Páginas

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

            A Estreia Literária de Margarida Fahel

                                            Cyro de Mattos

           Com o romance Nas dobras do tempo (2015), Margarida Fahel  faz sua estreia na literatura de boa qualidade produzida por autores nascidos no Sul da Bahia, uns focando a temática do cacau,  outros desenvolvendo assuntos dos mais diversos da natureza humana, sem dependência de geografia humana  exterior,  como é o caso das vozes femininas de Elvira Foeppel e  Sonia Coutinho.   
O romance  Nas dobras do tempo  tem como tema o amor, com suas dores e flores, solidões tantas, e logo desponta  com pontos positivos no texto construído  através de  técnica moderna na forma de narrar. Costurado   por vozes de mulheres que chegam do silêncio como ondas e que se estendem nas dobras do tempo como um lençol enorme, o monólogo interior neste romance é usado  para externar situações da alma, ora agudas, ora ternas,  trazendo à tona surpresas,  que ultrapassam os limites do acontecimento e se fazem solidárias.
O tempo desfia lembranças  nas confissões postas em certo epistolário, nas  situações  retiradas de um diário,   que guarda  segredos na poeira dos dias ao invés de joias.  Além disso, espantos, nessa mesma ideia do amor, fundamentam-se nos  acenos da memória para dar   conhecimento das  vias  percorridas por  duas linhagens no rio da vida. 
 Na teia romanesca bem urdida pelo tempo fragmentado,  o  texto  vai sendo juntado com  pedaços da vida, formando um mosaico cujo corpo transita  à feição de interioridades  do coração,  entre  tristezas e alegrias.  Constituído de mergulhos na eterna duração do tempo,  que se curva no âmago de  criaturas vivendo a umidade dos sonhos e a secura dos desejos, essas  vozes femininas  ora chegam de longe  impregnadas  de incandescente ternura, ora renascem das cinzas  nas cores que comovem  na saudade.
Fundem-se  no presente diante dos  idênticos sentimentos de quem as escuta, como se viessem com o propósito de  unir momentos distantes de duas pessoas em um só, numa só palavra, num só gesto,  num só amor. No  intuito de reavivar    a natureza humana  de  uma  mesma unidade, revestem-se de confissões, admirações e lamentos,  até que o tempo se decida na conversão dos ais, das cicatrizes do efêmero,   dos brilhos ligados  à vida nos  gestos calmos.
Esse senhor soberano, o tempo, que sabe das  coisas e dos  caminhos,  aqui  se mostra  vestido de delicadezas, mesmo nos momentos aguçados de tristeza, e que   vão  sendo apresentados pelas vozes dessas  mulheres vividas  em momentos diferentes, distantes,  mas que  o souberam em horas  similares do amor. Entrelaçadas  muitas vezes com o sofrimento, suas vozes  terminam com uma explicação em forma de visões,   pressentimentos e intuições. 
Nessas quatro mulheres, a bisavó Marie Bertha, a  avó Marie Élise, a mãe Maria Teresa e a filha  Luísa - enovelam-se  com os fios eternos do sonho a teia romanesca,  tecida com cuidado e sem pressa na pele do  tempo. Em linguagem descontínua e digressiva, para romper com a narrativa linear do romance tradicional, o discurso  tantas vezes lírico,   indo e vindo no flash-back, refere-se à vida em grito, sua fluência nas dores,  conduzida por gesto  de esperanças, nas  purezas, no medo, nos  amores. Até nas dores, nas tristezas fabricadas por esse  senhor soberano,  aquele  que tudo sabe, escorre e lambe, acontecem  situações que tocam uma música com as teclas do bem. O romance percorre  espaços cadenciados com afeto para no  final  chegar à paz,  não fosse a  autora dotada de um sensibilidade acurada posta a serviço do amor como a verdade que faz o sentido.  
O mundo imaginado por Margarida Fahel nos dá a sensação de que essas mulheres, embora distantes no tempo, sempre andaram  juntas, tamanha é a união de suas vozes , que vão e voltam, chegam do silêncio como a pureza das brisas para o fluxo e o refluxo de  constatações segundo os critérios do tempo. Não se perderam nas rugas, na prata dos cabelos,  estiveram em cada dia, hora e minutos,   todas elas na mágica suprema  que o rio da vida plasma. Escreve  nas águas  tudo que é acontecimento, escorre seu curso  por entre os sulcos da descida, e que  a memória guarda. 
Assim,  na foto  que a memória retém,  na carta que  ata lembranças e acende o coração nos rumores  das distâncias, percebemos  a  tristeza escondida no rosto sério da bisa Bertha, por  trás das  ordens, na cozinha às negras, no canavial aos escravos, na roça de cacau  aos trabalhadores. Também escutamos pulsações sublimes  no sorriso mais doce de outras personagens nucleares,  na serenidade do gesto,  numa certa e singela ironia. Escutamos gritos em silêncio,  que ferem a aparente calma do corpo e contagiam  a vida, como diz Luísa Bresson Koch Monteiro, personagem  que conta sua história e, ao mesmo tempo,  escuta as de seus antepassados, num tempo em que mulheres não  contradiziam, sempre devotadas e obedientes, segundo os costumes da época, reservando-se por isso ao esquecimento e exílio as  que  se rebelavam.  

