A Guerra Lá e Cá
Conto de Cyro de Mattos
Em primeiro de setembro
de 1939. A Alemanha nazista, liderada por Adolfo Hitler, invade a Polônia. Dois
dias depois, a França e a Inglaterra declaram guerra aos alemães. Não se fala
de outra coisa na cidadezinha perdida no interior baiano. Enquanto dura o
conflito, os habitantes são tomados pelo medo. Quase seis anos de fogo.
Sombras. Pesadelos. Ventos chegam com seus gritos de horror até o lado de cá,
todos os dias. A qualquer momento, o
rádio dá a notícia de como anda o monstruoso sofrimento nos campos da Europa.
Conta histórias de luta, fome, desemprego
e perseguições.
O farmacêutico Ligori
espera sua vez na barbearia de seu Nô para
fazer o cabelo e a barba. O dono
da barbearia, um negro de nariz achatado, lábios grossos, treme as pernas
quando ouve falar na guerra. Seu Ligori lembra que Hitler, o pequeno homem de
bigodinho irascível, quer fundar o
império duma raça branca na Europa e ser
o dono do mundo. Se ele, na sua crença
de ser superior, conseguir a vitória, o
Brasil onde a maioria do povo é formada de pretos e mulatos será
fatalmente um dos países submissos ao
império do ditador.
Alemanha, Áustria, Itália
e Japão. Países do Eixo ou quinta colunistas, como pessoas do povo gostavam de chamar. Em compensação, como observa seu Ligori, boa
parte do planeta apoia os países aliados, liderados por França, Inglaterra e, mais tarde, também
Rússia e Estados Unidos. O Brasil não
está entre as exceções. Adere à causa
aliada, depois do afundamento de navios de bandeira nacional na costa
brasileira por submarinos alemães.
Pela voz do locutor
Timóteo, no alto-falante da praça, a
multidão hipnotizada escuta a notícia de
que milhares de judeus são eliminados pelos
alemães num ritmo implacável. Seguem nos
vagões do trem, apertados, amontoados, alguns morrendo sufocados ou de fome no
meio do caminho. Faziam no vagão as suas necessidades fisiológicas.
Selecionam homens,
mulheres e crianças. Pais são separados dos filhos, as mulheres dos maridos. Criaturas indefesas desaparecem sem que
possam dizer adeus com esperança. O
locutor Timóteo fala, em sua voz entristecida,
daquelas criaturas que partem nos vagões como boi para o matadouro. Por
sua vez, os que participam da missa dominical estão ouvindo atentos o padre Messias em sua prédica. Ele fala aos
borbotões. Suas veias do pescoço
sanguíneo latejam como cordões grossos. A voz alta fere o tímpano dos fiéis,
ressoa na igreja em silêncio.
Ele pede para que os
fiéis rezem com fervor, roguem a Deus
para que aprisione os quatro cavalos do Apocalipse, ilumine os aliados com o
seu espírito salvador para que o
Anti-Cristo seja derrotado em pouco tempo. Só Deus pode impedir que o mundo não
acabe agora em dias de fogo. Ele termina
a prédica com os braços abertos, como
querendo proteger a todos em suas mãos
compridas e aconchegantes.
O professor Marcelino,
ex-seminarista, recebe aplausos em certo trecho de sua conferência que está
sendo proferida no salão do ginásio. Sua palavra segura, próxima da realidade trágica, ressalta que o ser humano está sendo recuado para os subterrâneos mais indignos. O bem e o
mal coexistem numa vizinhança das mais
imprevisíveis quanto mais niilista. O mal não tem limite.
Corpos são usados para experiências absurdas. Almas sem clamor e
pequenos corações vivem aterrorizados
sob a expectativa de que só vão sair dos campos de extermínio pela chaminé reduzidos a cinzas.
Sirenes, bombas,
torpedos. Explosões, crateras, escombros. Na
enchente a morte. As pessoas imaginam que tudo está acontecendo na
Europa de maneira diabólica. A fera ressurge da antiga caverna para galopar nas
trevas. Não concede a trégua, bane a
pomba na légua, só quer a selva. O amor é uma coisa inútil, um absurdo a relva.
A vida, sem o som da fúria, não tem qualquer possibilidade de ser livre,
está em ruínas, numa condenação sem
sentido. O que torna possível a construção do monstruoso absurdo? O rádio não
para de informar acerca de ganhos e perdas nos dias assoberbados por
intermináveis cargas de fogo.
Em 27 de janeiro de 1945, diante dos soldados
do exército vermelho, muita gente morta, pessoas fuziladas, mutiladas, corpos queimados.
