A
Estreia Literária de Margarida Fahel
Cyro de Mattos
Com o romance Nas dobras do tempo (2015), Margarida Fahel faz sua estreia na literatura de boa qualidade
produzida por autores nascidos no Sul da Bahia, uns focando a temática do
cacau, outros desenvolvendo assuntos dos
mais diversos da natureza humana, sem dependência de geografia humana exterior,
como é o caso das vozes femininas de Elvira Foeppel e Sonia Coutinho.
O romance Nas
dobras do tempo tem como tema o
amor, com suas dores e flores, solidões tantas, e logo desponta com pontos positivos no texto construído através de
técnica moderna na forma de narrar. Costurado por vozes de mulheres que chegam do silêncio
como ondas e que se estendem nas dobras do tempo como um lençol enorme, o
monólogo interior neste romance é usado
para externar situações da alma, ora agudas, ora ternas, trazendo à tona surpresas, que ultrapassam os limites do acontecimento e
se fazem solidárias.
O tempo desfia
lembranças nas confissões postas em
certo epistolário, nas situações retiradas de um diário, que guarda
segredos na poeira dos dias ao invés de joias. Além disso, espantos, nessa mesma ideia do
amor, fundamentam-se nos acenos da
memória para dar conhecimento das vias
percorridas por duas linhagens no
rio da vida.
Na teia romanesca bem urdida pelo tempo
fragmentado, o texto
vai sendo juntado com pedaços da
vida, formando um mosaico cujo corpo transita
à feição de interioridades do
coração, entre tristezas e alegrias. Constituído de mergulhos na eterna duração do
tempo, que se curva no âmago de criaturas vivendo a umidade dos sonhos e a
secura dos desejos, essas vozes femininas ora chegam de longe impregnadas
de incandescente ternura, ora renascem das cinzas nas cores que comovem na saudade.
Fundem-se no presente diante dos idênticos sentimentos de quem as escuta, como
se viessem com o propósito de unir
momentos distantes de duas pessoas em um só, numa só palavra, num só
gesto, num só amor. No intuito de reavivar a natureza humana de
uma mesma unidade, revestem-se de
confissões, admirações e lamentos, até
que o tempo se decida na conversão dos ais, das cicatrizes do efêmero, dos brilhos ligados à vida nos
gestos calmos.
Esse senhor soberano, o
tempo, que sabe das coisas e dos caminhos,
aqui se mostra vestido de delicadezas, mesmo nos momentos
aguçados de tristeza, e que vão sendo apresentados pelas vozes dessas mulheres vividas em momentos diferentes, distantes, mas que
o souberam em horas similares do
amor. Entrelaçadas muitas vezes com o
sofrimento, suas vozes terminam com uma
explicação em forma de visões,
pressentimentos e intuições.
Nessas quatro mulheres,
a bisavó Marie Bertha, a avó Marie
Élise, a mãe Maria Teresa e a filha
Luísa - enovelam-se com os fios
eternos do sonho a teia romanesca,
tecida com cuidado e sem pressa na pele do tempo. Em linguagem descontínua e digressiva,
para romper com a narrativa linear do romance tradicional, o discurso tantas vezes lírico, indo e vindo no flash-back, refere-se à vida em grito, sua fluência nas dores, conduzida por gesto de esperanças, nas purezas, no medo, nos amores. Até nas dores, nas tristezas
fabricadas por esse senhor
soberano, aquele que tudo sabe, escorre e lambe,
acontecem situações que tocam uma música
com as teclas do bem. O romance percorre
espaços cadenciados com afeto para no
final chegar à paz, não fosse a
autora dotada de um sensibilidade acurada posta a serviço do amor como a
verdade que faz o sentido.
O mundo imaginado por
Margarida Fahel nos dá a sensação de que essas mulheres, embora distantes no
tempo, sempre andaram juntas, tamanha é
a união de suas vozes , que vão e voltam, chegam do silêncio como a pureza das
brisas para o fluxo e o refluxo de
constatações segundo os critérios do tempo. Não se perderam nas rugas,
na prata dos cabelos, estiveram em cada
dia, hora e minutos, todas elas na
mágica suprema que o rio da vida plasma.
Escreve nas águas tudo que é acontecimento, escorre seu
curso por entre os sulcos da descida, e
que a memória guarda.
Assim, na foto
que a memória retém, na carta
que ata lembranças e acende o coração
nos rumores das distâncias,
percebemos a tristeza escondida no rosto sério da bisa
Bertha, por trás das ordens, na cozinha às negras, no canavial aos
escravos, na roça de cacau aos
trabalhadores. Também escutamos pulsações sublimes no sorriso mais doce de outras personagens
nucleares, na serenidade do gesto, numa certa e singela ironia. Escutamos gritos
em silêncio, que ferem a aparente calma
do corpo e contagiam a vida, como diz
Luísa Bresson Koch Monteiro, personagem
que conta sua história e, ao mesmo tempo, escuta as de seus antepassados, num tempo em
que mulheres não contradiziam, sempre
devotadas e obedientes, segundo os costumes da época, reservando-se por isso ao
esquecimento e exílio as que se rebelavam.
