Inocentes e Selvagens
Conto de Cyro de Mattos
Uma neblina
densa passa vagarosa e envolve a fazenda
por todos os cantos. Esfuma-se nos pastos da baixada e na Serra do Japu. O canto do galo pedrês acorda as galinhas no poleiro,
fere as últimas sombras da noite e se perde sanguinolento por entre os
vestígios da madrugada. Quando a manhã chega ao terreiro, a mulher não sabe o
que fazer para acalmar as galinhas assanhadas em torno dela. A falta de comida
torna inquietas as aves, umas ferem às outras com os bicos famintos. Há meses que não cai um pingo de chuva, a plantação de milho e
feijão não vingou na roça plantada com tanto sacrifício. A única mão de milho que a mulher joga no dia provoca
nas aves uma danação que assusta e dá pena..Cruz-credo! De sua boca o cuspe sai
violento, dá para ver no rosto
a expressão de rancor, que se
alojou nela desde que o tempo tornou-se
abrasador na estiagem prolongada. Nas roças, os cacaueiros estão
parecendo visagem em seus ares fúnebres, com os galhos e as folhas secas. Muita
plantação naquela cor sem brilho, que
infunde medo, os olhos aproximam-se e não chegam a compreender, até as
árvores altas mostram as folhas
amarelecidas.
Esfomeados,
os porcos estão grunhindo constantemente no chiqueiro. Fuçam nos pés das
estacas, escavam em todos os cantos da terra seca. Não sossegam no trincar de dentes, à noite escuta-se o som metálico de suas
ferezas batendo nas queixadas.
Todas as manhãs, o homem segue para o curral pequeno,
feito de estacas velhas e arame enferrujado, a cobertura de zinco furado.O
homem vai tirar o leite da vaca Borboleta, que mesmo com os pastos sem o capim
verde ainda dá cinco litros na espuma,
sem falhar um dia. Não sabe como ela consegue dar esse leite, quente e bom. Não existe o capim verde para alimentar Borboleta, o pasto
está com uma cor de ferrugem, o ribeirão é um fio d’água na baixada.. Depois de
feita a ordenha, o homem deixa uma quantidade pequena de leite no úbere de
Borboleta para alimentar o bezerro.
O baque na
cancela da estrada real desperta a atenção do homem, que acaba de soltar a vaca
e entregar o balde com leite para o
filho ir levar para a mulher, que se move agora
na cozinha pequena da casa com paredes de adobe, erguida num outeiro.
O menino avista como o pai os dois
homens que vêm andando pela estrada real.
- Parece que é
Seu Dorinato acompanhado de outro homem
- observa o menino com os olhos espertos.
A neblina vai
diminuindo no terreiro aos poucos, continua lá
na serra com suas toalhas gelatinosas, esbatendo-se entre as árvores
nativas, de tronco grosso e copa frondosa. A
neblina aparece inclemente na
madrugada, nesses meses de estiagem forte, penetra os ossos e corta como faca
afiada. A terra já começa a receber na baixada
os raios de um sol quente, que logo mais irá queimar tudo que existir como
plantação verde. A paisagem ficará iluminada por todos os cantos, os ares abafados, como nunca acontecera na região do Japará onde a chuva sempre caiu grossa nas estações
estáveis.
Os dois homens
chegam limpando o suor do rosto. Seu Dorinato, o dono da fazenda Boa Sentença,
dá o bom-dia num rosto aborrecido, fixando os olhos nos cacaueiros
da roça, ali atrás do curral, com as folhas secas.
- Só mesmo os credores me faziam
vir aqui nesse momento - ele diz numa
voz triste, acrescentando: - Quem vendeu
o cacau antes da safra para entregar no
futuro, vai enfrentar um tempo difícil
para efetuar os compromissos, com tanto sol e tudo seco ninguém vai ver um só
fruto do cacau na época da colheita.
Pensativo:
- Só se vê fazendeiro vendendo a
roça de cacau e ninguém arrisca comprar nem por baixo preço.
