Lira de Francisco Carvalho
Cyro de Mattos
Há quem diga que a melhor poesia produzida hoje no Brasil está no Nordeste. A afirmação
pode soar exagerada, mas deve ser considerada como procedente com relação a alguns nomes que revelam em sua
fatura poética uma produção da melhor
qualidade. O cearense Francisco Carvalho em Fortaleza, o baiano Telmo Padilha
em Itabuna e o pernambucano Marcus Accioly no Recife são nomes
que se inserem na pertinência da observação. E mais: Ruy Espinheira
Filho, Florisvaldo Mattos, João Carlos Teixeira Gomes, Antonio Brasileiro e
Miryan Fraga, em Salvador.
O poeta Francisco Carvalho estreou com Dimensão das Coisas em 1966 e de lá para
cá publicou mais de vinte livros de poesia, demonstrando assim sua
fidelidade à “arte de excitar a alma com uma visão do mundo através das melhores
palavras em sua melhor ordem”, conforme definição de Geir Campos, calcada
na fusão que fez das concepções de
Novalis, Eliot e Coleridge sobre a obra literária escrita em verso.
Na antologia Memórias do Espantalho, organizada pelo autor, publicada em 2004, o
poeta cearense reuniu em alentado volume poemas escolhidos dos livros Os Mortos Azuis (1971), Pastoral dos Dias Maduros (1977), As Verdes Léguas (1979), Rosa dos Eventos (1982), Quadrante Solar (1983), Prêmio Nestlé de
Literatura Brasileira, As Visões do Corpo
(1984), Barca dos Sentidos (1989), Rosa Geométrica (1990), Crônica das Raízes (1992), O Tecedor e Sua Trama (1992), Sonata dos Punhais (1994), Artefatos de Areia (1995), Galope de Pégaso (1995), Raízes da Voz (1996), Romance da Nuvem Pássaro (1998), A Concha e o Rumor (2000), O Silêncio é uma Figura Geométrica (2002) e Centauros
Urbanos (2003).
Dono de uma obra poética de qualidades inquestionáveis, tanto no plano
formal como no conteúdo, no poema de lastro clássico ou moderno, de verso
extenso ou curto, esse poeta insulado em
Fortaleza mais seria estudado na universidade, reconhecido pela crítica
e conhecido do leitor se publicado por editora de circulação nacional, de São
Paulo e Rio, centros dinâmicos de um eixo
que até hoje funciona como tambor cultural do Brasil.
A dicção desse cearense, que sabe
o poema como “ uma teia de sombra e sol”
(pág. 299), manifesta-se com uma linguagem condensada, e sua palavra é
rica no ritmo, som, técnica de repetição com bastante carga de
significados. O mito, a metáfora, a imagem, elementos da poética tradicional e
universal, inserem-se na sua expressão com muita facilidade e riqueza criativa. A usual técnica reiterativa como recurso de
estilo para formular o poema não se torna enfadonha na dicção desse poeta, não fosse ele possuidor de expressivos dons
poéticos, operário hábil do verso, que no encadeamento de idéias descobre o
sentido de coisas grandes e pequenas. .
A técnica reiterativa de imagens
que articula para conseguir a
metáfora não implica aqui na tensão de
palavras-coisas no espaço-tempo, retirando da estrutura do poema a unidade rítmica e seu subjetivismo sentimental. Nesse
poeta de lira soberba tal recurso está longe de simples justaposição de
conteúdos objetivos, catalogados para uma
formulação sensorial e visual das coisas. Sua técnica de repetição como
recurso estilístico no discurso bem-sucedido de imagens implica na percepção
intuitiva da similitude em coisas aparentemente dessemelhantes. Na transposição
eficiente de impressões e visões suscetíveis de viver, iluminar cada verso, sua mensagem flui numa
condensação harmoniosa de razões e sentimentos. Alcança uma carga plena
de sentidos no fluxo de uma onda
salpicada das coisas que alimentam o homem na sua relação com o mundo.
