Versos
na Pulseira do Tempo
Cyro de Mattos
O baiano Renato Prata
nasceu em Itabuna, como sua irmã Heloísa Prazeres, que também é poeta. Em Breve
antologia poética (2017) publica dessa vez uma seleção de poemas extraídos
de seus quatro livros: Sob o cerco de muros e pássaros (2003), A quinta estação (2007), A pulseira do tempo (2012) e Mar Interior (2015), além de outros retirados das
antologias Poetas da Bahia II e III (2003, 2015) e Outros Riscos (2013). Organizada por
Heloísa Prazeres, essa Breve Antologia
Poética, prestes a ser publicada pela editora Mondrongo, é uma amostragem poética da vida em seu claro
parentesco com a música, a considerar espaços da significação ideal do mundo
através do verso.
De marcante presença na
lírica contemporânea da Bahia, o poeta
de gestos recatados preferiu conviver com o seu projeto estético, em exercício
qualificado, durante décadas até que comparecesse em livro. Recolhido ao silêncio
de suas criações, não optou por conviver
em grupos, forjar alianças, para desfrutar de certo comércio no setor, muito
comum aos elogios mútuos e fáceis. Tornou-se o principal crítico de sua
produção poética antes de fazer sua estreia
como um poeta maduro, privilegiado, na sua expressividade, por meio das
construções de formas líricas, tanto nos
versos livres como nos de estruturas fixas.
Conquistou alguns
prêmios literários importantes na Bahia. Um de seus livros teve a edição do
próprio autor, já outros três foram publicados por editoras baianas de porte pequeno, sem atuação no
circuito nacional. Mas o que vale é a sua
poesia, que, de livro a livro,
apresenta-se integrada de linguagem e
vida.
Poeta de ritmo
melodioso, desde a estreia em Sob o cerco
de muros e pássaros revela que, se
procede dos deuses, viaja com tropeços na claridade. Lê-se no poema “O passado
investe nossos passos” que os versos da juventude nem chegaram a ter escritura,
“gastaram-se no limbo por decênios”. Sem
cantar “as efusões de um dia, amadas
inúteis, o primeiro encontro com a morte”, a certa altura indaga da razão dessas impressões líricas,
guardando sonhos no que sabem o quanto viver, no fluxo e refluxo do
prazer, têm o passado que investe nossos
passos. Leva-nos à conclusão de que um
clima é formado de acréscimos líricos,
que a cada momento formam um corpo concentrado em si de sentimentos,
escavações no interior, que são expostas aos ventos.
É nesse tom
essencialmente lírico, participante de momentos com aguda sensibilidade, que encontramos um poeta inventor do poema com lastros da
miragem, ternuras, purezas, maciez e algum presságio. Toca em nossos ouvidos
uma poesia orvalhada de emoções, trinado de pássaro, jogo das ondas no vasto
mar de ideias, que no seu timbre ritmado de cores, sutilezas
várias, corre e voa com a musicalidade de sua composição quando escalavra o
vento. Tece com sabedoria o silêncio
marcado pela ilusão, que se impôs nas
trilhas do sonho através do intercâmbio da palavra capaz de esclarecer o
mundo.
De arguta leitura da
vida, compartimentada no verso, como no poema “Rastrear os deuses”, Renato
Prata expõe sua crença na poesia quando
afirma que elabora o verso para atravessar divisas da solidão, maneja-o com
precisão para capturar sentidos que revelam o mundo.
Eu faço versos mais cedo
Quando arfa o silêncio pela casa
Olhos de neblina e entressonho
Rastreando os deuses da poesia.
Na poética construída com paciência e consciência do ofício, nota-se como
o poeta em si concebe esse sujeito que tem veias de vidro para refletir
o mundo, esse habitante daquela ilha verde com a aridez dos anos, expedindo canção e danação, mas desprovido de
cupom fiscal. Quando dotado de sensibilidade arguta, constrói belas e
verdadeiras estrofes, tentando equilibrar-se entre espantos, na direção constante de quem incorpora novas
opiniões perante a experiência humana no mundo.
Não guardo moldes e cálculos
Soletro tempos e pássaros
Mas tudo exponho aos ventos.
Nessa Breve Antologia Poética,
de novo percebo as qualidades de um discurso que vaza lucidez, pulsando nas
intimidades de suas estações com a pulseira do tempo o eu lírico, em
procedimentos de teor filosófico, até mesmo nas
incursões expressivas
metalingüísticas. Nessas suas maneiras alusivas da vida, que são apenas ondas
antes de alcançar o cume e espraiar na metáfora, prova ser a sua força a de um
lírico autêntico, a ação quase não se
fazendo perceptível, o poeta
caminhando pelo interior de espaços que existem independentes
de sua forma instrumental,
manifestando-se com
imagens que se ajustam a uma inventiva
formal que só os poetas experientes
dominam.
Contra o silêncio de
seres e objetos, em suas relações
instransponíveis ao primeiro golpe de vista, emerge esse poeta de sentidos e visões penetrantes do que importa deixar-se ficar,
vale tocar e decifrar. Revela, em sua legítima impressão digital, sinais que
reverberam solidões, estados de alma por entre cenas do cotidiano, plasmadas pelas luzes da
memória, transes e emoções de quem sabe ser isso a veia e o veio para dialogar
com o outro nas incompletudes do tempo,
indiferente ao que nos envolve e habita no trânsito da existência. Desse ponto de vista,
existe sem dúvida uma proposta formulada que chamo de pulsações líricas no labirinto de Orfeu, que comove nessa coisa
afável, diáfana, feita de versos e estrofes para suportar a vida.
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