Tantas
lágrimas, tantas e tantas alegrias! Saudades, muitas saudades! Tantas coisas na
memória, tantas coisas e rostos e falas
inscritas na memória, nas células, na pele gravadas!
Romance de disposições
líricas, que é arrastado nos altos e baixos da corrente anímica, tomando nos caminhos e descaminhos das
criaturas como referência as dobras
perenes do tempo, a estrutura não se
configura com tendência para
completar-se com o épico e o trágico por
uma exigência da representação dramática da vida, decorrente da própria
essência, nem tampouco por incapacidade da autora. Da vida quer a ideologia
desse romance fornecer a utopia apenas
como uma representação
ideal, desprovida de tensão perturbadora dos sentidos, com o delírio de gestos lancinantes do comportamento humano, em redemoinho de conflitos gerados por entre uma paisagem rotulada de maldita, sob o domínio do
inferno.
Apesar dessa ausência
do elemento trágico, melhor e intenso,
diante do qual o mundo vivido é
marcado por episódios na luta pela terra, dotando suas passagens com cenas
extraordinárias impregnadas do
drama, não deixa de tocar nas feridas do sistema organizado, com base
na escravidão do trabalho
exercido pelos negros vindos da África. De
aludir à norma que relegava a mulher ao código da
resignação, imposto pelo homem com o seu
privilegiado mandonismo.
O tempo histórico do romance, no
vaivém das lembranças, situa-se a partir do
final do século XIX, quando Ilhéus era uma vila, a economia hesitante baseava-se no cultivo da cana de açúcar e lavouras de pouca duração. Alcança os
primeiros passos tímidos da lavra cacaueira, depois da abolição da
escravatura, e se reencontra na rota do
progresso movido pela força do cacau, que torna
a Vila dos Ilhéus, antes de casas feias, ruas estreitas e
descuidadas, em um município poderoso.
Das gentes que chegam da Europa, alemães
e franceses, em fins do século XIX, para
pisar o chão de um novo mundo,
conquistá-lo com o trabalho e dele haurir as benesses, são tiradas algumas personagens que convencem em razão da beleza de caráter e firmeza
de vida.
A perspectiva literária que a autora encontra para a montagem de Nas dobras do tempo, fora da
efervescência da lavoura cacaueira com seus dramas gerados pela conquista da
terra, resulta em
fatura valorosa de sua missão
como ficcionista moderna. No diário da bisavó Bertha, no cofre, em que não se
guardou joias, nas dores sepultadas com
as cores da dureza, em retalhos de vida descobertos no sofrimento da avó Élise, nas tristezas do avô Hans, nas saudades do avô Pierre, e “como pássaro saído
de uma cartola mágica, a verdade sobre Anísio”, o negro de olhos verdes, tudo
que se desprende deste romance em forma do doloroso e do afetivo faz lembrar os
versos do poeta, dizendo, “quando em ti
existo/, e eras tu e a
realidade/, em que te respiro e observo/, perduro e me fui
e fico. “
Numa outra linhagem, como em círculos que se atam, estendem-se, associam-se,
paralelamente à linhagem da
família de Maria Teresa Koch Monteiro,
outros pontos nodais do novelo romanesco
são desatados, ferindo na abordagem
elegante a miséria amarrada aos
rastros da verdade quando então fora
encoberta pelos passos desgraçados da
escravidão dos negros.
Anísio e Jovanina. Anísio, Justina, e
Maria Adelaide. Anísio, Justina, Maria
Adelaide e Ivan. Ivan e eu, Luísa... Eu, a depositária desses retalhos. Todos
eles, agora costurados com fios de dor e de amor. Um grande lençol tecido e
bordado pela aparente incoerência do destino.
A Luísa, a sempre amada por
Ivan, advogado brilhante, culto, vítima de traição por um colega de escritório,
que o levaria a uma prisão injusta, coube
a missão de emendar e estender este lençol aos que desejem percorrer as
trilhas do amor vivido por personagens criados com alma, sensibilidade arguta,
narrativa que nos prende com intensidade
de vida. Na trama do destino, e
ouso dizer por escolha existencial, coube a Margarida Fahel construir um romance denso e cativante, de narradora de fôlego, imaginação
com asas largas do lirismo,
dando-nos certezas sobre o difícil e
complexo gesto do viver, como essa que
diz , sem hesitar, com tanta pureza,
plena de verdade, que só o amor salva. E
mais perdura se flui com o perfume do jasmim.
Referências
FAHEL,
Margarida. Nas dobras do tempo,
editora Mondrongo, Itabuna, Bahia, 2015.
STAIGER,
Emil. Conceitos fundamentais da poética,
Edições Tempo Brasileiro, Rio, 1972.
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