Ao lado do fazendeiro, o outro homem
que veio comprar os porcos: alpercatas de sola grossa, camisa por fora das
calças, queixo de ponta no rosto vermelho, os olhos frios, quase imóveis,
neutros, distantes da paisagem com seus ares fúnebres.
-
Onde estão os porcos? Como estão eles,
Abdias? – as perguntas do fazendeiro
revelam sua preocupação sobre o estado
dos porcos.
- Estão magros, há semanas não
comem nem mandioca nem jaca. Só estão comendo folha de bananeira.
Após acender o cigarro feito com
fumo enrolado na palha de milho:
- As trovoadas não demoram, as
águas caindo tudo vai melhorar, os porcos vão ter comida farta e engordam em
pouco tempo.
Com a voz mansa:
- Digo isso porque vi no minador da roça velha um fio d’água
descendo pela terra seca.
- Não quero mais criar porco aqui na fazenda, ainda mais com
esse tempo seco e até as dívidas
pequenas crescendo.
Os homens caminham até o
chiqueiro, irascíveis os porcos lá dentro, os dentes trincando na manhã que
prossegue com suas lâminas de calor.
O comprador com os olhos sagazes:
- Esses bichos nem podem sentir
cheiro de gente.
Sem qualquer interesse:
- Pior que a magreza vai ser o transporte deles até o embarque de
caminhão na estrada real
- Isso não é problema.
- Como não é problema?
- Abdias sabe guiar os bichos.
O comprador faz os cálculos,
examina os porcos atentamente, olhos
saltados das órbitas no gesto de
repulsa e desprezo.
- Posso até fazer uma proposta por esses famintos.
- Qual?
- Fico com todos na base da arrobação.
- Impossível. Só pra engorda devem ser vendidos e não pelo peso.
O comprador tranqüilo:
- Só na arrobação mesmo.
- Quantas arrobas você dá por eles?
- Duas arrobas, um pelo outro: talvez nem
cheguem a 80 arrobas todos eles.
- E qual o seu
preço por arroba?
- Metade da metade do preço que é
pago na região.
- Negócio fechado com as 40 cabeças.
É quando com a voz tímida interfere Abdias.
- 39, Seu Dorinato.
- Não estou entendendo.
- O porco reprodutor, todo pintado no pelo, é do meu menino Dadico. Ele comprou
lá na feira da cidade
quando ainda era um leitãozinho, tinha
sido apartado da porca há poucos dias.
- Como é mesmo? O que foi que você disse?
No
ar quente vibra o que pergunta Seu Dorinato; na verdade não passa de uma
afronta que fere um rosto apreensivo. Aloja-se na garganta de Abdias uma massa
de humilhação, que ele bem conhece em
seus modos antigos. “Quem já viu naquelas bandas qualquer animal ter como dono
filho de capataz ou de roceiro?” – pensa
o fazendeiro com uma cara feia.
- Pois foi, acredite no que afirmo.
- Lamento que só agora eu venha
saber isso, mas nada posso fazer,
o porco de seu menino também está vendido.
Escutou a conversa do fazendeiro
com o comprador dos porcos, a observação do pai acerca do porco que ele havia
comprado na feira quando ainda era um leitãozinho. A venda do porco Pidão com
os outros porcos repercute dentro como um sinal ameaçador, indicando
grande perigo. Sente um enxame de
abelhas zumbindo nos ouvidos. Levanta-se nas pernas sem equilíbrio, cheio de
medo com aquela decisão tomada pelo dono da fazenda Boa Sentença, onde ele
nasceu e cresceu caçando passarinho com estilingue, armando a arapuca e botando
o laço para pegar os bichos. Onde se uniu na amizade com um porco, que causava
espanto a quem visse como se não fosse
coisa deste mundo o esquisito apego entre eles dois.
Por que o porco Pidão foi se meter no meio daqueles bichos
famintos? Tomaí, porco desobediente,
como um castigo vai ser também vendido. Pensamentos vão passando por entre magoados gemidos. Os passos agoniados
encontram, enfim, a velha mangueira
perto do açude. Lugar escolhido como abrigo quando alguma coisa ruim acontecia
e o deixava bastante aborrecido. Olhos espertos piscam agora sem brilho,
circulam quase sem vida numa paisagem íntima, que se formou de aventuras pelo mato a dentro. Com as travessuras de um menino e um porco com
suas maneiras manhosas, bicho de tanta estimação pelo dono que era tido como
algo que não tem preço.