Ausculta nossos exílios, interpela nosso destino, transcende bichos.
Em Memórias do Espantalho, o
poeta inclui esta “Canção do Irmão”:
Alguém tem de celebrar a paz/ pelos que pelejam/ Alguém tem de assumir
a infância/ pelos que não sonham/ Alguém tem de rezar um salmo/ pelos que
morreram/ Alguém tem de gritar ao vento/
pelos que se calam/ Alguém tem de
velar o morto/ pelos que trabalham/
Alguém tem de produzir orvalho/
para os que semeiam/ Alguém tem de tanger o sino/ pelos que adormecem/
Alguém tem de se vestir de negro/ pelos
que não voltam/ Alguém tem de apascentar
o gado/ pelos que desertam/ Alguém tem
de contemplar a estrela/ pelos
que rastejam/ Alguém tem de estender a mão/ pelos que se humilham/ Alguém tem
de acender a vela/ pelos que agonizam/ Alguém tem de escrever um verso/ pelos
que não amam. (pág. 58)
Na elaboração do poema com essa espécie de técnica, Francisco Carvalho faz com que as imagens tornem-se incandescentes e
ressonantes em cada verso. A mensagem que repercute da metáfora baseia-se na
magia poética a conservar os elementos imaginários, afetivos e mentais como um
conjunto desperto para a canção da vida. E, na articulação desses elementos
através dessa espécie de recurso,
pode-se dizer que Francisco Carvalho é um mago com suas artes intuitivas
bem concatenadas na criação do poema.
Das imagens nos versos encadeando um elenco de conceitos, impressões, visões,
sentimentos, emoções, o poema confere
uma iluminação que não precisa resolver problemas e símbolos para mostrar a
paisagem subjacente, porque todo ele se banha de uma atmosfera transparente.
Em “Ciranda”, poema incluído em Rosa dos Eventos, a metáfora torna-se
tão clara e visual que envolve todo o estado espiritual do poema impregnado de
música. Sente-se então nos versos a emoção de uma paisagem humana marcada pelo
ritmo do amor e das formas solidárias:
Vou fazer uma ciranda/ para os meninos de
Uganda/ uma ciranda de espigas/ para os meninos de Uganda.// Vou fazer uma
grinalda/ para os meninos de Uganda/ grinalda de trigo e arroz/ para os meninos
de Uganda.// Vou roubar um vaga-lume/ para os meninos de Uganda/ vou pastorar
as ovelhas/ pelos meninos de Uganda.// Vou repartir a esperança/ entre os
meninos de Uganda/ vou buscar conchas do mar/ para os meninos de Uganda.// Eu
vou brincar de ciranda/ com os meninos de Uganda/ vou aradar as aldeias/ para
os meninos de Uganda.// Vou tirar leite das cabras/ para os meninos de Uganda./
Mas não vou tanger o sino/ pelos meninos de Uganda. (pág. 115, Edições UFC, Fortaleza, 1982)
Na poesia desse poeta que diz não
ser nem clássico nem moderno, mas que tem no poema a fala soberba do seu coração,
cabem todos os assuntos: essenciais, existenciais, metafísicos, míticos,
cotidianos, do destino do homem e da humanidade, da vida com seu peso e da
morte com seus vazios, de Deus e seus mistérios. E as rimas que o poeta manipula para conjugar timbres e tonalidades
fonéticas existem não como elementos sonoros desprezíveis no discurso. Têm sua
função para salientar a ideia ou a periodicidade da imagem em cada verso.
