Contos Bem Exemplares
Cyro de Mattos
Retorno em tarde sem Sol (2016)
é o décimo livro de ficção do escritor
baiano Aramis Ribeiro Costa. O volume
reúne quinze narrativas de
desenvolvimento ficcional breve, mas com
larguras e profunduras no que o autor diz sobre
a condição humana com as suas dimensões trágicas, desencontros
patéticos, desapontamentos nos quais não se vê caminhos para a solução de
situações impregnadas de contradições na
vida diária.
Cada autor tem sua marca digital na massa do que foi escrito. Aramis
Ribeiro Costa é desses contistas que envolvem o leitor com uma linguagem
sedutora, que flui com espontaneidade e, na sua simplicidade encantatória, vai dando prazer a quem lê. De trecho
para trecho a linguagem prende, na exposição de cenas convincentes e
movimentação dos personagens que interferem no momento oportuno. De conto para
conto, não é preciso fazer o intervalo
para tomar fôlego e seguir na leitura, como ocorre no diálogo que o leitor
crítico estabelece com o texto de uma
escrita complexa. Em sua construção formal, os contos de Aramis Ribeiro
Costa sempre operam a generosidade de transmitir com espontaneidade a comoção
final da escrita bem cadenciada, desenvolta, harmoniosa, na qual revela quase
sempre as tristes notas de uma experiência humana.
Mas não se trata apenas de um autor prazeroso nas suas criações, como se
vê novamente nesses quinze contos
reunidos em Retorno de tarde sem sol. Se o fetiche da linguagem nas formas novas de
narrar uma história não o atrai, longe de estarmos diante de um autor pobre no
uso da palavra e pueril no universo criativo da ideia. Tudo em Aramis Ribeiro
Costa funciona nos modos estruturais de inventar uma historia, nada é inútil, do
título à palavra, da linguagem à ideia,
do ritmo ao assunto, do personagem à circunstância inusitada. Nada é gratuito
na enunciação do texto, que depois de enunciado faz pensar, às vezes chega a
continuar com outra
história no pensamento do leitor. Isso é visto em “Cabaré”, quando
podemos indagar qual seria a história verdadeira de Norma Morales, a rainha da
noite, aquela em que
é vista nas suas exibições de bailarina que se despe, de causar pena na cena nua e crua, ou a que se oculta nos seus interiores, como
dá a entender quando, aos gritos, a
personagem alega que estava sendo perseguida, algozes vão lhe matar, e na fuga desesperada encontra a morte ao ser atropelada por um pequeno caminhão.
O contista logra tirar bons efeitos do recurso de deixar no vazio uma
história que poderá ser o desdobramento da que é exposta aos olhos do
leitor, acontecendo na realidade
exterior, vivida pelo personagem em vários casos, com os acordes ásperos de
uma música chamada solidão. Essa técnica de embutir na história narrada outra história, que fica por conta da
imaginação do leitor, encontramos também em “Dona Amália”, uma mulher viúva e
solteira, que só tem uma amiga íntima, a
Estelinha. O que acontecerá quando a sua empregada doméstica anunciar
que vai deixar o emprego para se casar? O drama da situação adversa que irá
provocar na viúva solitária, quando a notícia nada agradável for dada, fica no vazio para que o leitor de novo volte
a imaginar outra história.
Vida, morte, solidão, os temas
focados nesses contos primorosos de
Aramis Ribeiro Costa, reunidos agora no volume Retorno em tarde sem sol. A tragédia estampada nas tintas do horror
está presente em “Partida”, conto que deixa entrever como viver é arriscado,
vive-se sob um cerco perigoso, de imprevistos e cenas absurdas, que podem ser
desfechadas no ímpeto inconcebível quando menos se espera. Em alguém, por
exemplo, que decidido a partir para sua
cidade de origem, no interior, em busca de dias mais sossegados, é assassinado naquele instante de despedida,
pelo simples fato de gostar de tirar fotos e um indivíduo não gostar de estar
sendo fotografado.
Dolorosa também é a nossa precária condição humana que se mostra no
quadro em que o pai se sente apunhalado pelo filho quando soube que o mesmo
havia dado um desfalque na firma do padrinho. “Sentia-se traído. De nada tinham
valido as lições, os conselhos, o exemplo da própria honradez, de nada valera
ter construído um nome honesto e
respeitado.” Um mundo sólido feito de
princípios e atitudes éticas, inabalável,
veio abaixo devido à vergonha, que
não tinha tamanho, como nunca o
pai havia sentido. O filho disse que ia embora, esperando que houvesse o
milagre do perdão. Do lado de fora da casa, “o filho colocava as malas no seu
carro quando ouviu o estampido”.
São contos exemplares esses reunidos em Retorno em tarde sem sol, não porque abracem uma ética em que o
autor busque transmitir lições baseadas em ideias e princípios moralizantes,
lições corretas de vida para que sejam impingidas ao leitor, no intuito de
contribuir para a formação de padrões,
visões e leituras fundamentais da experiência humana. Não estão aqui enfeixados
como exemplos para se ter consciência do bem e se afastar do mal, optar pelo
correto no lugar do errado. Esses contos
são bem exemplares em razão de uma estética do comportamento humano sustentado
pelo autor através da amostragem de instantes agudos da existência com os seus
grandes conflitos. È sobre a condição humana circunstanciada pelas contradições
da vida, com seus eventos inusitados, que esses contos demonstram, sem nunca forçar
a nota, o quanto a vida perturba na sua
estupidez. Daí, como não poderia deixar de ser,
a presença da solidão em vários deles,
da morte, da incomunicabilidade, do trágico, do patético, das convenções
estereotipadas para se comemorar uma data, e outros momentos críticos que nos acompanham
e esfacelam no difícil gesto do viver.
