com cada esquisitice deixava o pai do menino encabulado e a mãe  incrédula com o que os olhos viam através das  cenas costumeiras.
          O porco Pidão tinha o pelo arruivado, manchado de pequeninas bolas pretas, as pernas compridas. Seu corpo era até certo ponto grande para um porco mestiço. Rapidamente se alastrara sua fama de bom reprodutor, seguro e possante,  porca houvesse na Boa Sentença e nas fazendas vizinhas para que ele cobrisse. Certa vez ele brigara com uma cobra enorme, de igual para igual. Chamara para si a atenção do inimigo, que traiçoeiramente  já tinha o bote preparado para ser lançado nas pernas do menino. Travou-se renhida a luta entre o porco Pidão e a cobra grande, do tamanho de uma vara de  dois metros, grossa e comprida. Ficou equilibrada porque o porco  sabia ser paciente, usava esperteza durante os botes  que a cobra desferia.  A cobra com os botes sucessivos buscava atingir qualquer ponto de um corpo roliço. O porco Pidão esquivava-se com voltas e recuos, escorregava por entre as moitas do mato, procurava assim cansar o inimigo, que não desistia de lançar os botes  em nenhum momento. E mais botes perigosos eram enviados de um corpo escorregadio, que se arrastava insidioso, às vezes parava, erguia-se, encolhia-se, dilatava-se no arremesso mortal para um alvo corajoso, grunhindo. O porco afastava-se rápido e evitava que a cobra atingisse com o bote qualquer ponto de seu corpo,  cada vez mais inquieto. A luta, que já durava quase uma hora,  estralava os matos,  deixava na terra  marcas  dos pés do porco Pidão e trilhas de um corpo peçonhento.
              Do galho da jaqueira, o menino via todas as cenas, nada podendo fazer para que a cobra fosse derrotada na briga.
            Aflito:
 - Pelo amor de Deus, Pidão, fuja, antes que seja tarde!
A cobra e o porco desapareceram numa ponta de capoeira, os matos eram amassados com a passagem deles dois. Na danação da briga, o porco soltava grunhidos fortes, a cobra o perseguia sem dar trégua,  parecia que ia crescendo de tamanho chão a dentro, na medida em que a briga demorava e ficava mais feia.
O porco Pidão só foi aparecer pelo entardecer  no terreiro. A língua de fora, fios de baba pela boca, o sangue quente no corpo ainda agitado. Talvez soubesse que a grande vitória  foi salvar o menino dos botes de um inimigo terrível. Na guerra que tivera com a cobra, se não foi vitorioso, também não saiu vencido. Sua fama de porco que não tem medo de enfrentar  cobra grande venenosa correu pelas outras fazendas. O  menino chegava a dizer que ele era um lutador  invencível, botava pra correr até onça parida, cobra no ninho e jacaré no choco. Nem do lobisomem nem da alma penada tinha medo.
           O verão entrou pelas outras estações, prosseguiu no  calor de brasa viva, terra seca e pouca água. Os fazendeiros  bem tristes  com a paisagem definhando perante o céu sem um fiapo de nuvem. Os semblantes desolados com a criação de animais e aves  sem comida, nas estradas só a poeira grossa, os  ribeirões morrendo. Abdias falou que  se o tempo continuasse naquele castigo, o porco Pidão ia cair na faca, melhor ser abatido do que ver o bicho com as costelas de fora, emagrecendo.
           - Onde anda esse porco, Dadico?
           Susto danado:
          - Nem faço idéia, pai, há dias que ele anda sumido, se já não morreu de fome e virou comida dos urubus carniceiros..
             Com os olhos de assombro, foi logo se afastando do pai, que há pouco instante chegara do curral onde   fora curar com creolina a bicheira da vaca Borboleta.
             Acreditava que o seu segredo nunca haveria de ser descoberto. O porco Pidão estava bem guardado no esconderijo que ele encontrara, entre as pedras grandes,  na Serra do Japu. Dias depois, o pai recuara daquela intenção de abater o porco, Pidão aparecera de repente no terreiro contra o gosto de Dadico, em estado de causar pena. Afastado do menino, sem as travessuras costumeiras, não conseguira permanecer no esconderijo lá  da serra por muito tempo. Faminto, sedento, havia nele uns ares tristes de bicho  esquecido.