A rima com simplicidade manifesta-se em diversos poemas dessa vasta obra com elevados níveis poéticos. A
propósito, em “Jogo de Palavras “ o
poeta fala naturalmente sobre
o que é do homem/ o bicho come.// o
que é da moça// fica mais doce.// o que é da mulher// quem é que não quer?// o
que é da solteira// arde na fogueira.// o que é da loura// são seios da
moura.// o que é da donzela// recende a canela.// o que é da morena// recende a
verbena.// o que é da fidalga// se dissolve na água.// o que é da beleza// foge na correnteza. ( Memórias
do Espantalho, pág. 136)
Poeta que faz poesia sob prismas inovadores, delatando na linguagem as coisas
como as coisas não são, em sua
pessoal cosmovisão do mundo, cultiva também o soneto, embora sabendo que sonetista é uma das muitas palavras obscenas
na língua portuguesa. Em Memórias do Espantalho, o poeta desce às
raízes do mito, como se estivesse em conflito com os gestos da existência neste
“Soneto da Fúria”:
Nossas vidas não passam de utopias/
volúveis como as roupas no varal../ De
espera e adeus são feitos nossos dias./ Cada qual é seu próprio canibal.//
Vivemos de epigramas e elegias./ Até o
amor é anseio pendular/ (crispação de tristezas e alegrias)./ Somos adubo e
exílio do avatar.// Nosso nome é exilado numa pedra./ Nossa glória é a vertigem dum momento./ vogal de
sangue escrita em lousa espúria.// A dinastia da morte nos celebra/ com seus penachos de algodão e
vento./ Só Deus aplaca a sede e nossa fúria. (pág. 221, idem)
Rapidez e exatidão na lira de Francisco carvalho decorrem dos versos em
que a técnica da repetição participa das imagens para o efeito da metáfora. Mas
feições outras desse discurso poético
poderoso, remoídos e tecidos sentimentos com a dialética do silêncio, mesclam–se à beleza
verbal da linguagem, assumindo certo grau de ambigüidade e mistério que evoca a
intimidade da poesia com o claro-escuro do mundo. Este “Soneto dos Ruminantes”, por exemplo,
transpira nos passos de uma sensualidade
cósmica, ao mesmo tempo fatal, com seu conteúdo formado de substratos rurais:
Este sol é uma febre que se alastra/ sobre os
bichos. A luz é um anjo preto/ que passeia a cavalo no esqueleto/ de um sonho.
A solidão é uma pilastra// que sustenta o universo destas cabras./ O vento
esbarra nas estrelas magras,/ que se apagam no céu, logo depois.// A aranha
deste sol trabalha e fia./ Tece o algodão das nuvens ambulantes./ No sabre desta luz canta a agonia.// de um
bandolim do tempo dos infantes./ O sol, bruxo das tardes, sangra o dia./ E a
morte pastoreia os ruminantes. (pág.47, idem)
Na lira do poeta que assume a metáfora como extensão e compreensão do
mundo podem ser vistos remanescentes da
poesia trovadoresca medieval através de aculturações ao longo dos anos na
poesia popular do Nordeste. Canto, cantilena, cantigas ou canções são maneiras da lira que versam sobre
o tema encadeado na memória. Os espaços vazios também dizem da mulher como
brisa suave nesta “Cantata” modulada na
ciranda do eterno.
Vento
mulher
maresia
vento
mulher
maresia
vento
mulher
maresia
vento
mulher
maresia
vento
mulher
maresia
todas
as horas
da noite
todas
as horas
do dia.
(pág. 222,
idem)
Em Memórias do Espantalho, o
bom poema não se confunde com o uso das
palavras no discurso hermético, de tal
modo codificado que é impossível atuar no outro. Com rima ou sem rima, o verso
chama-se o amor de gestos repetidos que valem
tanto como o calor do pão e a luz
dos legumes. Com esse poeta sabemos que
“o sonho é alguma lavoura, que produz as
espigas do sarcasmo que nos doura”( pág. 235), no qual pousamos com as rugas do tempo.
Referências Bibliográficas
CARVALHO, Francisco. Memórias do espantalho, Imprensa
Universitária, Fortaleza, 2004.
-----------------“Ciranda”, poema in Rosa dos eventos, Edições UFC,
Fortaleza, 1982.
CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética,
Cultrix, São Paulo, 1978.
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