Todas essas falhas da vida estão presentes
nesses contos de fatura exemplar, tanto na concepção como na execução,
na forma espontânea da linguagem, no
clima absurdo que geram cumplicidades que ferem
o diálogo estabelecido entre leitor e personagem, intensamente permeados
de tristeza e golpes duros, armados pelo
ilógico da existência.
Demonstram que a literatura é forma de aludir à vida como forma
solidária, como ela sabe transmitir beleza e verdade quando nos faz cúmplices da fraqueza que nós
os humanos protagonizamos na experiência
de cada existência. Ela tudo dá e nada toma, devolve a nós
mesmos o que nos pertence, razão e emoção da união geral na
constante canção do viver.
Entre os excelentes contos desse Retorno em tarde sem sol, dois
chamaram-me mais a atenção: “Dinamarca”
e “O Aniversário da Avó”. No
primeiro, o tema da insatisfação humana
faz-se visível na comemoração de cem anos de um velho bem-sucedido, orgulho do
bisneto, alvo de admiração de parentes e de muitos que estão na festa,
esbanjando alegria, brindando uma data redonda, rara de ser alcançada, a não
ser pela proeza daquele homem, já
decrépito, trazido ao salão numa cadeira de rodas, juntamente com a esposa, também
idosa e numa cadeira de rodas. Um homem
ímpar, que, juntando uma fortuna,
tornara-se uma pessoa importante. “Um homem que vivera um século e construíra
alguma coisa grande” e que naquele ambiente de entusiasmo só podia estar feliz. Quando a repórter de televisão, insistindo na
pergunta, procurou saber se ele estava
feliz, rodeado de tanta alegria, surpresa escutou um não, um grito de quem
afirmava ser um homem incompleto porque não tinha ido à Dinamarca. A desconcertante resposta, em sonoro não, mostrava o quanto a vida é curta e falha,
incapaz de realizar tudo que desejamos, indiferente ao que pensamos e atuamos segue
marcada de frustrações, traumas
constantes que consegue imprimir na rotina de cada um.
Em “O Aniversário da Avó”, narrativa para homenagear “Feliz Aniversário”,
famoso conto de Clarice Lispector, incluído no livro Laços de família (1960), revela o quanto um contista singular trata de
assunto já desenvolvido por escritora maior, tornado clássico em nosso conto,
sem que se faça um imitador, um infrator
indevido da imaginação do que veio
primeiro para ficar em texto
original sobre assunto projetado
de maneira pessoalíssima. Nessa variação de conto sobre a eterna
velhice, a ética do comportamento
criativo de Aramis Ribeiro Costa salta à vista,
começando na epígrafe que retira
do conto de Clarice Lispector, É preciso
que se saiba que a vida é curta. Que a vida é curta, e coloca no seu, antes de expor a sua leitura secreta em torno
da infelicidade, que se apresenta com as
cores da felicidade nas cenas formadas
naquele dia especial de aniversário.
Em “Feliz Aniversário”, de Clarice Lispector, ao invés de uma comemoração prazerosa, nota-se que não só Zilda, mas todos os parentes, os
familiares estão apenas cumprindo tarefas, todos também estão sendo manipulados
pelo dever. Em “O Aniversário da Avó”, de Aramis Ribeiro Costa, a solidão vem acompanhada na ausência
de ternura por partes de filhos, que não comparecem, nem tampouco os filhos
deles, para abraçar a aniversariante na
data em que completava oitenta anos. Como fere a atitude humana quando se faz
necessário o afeto para que a vida acorde no coração o encanto no lugar do desencanto. É o que se afere nas entrelinhas desses dois
contos magníficos, que mergulham fundo na relação complexa da solidão
acompanhada, vivida em família.
Em ambos
os contos, a vida é recortada em
instantes perturbadores e brutais do que
somos em nossos relacionamentos, como é enganosa no que parece se mostrar à
primeira vista. São dois contos que colocam à mostra os grandes conflitos do ser humano,
explorando-se com muita sutileza as
regiões mais profundas e inexprimíveis da alma, aliando a razão à
sensibilidade nos seus pontos mais graves, por meio de uma linguagem visceralmente poética em Clarice Lispector, cativante em
Aramis Ribeiro Costa. Ressalte-se que cada
contista nas histórias similares tem a sua voz, seu acento, sua impressão, sua
invenção que resulta da capacidade que tem a literatura de fixar as imensas
proporções da experiência humana. Nesses dois casos, do micro no macro através
do conto.
A literatura opera desses milagres em que às vezes nos deparamos com a ficção e a
realidade entrelaçadas naquele ponto nodal em que a mentira, beleza da ilusão
projetada com a palavra, não passa da verdade a pulsar sensibilidades
provenientes dos nervos da vida concreta. Sensação que passamos quando da
leitura dos contos bem exemplares enfeixados por Aramis Ribeiro Costa nesse Retorno
em tarde sem sol.
REFERÊNCIAS
COSTA, Aramis Ribeiro. Retorno em tarde sem sol, Editora
Kalango, Simoes Filho, Bahia, 2016.
LISPECTOR, Clarice. Laços de família, contos, Editora
Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1960.
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