Tantas lágrimas, tantas e tantas alegrias! Saudades, muitas saudades! Tantas coisas na memória, tantas coisas e  rostos e falas inscritas na memória, nas células, na pele gravadas!

Romance de disposições líricas, que é arrastado nos altos e baixos da corrente anímica,  tomando nos caminhos e descaminhos das criaturas como referência as  dobras perenes do tempo,  a estrutura não se configura com   tendência para completar-se com o épico e o trágico  por uma exigência da representação dramática da vida, decorrente da própria essência, nem tampouco por incapacidade da autora. Da vida quer a ideologia desse romance fornecer a utopia apenas  como uma  representação ideal,    desprovida  de tensão perturbadora dos sentidos,  com o delírio de gestos  lancinantes do comportamento humano, em  redemoinho de conflitos gerados  por entre uma paisagem  rotulada de maldita, sob o domínio do inferno. 
Apesar dessa ausência do elemento trágico, melhor e intenso,  diante  do qual o mundo vivido é marcado por episódios na luta pela terra, dotando suas passagens com cenas extraordinárias  impregnadas do drama,  não   deixa de tocar  nas feridas do sistema organizado,  com base  na  escravidão do trabalho exercido pelos negros vindos da África. De  aludir  à norma  que relegava a mulher ao código da resignação,  imposto pelo homem com o seu privilegiado mandonismo.
        O tempo histórico do romance,  no vaivém das lembranças,  situa-se  a partir do  final  do século  XIX, quando Ilhéus era uma vila,  a economia hesitante baseava-se  no cultivo da cana de açúcar e  lavouras de pouca duração. Alcança  os  primeiros passos tímidos da lavra cacaueira, depois da abolição da escravatura, e  se reencontra na rota do progresso movido pela força do cacau, que torna  a Vila dos Ilhéus,  antes  de casas feias, ruas estreitas e descuidadas,  em um município poderoso. Das gentes que chegam da Europa,  alemães e franceses,  em fins do século XIX, para pisar o chão de um novo mundo,  conquistá-lo com o trabalho e dele haurir  as benesses, são tiradas algumas  personagens que convencem  em razão da beleza de caráter e firmeza de  vida.   
       A perspectiva literária que a autora encontra para a montagem  de  Nas dobras do tempo, fora da efervescência da lavoura cacaueira com seus dramas gerados pela conquista da terra,  resulta em  fatura valorosa  de sua missão como ficcionista moderna. No diário da bisavó Bertha, no cofre, em que não se guardou  joias, nas dores sepultadas com as cores da dureza,   em   retalhos de vida  descobertos no sofrimento da avó  Élise, nas tristezas do avô Hans, nas  saudades do avô Pierre, e “como pássaro saído de uma cartola mágica, a verdade sobre Anísio”, o negro de olhos verdes, tudo que se desprende deste romance em forma do doloroso e do afetivo faz lembrar os versos do poeta, dizendo, “quando em ti  existo/,  e eras tu e a realidade/, em que te respiro e observo/, perduro e  me fui  e fico. “
      Numa outra linhagem, como em círculos que se atam, estendem-se,  associam-se,  paralelamente  à linhagem da família de Maria Teresa  Koch Monteiro, outros pontos nodais do novelo romanesco  são desatados, ferindo  na  abordagem  elegante a  miséria amarrada aos rastros da verdade quando então fora  encoberta pelos passos desgraçados da  escravidão dos negros.

      Anísio e Jovanina. Anísio, Justina, e Maria Adelaide. Anísio, Justina,  Maria Adelaide e Ivan. Ivan e eu, Luísa... Eu, a depositária desses retalhos. Todos eles, agora costurados com fios de dor e de amor. Um grande lençol tecido e bordado  pela aparente incoerência  do destino.

         A Luísa, a sempre amada por Ivan, advogado brilhante, culto, vítima de traição por um colega de escritório, que o levaria a uma prisão injusta, coube  a missão de emendar e estender este lençol aos que desejem percorrer as trilhas do amor vivido por personagens criados com alma, sensibilidade arguta, narrativa  que nos prende com intensidade de vida.  Na trama do destino, e ouso  dizer  por escolha existencial,  coube a Margarida Fahel  construir um romance  denso e cativante, de narradora de fôlego, imaginação com  asas largas do lirismo, dando-nos  certezas sobre o difícil e complexo gesto do viver,  como essa que diz , sem hesitar,   com tanta pureza, plena de verdade,  que só o amor salva. E mais perdura se flui com o perfume do jasmim.


Referências


FAHEL, Margarida. Nas dobras do tempo, editora Mondrongo, Itabuna, Bahia, 2015.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética, Edições Tempo Brasileiro, Rio, 1972.


Nenhum comentário:

Postar um comentário