Nesse
instante de tristeza, somente ele e nada mais. Numa paisagem que se ressente dessa vez dos ventos
soprados com alegria. De pés afoitos que caminhavam por trilhas e atalhos,
acompanhados de um porco especial. Mãos de cata-vento vasculhavam os cantos do
dia e, quando ele retornava para casa, vinha
com o bornal cheio de descobertas, momentos generosos que o tempo lhe
oferecia.
Comprara o leitãozinho numa manhã de verão. Na feira da cidade que tudo
tem, movendo-se aos sábados intensa de gente, naquela onda que vai e vem. O céu estava como um espelho,
nuvens alvas que formavam bichos mansos, barcos de algodão, enormes cogumelos.
Quando chegou da feira, logo apressou o
pai Abdias para que retirasse os caçuás do burro, sabendo que o leitãozinho fora acomodado no fundo de um deles. Os olhos
espertos tinham um brilho forte naquele momento, admirados com o leitãozinho amarrado pelas
pernas, o focinho nervoso, dentes trincando e esganiçando gritos. Quando foi
desamarrado, ergueu o focinho num tremor engraçado, andou ligeiro e quase se
batera nas pernas do menino. Farejou um monturo de lixo e lá se foi apressado,
todo gozoso e roliço.
- Corra, bichinho, passa a conhecer seu terreiro!
Naquele mesmo dia recebera o
nome de Pidão, rapidamente passou a ser as preocupações, os cuidados e os
caprichos do menino Dadico. Sua comida era mandioca e milho verde, a água na
gamela estava sempre limpa, a dormida ficava
num cercado que o dono
construíra atrás do galinheiro.
Com o passar dos dias, o leitãozinho foi encorpando, ficando cada vez mais
apegado ao menino. Simples era a linguagem que o Dadico usava para ganhar a
afeição dele. Agrados escorriam por lombo e barriga, era costume ser recebido com alegria quem
chegava com o focinho inquieto, farejando o ar e remexendo a terra. Sujo por
andar se banhando nos buracos grandes da terra enlameada.
Passados uns cinco meses, Pidão mostrava-se com as papadas cheias de gordura, as pernas fortes e mais ligeiras. Os
trabalhadores da Boa Sentença nunca tinham visto um apego daquele entre um
porco e um menino. Nas roças de cacau, nas caçadas de passarinho, nas
armadilhas paara pegar bichos de carreira, nas pescarias pelo ribeirão ou na
lagoinha, eles dois lá estavam. Um não saía de perto do outro. Eram estranhas
as travessuras do menino com o porco todos os dias, os roceiros reconheciam nos comentários freqüentes. Era o
porco que nem cão de guarda ou de caça? Seria um bicho possuidor de
alguma magia especial, que nesse
mundo aparece como coisa do sobrenatural e ninguém consegue explicar a razão de
tal encantamento? O menino sabia que o
inverno era venturoso, o verão tonto de azul com as suas surpresas. Aquele
porco manhoso com cada esquisitice deixava o pai do menino encabulado e a
mãe incrédula com o que os olhos viam
através das cenas costumeiras.
O porco Pidão tinha o pelo arruivado, manchado de pequeninas bolas pretas,
as pernas compridas. Seu corpo era até certo ponto grande para um porco
mestiço. Rapidamente se alastrara sua fama de bom reprodutor, seguro e
possante, porca houvesse na Boa Sentença
e nas fazendas vizinhas para que ele cobrisse. Certa vez ele brigara com uma
cobra enorme, de igual para igual. Chamara para si a atenção do inimigo, que
traiçoeiramente já tinha o bote
preparado para ser lançado nas pernas do menino. Travou-se renhida a luta entre
o porco Pidão e a cobra grande, do tamanho de uma vara de dois metros, grossa e comprida. Ficou
equilibrada porque o porco sabia ser
paciente, usava esperteza durante os botes
que a cobra desferia. A cobra com
os botes sucessivos buscava atingir qualquer ponto de um corpo roliço. O porco
Pidão esquivava-se com voltas e recuos, escorregava por entre as moitas do
mato, procurava assim cansar o inimigo, que não desistia de lançar os
botes em nenhum momento. E mais botes
perigosos eram enviados de um corpo escorregadio, que se arrastava insidioso,
às vezes parava, erguia-se, encolhia-se, dilatava-se no arremesso mortal para
um alvo corajoso, grunhindo. O porco afastava-se rápido e evitava que a cobra
atingisse com o bote qualquer ponto de seu corpo, cada vez mais inquieto. A luta, que já durava
quase uma hora, estralava os matos, deixava na terra marcas
dos pés do porco Pidão e trilhas de um corpo peçonhento.