            “Antes nunca tivesse aparecido no terreiro, valia a pena ficar  só com pele e osso  lá no esconderijo das pedras grandes na  Serra do Japu, mas salvo de ser vendido com os outros porcos. Por que entendeu de sair do lugar onde estava protegido? Por que não ficou no esconderijo mais tempo? Tomaí, porco besta, veja o que arranjou agora, vai ser vendido com os outros, pesado na balança, castrado pra engordar, de novo pesado quando desse no ponto  pra ser abatido, com o toicinho fazendo  dobras no couro e a gordura balançando nas papadas pra quem botasse os olhos de usura em cima dele e logo lambesse os beiços e zapt, faca afiada nesse bicho lerdo e gorduchento, que é chegado o momento...”

            O coração que bate célere impele o corpo franzino no gesto corajoso. Os dois homens já iam próximos à cancela do pasto que serve  de dormida para os animais de serviço. Pararam de repente quando ouviram  um barulho que vinha do chiqueiro. De lá o vento trazia ruídos de bicho na sanha, querendo derrubar tudo que encontrasse pela frente. Assustados, retornam na carreira apressada. Avistam os porcos  querendo fugir pela portinhola do chiqueiro,  todos ao mesmo tempo. Em cima do mourão, o menino segura a portinhola do chiqueiro. O porco Pidão consegue fugir primeiro com mais seis porcos na carreira estonteada. O menino sorri de contente. Não percebe quando o homem saca o revólver e dispara  seis tiros na direção dele. Um dos tiros derruba o menino para dentro do chiqueiro, logo o corpo passa a ser disputado  pelos porcos famintos, que restaram no chiqueiro. Um salto relâmpago impele o pai Abdias para dentro do chiqueiro. Ele cai no meio dos porcos já com o facão a desferir golpes sucessivos: na queixada, na perna, na estaca, no arame, no focinho, na terra, na orelha, no lombo, na papada, em tudo que encontra pela frente. E, após desferir golpes sucessivos e certeiros, consegue, enfim, o pai retirar do chiqueiro o corpo do filho.

                       
Difíceis agora os passos numa dor que penetra veias, coração e nervos. As pernas cambaleiam, é com esforço que o pai respira,  nos braços o corpo do filho.
          - Por que, por que  isso?
         - Só atirei para amedrontar o menino.         
           
            No resto do dia, a terra como se fosse irromper numa fogueira enorme, de  tão abafado o ar, num calor  intenso. O  sol ainda não desapareceu com a tarde por trás da serra. E algumas nuvens cinzentas, vindas dos lados da Serra do Japu, passam vagarosas  acima dos pastos da baixada. As nuvens tornam-se   maiores  quando passam acima do curral e seguem na direção das roças de cacau. Quando a noite chega do céu apagado de estrelas, o tempo está armado com nuvens negras e  pesadas, prenunciando  felizmente   ventos fortes e aguaceiros. A princípio é uma chuva fraca que cai, os pingos batendo no telhado da casa  e no zinco que cobre o curral velho.

          O homem acende o candeeiro, a luz em cima da mesinha como uma  língua irrequieta forma figuras disformes na parede. Gemidos da mulher misturam-se  com o chio dos morcegos, asas negras passam assustadas pelos cômodos no voo baixo,  de arrepio e medo. Lá fora, com o andar arrastado, o homem atravessa o terreiro, a chuva engrossa na noite escura, cortada por relâmpagos sucessivos. Os pingos fortes batem como diminutas bolotas de chumbo quando caem na terra centenária. As veias da terra ficam intumescidas com a força da chuva trazida pela noite negra. Na pobreza das vestes aquele vulto magro, todo encharcado, passa pelo curral e segue em direção ao chiqueiro.

Ali, ele permanece sentado num pedaço de cocho feito de tronco de jaqueira velha. A madeira lascada pelos porcos que se apertavam na portinhola do chiqueiro. Uns mordiam os outros,  procuravam enfurecidos a saída por onde pudessem escapar na sanha cheia de grunhidos.  Parado, solitário, triste. O rosto em contato com as mãos calosas. Enxuga o rosto  com o lenço velho, a dor que sente agora fere o coração  na ausência de um menino amigo de um porco e de um porco amigo de um menino. Na  mais estranha e alegre  amizade que o mundo podia conceber. Nesse vazio que atinge corpo e alma a fúria da bala deflagrada traz o ritmo do horror e do que nunca  vai se desgarrar de seu peito. 
Na vastidão da noite que segue escurecida, com ventos fortes, relâmpagos e aguaceiros.        
        

·       * O conto “Inocentes e Selvagens” conquistou o Prêmio Miguel de Cervantes, patrocinado pela Casa dos Quixotes, Rio de Janeiro, para autores de Língua Portuguesa, em 1968.





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