Caio Porfírio Carneiro no Coração
Cyro de Mattos
O
inexorável sempre nos alcança, mostra, em momento irreversível, o quanto somos
frágeis. Submete sem remorso o nosso coração a essa hora ruim, com ares cor de cera. Fere
quando tira de nós
um ente querido, amigo fraterno
ou uma dessas criaturas que
aprendemos a amar no seu percurso de vida. Mesmo que a amizade tenha sido começada
a menos de vinte anos, com os parceiros distantes um do outro e só tiveram um
encontro pessoal duas vezes. É um dos
milagres que a literatura consegue fazer, aproximando as criaturas, que logo se
identificam de tal forma que parecem conhecidos íntimos ao longo de muitos
anos.
Isso me veio à mente, desde que me chegou a notícia da secretária
Nilsi, da União Brasileira de Escritores/SP, via e-mail, de que a situação
do Caio não era boa. Estava internado na
unidade de terapia intensiva do hospital, não falava. Procurei saber detalhes sobre a condição do
amigo, através do seu editor Nicodemos
Sena, que até então não tinha conhecimento sobre a saúde dele, a inspirar
extremos cuidados.
A escritora Rosani, uma das amigas queridas de Caio, informou-me
depois que era verdade. “Ele está com o lado
esquerdo todo paralisado e a fala
comprometida. Está se alimentando por sonda. Talvez seja
irreversível. Vamos rezar por ele. Está para ter alta do hospital e,
provavelmente, irá para uma clínica. Requer cuidados, durante 24 horas por dia. Fui
visitá-lo no hospital e fiquei muito sensibilizada. Não entendi nada que falou.
Pegou minha mão e deu um beijo. Voltei para casa sabe como... “
Era o que vinha fazendo,
rezar por ele, para que saísse logo da agonia e voltasse ao convívio de amigos
e admiradores, ao diálogo constante com os livros, às veredas que percorrera com tanto
brilho como contador de histórias. Se fosse para ficar no sofrimento, sem perspectiva de recuperação, melhor
viesse o que se anunciava como o que temos de mais
triste. E isso veio na notícia enviada por Rosani: “ Lamento
informar que o Caio faleceu hoje.”
Cearense nascido em Fortaleza, em 17
de julho de 1928, Caio Porfírio Carneiro
era um homem simples, um mestre do conto.
Sobre seu romance O Sal da Terra
(Editora LetraSelvagem, 2010), disse o
consagrado escritor João Antonio: “Esta história pisa em território
virgem na literatura brasileira. O mundo branco e desconhecido do sal no
Nordeste, visto de dentro para fora e devassado com uma autenticidade
fotográfica, supera, de pronto, as frouxas investidas literárias que se tem
notícia na área das salinas e da sua gente.”
Acompanhei a trajetória
do valoroso escritor desde sua
estreia, com os contos de Trapiá, em 1961. Nessa época acontecia o
arranque do moderno conto brasileiro, que posteriormente teria um plantel de
primeira linha em nossas letras, formado
no começo por Samuel Rawet, Luís Vilela, Dalton Trevisan,
Rubem Fonseca, Murilo Rubião, José J. Veiga, Lígia Fagundes Telles, João
Antonio e Ricardo Ramos, entre
outros.
O contista cearense publicaria uma dezena de
livros no gênero, conquistando também seu lugar no melhor do conto moderno
brasileiro. As histórias de Trapiá
ultrapassavam os limites do regionalismo dos anos 30/40. Engajavam-se
em uma literatura que tem como tema o ser humano tocado de suas verdades
essenciais: tristezas e dores.
Contos que se apresentaram depois no espaço urbano, preocupados em flagrar essencialmente os conflitos nas relações humanas,
todos eles fazem ver a marca inconfundível de um ficcionista que usa como impressão digital a economia dos
meios expressionais. Portador de agudo sentimento de mundo, alcança
a síntese do discurso com a precisão da palavra capaz de revelar o
drama amplo no instante súbito.
Focado no drama perante a
existência, sem desprezar a ternura, o
estilo enxuto de Caio Porfírio Carneiro projeta densidade humana forçando o leitor participar da história,
tornar-se cúmplice do destino dos
personagens com sua feição sofrida. Envolve a alma humana sob o peso da vida,
sempre preenche o texto com sentimentos
verdadeiros, a evitar que se percam no anonimato e
esquecimento.
Exemplar
secretário-administrativo da União Brasileira de Escritores, Seção de São Paulo, durante décadas. Contista premiado com o Jabuti e o Afonso
Arinos da Academia Brasileira de Letras.
O prêmio que mais se orgulhava de ter era o de conhecer
como ninguém um sem número de
escritores espalhados por esse Brasil de dimensões continentais. Desfrutava com
inúmeros deles de uma amizade especial, nutrida de gestos fraternos, solidários.
Hoje, 17 de agosto, está
fazendo um mês que Caio nos deixou. Ele,
que se transferiu para São Paulo em 1952 e que nunca esqueceu sua condição de
nordestinado.
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