Do galho da jaqueira, o menino
via todas as cenas, nada podendo fazer para que a cobra fosse derrotada na
briga.
Aflito:
- Pelo
amor de Deus, Pidão, fuja, antes que seja tarde!
A cobra e o porco desapareceram numa ponta de
capoeira, os matos eram amassados com a passagem deles dois. Na danação da
briga, o porco soltava grunhidos fortes, a cobra o perseguia sem dar
trégua, parecia que ia crescendo de
tamanho chão a dentro, na medida em que a briga demorava e ficava mais feia.
O porco Pidão só foi aparecer pelo
entardecer no terreiro. A língua de
fora, fios de baba pela boca, o sangue quente no corpo ainda agitado. Talvez
soubesse que a grande vitória foi salvar
o menino dos botes de um inimigo terrível. Na guerra que tivera com a cobra, se
não foi vitorioso, também não saiu vencido. Sua fama de porco que não tem medo
de enfrentar cobra grande venenosa
correu pelas outras fazendas. O menino
chegava a dizer que ele era um lutador
invencível, botava pra correr até onça parida, cobra no ninho e jacaré
no choco. Nem do lobisomem nem da alma penada tinha medo.
O verão entrou pelas outras estações, prosseguiu no calor de brasa viva, terra seca e pouca água.
Os fazendeiros bem tristes com a paisagem definhando perante o céu sem
um fiapo de nuvem. Os semblantes desolados com a criação de animais e aves sem comida, nas estradas só a poeira grossa,
os ribeirões morrendo. Abdias falou
que se o tempo continuasse naquele
castigo, o porco Pidão ia cair na faca, melhor ser abatido do que ver o bicho
com as costelas de fora, emagrecendo.
- Onde anda esse porco, Dadico?
Susto danado:
- Nem faço idéia, pai, há dias que ele anda sumido, se já não morreu de
fome e virou comida dos urubus carniceiros..
Com os olhos de assombro, foi logo se afastando do pai, que há pouco
instante chegara do curral onde fora
curar com creolina a bicheira da vaca Borboleta.
Acreditava que o seu segredo nunca
haveria de ser descoberto. O porco Pidão estava bem guardado no esconderijo que
ele encontrara, entre as pedras grandes,
na Serra do Japu. Dias depois, o pai recuara daquela intenção de abater
o porco, Pidão aparecera de repente no terreiro contra o gosto de Dadico, em
estado de causar pena. Afastado do menino, sem as travessuras costumeiras, não
conseguira permanecer no esconderijo lá
da serra por muito tempo. Faminto, sedento, havia nele uns ares tristes
de bicho esquecido.
“Antes
nunca tivesse aparecido no terreiro, valia a pena ficar só com pele e osso lá no esconderijo das pedras grandes na Serra do Japu, mas salvo de ser vendido com
os outros porcos. Por que entendeu de sair do lugar onde estava protegido? Por
que não ficou no esconderijo mais tempo? Tomaí, porco besta, veja o que
arranjou agora, vai ser vendido com os outros, pesado na balança, castrado pra
engordar, de novo pesado quando desse no ponto
pra ser abatido, com o toicinho fazendo
dobras no couro e a gordura balançando nas papadas pra quem botasse os
olhos de usura em cima dele e logo lambesse os beiços e zapt, faca afiada nesse
bicho lerdo e gorduchento, que é chegado o momento...”