Naqueles idos de 1945, o menino é levado pela mãe para aprender as lições de
Instrução Moral e Cívica no prédio
escolar. Havia escutado o vizinho dizer para o pai no dia anterior que uma grande passeata vai sair pelas ruas clamando pela liberdade, os
manifestantes sustentando cartazes de apoio aos países aliados e aos pracinhas
brasileiros que estão no conflito.
Um dia, o sorriso que alarga o rosto aparece na rua com os habitantes da cidade
pequena. Todos eles irradiam alegria por causa da fuga das sombras feitas de
horrores nos bombardeios e penúrias de rostos com fome. A notícia
voa levando por todos os cantos a informação de que as bombas inimigas
estavam caladas para sempre nos campos da Europa. Já não existem mais as horas
do mundo cheias de grito e agonia.
E o menino vai assistir todo feliz
a vitória do amor através do desfile sonoro do povo nas ruas. Os sinos
tocam sem parar a canção constante de paz,
antiga, bem antiga, belíssima.
Bonecos, caricaturas, charges de Hitler, Mussolini e o imperador Hirohito estão nas ruas como monstros ou demônios. A
chuva grossa que cai de repente não desanima os manifestantes que percorrem as
ruas principais.
O Tiro de Guerra, os
colégios, os escoteiros. Associações de classe, autoridades de mãos dadas com o
povo. Tambores rufam pelas ruas de chão batido, arrancando intensos vivas de quem veio participar da festa. As
pessoas vibram intensamente nos passeios, portas e janelas. O ponto alto das
manifestações acontece com o comício na
praça da Beira-Rio. O coreto do jardim
iluminado tem um “V” grande da
vitória. Foguetes pipocam no céu cintilante de estrelas. As bandeiras do
Brasil, da Bahia e da cidade tremulam na
noite agitada. A Filarmônica toca a Marselhesa, hino da resistência dos
aliados franceses. Toca depois canções e
marchas militares brasileiras. É ovacionada quando termina de tocar o Hino Nacional.
Os oradores desfilam no palanque enfeitado de
bandeirolas, cada discurso mais inflamado do que o outro. Felício Brasigóis, o
poeta da cidade, octogenário bigodudo, é o último dos oradores. Suas palavras
escorrem mansidão por entre rostos atentos, erguem
um mundo que cativa com o braço ao abraço. Segundo os versos do poema
que ele diz, sem a paz é o caos, nada
mais vale tanto do que os dias livres das botas impassíveis, os jardins com
crianças, os ares frescos da noite bem dormida. Anônimo para muitos, tão perto
agora de todos, o poeta de cabelos
brancos, encurvado, recusa uma senhora
diabólica, que arrasa os sonhos, bombardeia projetos, dizima a maravilha, mata
a esperança, tritura a ternura. Com suas manadas enfurecidas, pisoteia tudo que
nasce do amor.
Ainda permanece na memória a figura
daquele homem, baixote e gordo, à frente da passeata. Levava uma tabuleta com
esses dizeres: AUSCHWITZ NUNCA MAIS. Era o gringo Leone Leibowitz, judeu
lituano que tinha uma loja de calçado, chapéu e tecido, na rua do comércio.
Fora obrigado a migrar para o Brasil
antes de começar a guerra, vindo morar
com a mulher no interior da Bahia.
Lembro-me dele vendendo as coisas com um preço
barato na loja. Ninguém entrava na Loja
Bonamigo para sair de mãos vazias, sem
comprar um sapato, chapéu, capa, gravata
ou tecido. O gringo tinha uma maneira engraçada de cativar o freguês, “tudo
aqui é barato, dinara não importa, gringo Leone é bonamigo.” Tornava-se mais
engraçado quando falava ligeiro misturando o lituano com o português das gentes do interior baiano.
O freguês demorava entender o preço exato que ele dava a um chapéu ou sapato.
Gostava de fumar “yolanda azul”. O
cigarro apagado, esquecido no canto da boca, enquanto atendia o freguês. Todo
mundo na cidade sabia que ele não fazia
mal a uma mosca.
Os meninos de meu tempo
gostavam muito do gringo Leone. Queriam
acompanhar os pais quando iam fazer compras na Loja Bonamigo. O gringo dava balas de jenipapo ao
menino quando o pai ou a mãe terminava de fazer as compras. Um dia recebi uma
mão cheia das gostosas balas de jenipapo, que a mulher dele fazia. Acho que eu
era o que mais gostava do gringo Leone,
entre todos os meninos.
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