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domingo, 20 de agosto de 2017



Caio Porfírio Carneiro no Coração
                                   
                                Cyro de Mattos

O inexorável sempre nos alcança, mostra, em momento irreversível, o quanto somos frágeis. Submete sem remorso o nosso coração a essa  hora ruim, com ares cor de cera. Fere quando  tira  de nós  um ente querido, amigo fraterno  ou uma dessas criaturas  que aprendemos a amar no seu percurso de vida. Mesmo que a amizade tenha sido começada a menos de vinte anos, com os parceiros distantes um do outro e só tiveram um encontro pessoal duas vezes.  É um dos milagres que a literatura consegue fazer, aproximando as criaturas, que logo se identificam de tal forma que parecem conhecidos íntimos ao longo de muitos anos.
 Isso me veio à mente,  desde que me chegou a notícia da secretária Nilsi, da União Brasileira de Escritores/SP, via e-mail, de que a situação do  Caio não era boa. Estava internado na unidade de terapia intensiva do hospital, não falava.  Procurei saber detalhes sobre a condição do amigo,  através do seu editor Nicodemos Sena, que até então não tinha conhecimento sobre a saúde dele, a inspirar extremos cuidados.
            A escritora Rosani,  uma das amigas queridas de Caio,  informou-me  depois que era verdade. “Ele está com o lado esquerdo todo paralisado e a fala  comprometida. Está se alimentando por sonda. Talvez seja irreversível. Vamos rezar por ele. Está para ter alta do hospital e, provavelmente, irá para uma clínica. Requer cuidados, durante 24 horas por dia. Fui visitá-lo no hospital e fiquei muito sensibilizada. Não entendi nada que falou. Pegou minha mão e deu um beijo. Voltei para casa sabe como... “
Era o que vinha fazendo, rezar por ele, para que saísse logo da agonia e voltasse ao convívio de amigos e admiradores, ao diálogo constante com os livros,  às veredas que percorrera com tanto brilho  como contador de histórias.  Se fosse para ficar no sofrimento,  sem perspectiva de recuperação, melhor viesse  o   que se anunciava como o que temos de mais triste. E isso veio  na notícia enviada por  Rosani: “ Lamento informar que o Caio faleceu hoje.” 
          Cearense nascido em Fortaleza, em 17 de julho de 1928,  Caio Porfírio Carneiro era um homem simples,  um mestre  do conto.  Sobre seu romance O Sal da Terra (Editora LetraSelvagem, 2010),  disse o consagrado escritor João Antonio:  “Esta história pisa em território virgem na literatura brasileira. O mundo branco e desconhecido do sal no Nordeste, visto de dentro para fora e devassado com uma autenticidade fotográfica, supera, de pronto, as frouxas investidas literárias que se tem notícia na área das salinas e da sua gente.”
Acompanhei a trajetória do valoroso escritor  desde sua estreia,  com os contos  de  Trapiá, em 1961Nessa época acontecia o arranque do moderno conto brasileiro,  que posteriormente teria um plantel de primeira linha em nossas letras,  formado no começo  por  Samuel Rawet, Luís Vilela, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Murilo Rubião, José J. Veiga, Lígia Fagundes Telles, João Antonio e  Ricardo Ramos, entre outros.  
O  contista cearense publicaria uma dezena de livros no gênero, conquistando também seu lugar no melhor do conto moderno brasileiro.  As histórias de Trapiá   ultrapassavam os limites do regionalismo dos anos 30/40. Engajavam-se em uma literatura que tem como tema o ser humano tocado de suas verdades essenciais: tristezas e dores.
         Contos  que se apresentaram depois no espaço  urbano, preocupados em  flagrar essencialmente  os conflitos nas relações  humanas,  todos eles  fazem  ver a marca inconfundível de um ficcionista  que usa como impressão digital a economia dos meios expressionais. Portador de agudo sentimento de mundo,   alcança  a síntese do discurso com a precisão da palavra capaz de revelar o drama  amplo no instante súbito.
            Focado no drama perante a existência, sem desprezar a ternura, o  estilo enxuto de Caio Porfírio Carneiro projeta  densidade humana forçando  o leitor participar da história, tornar-se  cúmplice do destino dos personagens com sua  feição sofrida.  Envolve a alma humana sob o peso da vida, sempre preenche o texto com  sentimentos verdadeiros,  a  evitar que se percam no anonimato e esquecimento.
Exemplar secretário-administrativo da União Brasileira de Escritores,  Seção de São Paulo, durante décadas.  Contista premiado com o Jabuti e o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras.  O prêmio que mais se orgulhava de ter era o de  conhecer  como ninguém  um sem número de escritores espalhados por esse Brasil de dimensões continentais. Desfrutava com inúmeros deles de uma amizade especial, nutrida de gestos fraternos,  solidários.
Hoje, 17 de agosto, está fazendo  um mês que Caio nos deixou. Ele, que se transferiu para São Paulo em 1952 e que  nunca esqueceu sua condição de nordestinado.  


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