O
coração que bate célere impele o corpo franzino no gesto corajoso. Os dois
homens já iam próximos à cancela do pasto que serve de dormida para os animais de serviço.
Pararam de repente quando ouviram um
barulho que vinha do chiqueiro. De lá o vento trazia ruídos de bicho na sanha,
querendo derrubar tudo que encontrasse pela frente. Assustados, retornam na
carreira apressada. Avistam os porcos
querendo fugir pela portinhola do chiqueiro, todos ao mesmo tempo. Em cima do mourão, o
menino segura a portinhola do chiqueiro. O porco Pidão consegue fugir primeiro
com mais seis porcos na carreira estonteada. O menino sorri de contente. Não
percebe quando o homem saca o revólver e dispara seis tiros na direção dele. Um dos tiros
derruba o menino para dentro do chiqueiro, logo o corpo passa a ser
disputado pelos porcos famintos, que
restaram no chiqueiro. Um salto relâmpago impele o pai Abdias para dentro do
chiqueiro. Ele cai no meio dos porcos já com o facão a desferir golpes
sucessivos: na queixada, na perna, na estaca, no arame, no focinho, na terra,
na orelha, no lombo, na papada, em tudo que encontra pela frente. E, após
desferir golpes sucessivos e certeiros, consegue, enfim, o pai retirar do
chiqueiro o corpo do filho.
Difíceis agora os passos numa dor que penetra
veias, coração e nervos. As pernas cambaleiam, é com esforço que o pai
respira, nos braços o corpo do filho.
- Por que, por que isso?
- Só atirei para amedrontar o menino.
No resto do dia, a terra como se
fosse irromper numa fogueira enorme, de
tão abafado o ar, num calor
intenso. O sol ainda não
desapareceu com a tarde por trás da serra. E algumas nuvens cinzentas, vindas
dos lados da Serra do Japu, passam vagarosas
acima dos pastos da baixada. As nuvens tornam-se maiores
quando passam acima do curral e seguem na direção das roças de cacau.
Quando a noite chega do céu apagado de estrelas, o tempo está armado com nuvens
negras e pesadas, prenunciando felizmente
ventos fortes e aguaceiros. A princípio é uma chuva fraca que cai, os
pingos batendo no telhado da casa e no
zinco que cobre o curral velho.
O homem acende o candeeiro, a luz em cima da mesinha como uma língua irrequieta forma figuras disformes na
parede. Gemidos da mulher misturam-se com
o chio dos morcegos, asas negras passam assustadas pelos cômodos no voo
baixo, de arrepio e medo. Lá fora, com o
andar arrastado, o homem atravessa o terreiro, a chuva engrossa na noite
escura, cortada por relâmpagos sucessivos. Os pingos fortes batem como
diminutas bolotas de chumbo quando caem na terra centenária. As veias da terra
ficam intumescidas com a força da chuva trazida pela noite negra. Na pobreza
das vestes aquele vulto magro, todo encharcado, passa pelo curral e segue em
direção ao chiqueiro.
Ali, ele
permanece sentado num pedaço de cocho feito de tronco de jaqueira velha. A
madeira lascada pelos porcos que se apertavam na portinhola do chiqueiro. Uns
mordiam os outros, procuravam
enfurecidos a saída por onde pudessem escapar na sanha cheia de grunhidos. Parado, solitário, triste. O rosto em contato
com as mãos calosas. Enxuga o rosto com
o lenço velho, a dor que sente agora fere o coração na ausência de um menino amigo de um porco e
de um porco amigo de um menino. Na mais
estranha e alegre amizade que o mundo
podia conceber. Nesse vazio que atinge corpo e alma a fúria da bala deflagrada
traz o ritmo do horror e do que nunca
vai se desgarrar de seu peito.
Na vastidão da
noite que segue escurecida, com ventos fortes, relâmpagos e aguaceiros.
· * O conto “Inocentes e Selvagens” conquistou o
Prêmio Miguel de Cervantes, patrocinado pela Casa dos Quixotes, Rio de Janeiro,
para autores de Língua Portuguesa, em 1968.
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