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sábado, 28 de abril de 2018


          



            Lira de Francisco Carvalho 

            Cyro de Mattos


Há quem diga que a melhor poesia produzida  hoje no Brasil está no Nordeste. A afirmação pode soar exagerada, mas deve ser considerada como procedente  com relação a alguns nomes que revelam em sua fatura poética uma produção  da melhor qualidade. O cearense Francisco Carvalho em Fortaleza, o baiano Telmo Padilha em Itabuna e o pernambucano Marcus Accioly no Recife  são nomes  que se inserem na pertinência da observação. E mais: Ruy Espinheira Filho, Florisvaldo Mattos, João Carlos Teixeira Gomes, Antonio Brasileiro e Miryan Fraga, em Salvador.
 O poeta  Francisco Carvalho estreou com Dimensão das Coisas em 1966 e de lá para cá publicou mais de vinte livros de poesia, demonstrando assim sua fidelidade   à “arte de excitar a alma com uma visão do mundo através das melhores palavras em sua melhor ordem”, conforme definição de Geir Campos, calcada na fusão que fez das concepções  de Novalis, Eliot e Coleridge sobre a obra literária escrita em verso.
            Na antologia Memórias do Espantalho, organizada pelo autor, publicada em 2004, o poeta cearense reuniu em alentado volume poemas escolhidos dos livros Os Mortos Azuis (1971), Pastoral dos Dias Maduros (1977), As Verdes Léguas (1979), Rosa dos Eventos (1982), Quadrante Solar (1983), Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, As Visões do Corpo (1984), Barca dos Sentidos (1989), Rosa Geométrica (1990), Crônica das Raízes (1992), O Tecedor e Sua Trama (1992), Sonata dos Punhais (1994), Artefatos de Areia (1995), Galope de Pégaso (1995), Raízes da Voz (1996), Romance da Nuvem Pássaro (1998), A Concha e o Rumor (2000), O Silêncio é uma Figura Geométrica  (2002) e Centauros Urbanos (2003).
Dono de uma obra poética de qualidades inquestionáveis, tanto no plano formal como no conteúdo, no poema de lastro clássico ou moderno, de verso extenso ou curto, esse poeta insulado em  Fortaleza mais seria estudado na universidade, reconhecido pela crítica e conhecido do leitor se publicado por editora de circulação nacional, de São Paulo e Rio, centros dinâmicos de um eixo  que  até hoje funciona  como tambor cultural do Brasil.
A dicção  desse cearense, que sabe o poema como “ uma teia de sombra e sol” (pág. 299),  manifesta-se com uma  linguagem condensada, e sua  palavra é  rica no ritmo, som, técnica de repetição com bastante carga de significados. O mito, a metáfora, a imagem, elementos da poética tradicional e universal, inserem-se na sua expressão com muita facilidade e riqueza criativa.  A usual técnica reiterativa como recurso de estilo para formular o poema não se torna enfadonha na dicção desse poeta,  não fosse ele possuidor de expressivos dons poéticos, operário hábil do verso, que no encadeamento de idéias descobre o sentido de coisas grandes e pequenas. .
A técnica  reiterativa de imagens que articula  para conseguir a metáfora  não implica aqui na tensão de palavras-coisas no espaço-tempo, retirando da estrutura do poema a unidade  rítmica e seu subjetivismo sentimental. Nesse poeta de lira soberba tal recurso está longe de simples justaposição de conteúdos objetivos, catalogados para uma  formulação sensorial e visual das coisas. Sua técnica de repetição como recurso estilístico no discurso bem-sucedido de imagens implica na percepção intuitiva da similitude em coisas aparentemente dessemelhantes. Na transposição eficiente de impressões e visões suscetíveis de viver,  iluminar cada verso, sua mensagem  flui numa  condensação harmoniosa de razões e sentimentos. Alcança uma carga plena de sentidos no fluxo de uma onda  salpicada das coisas que alimentam o homem na sua relação com o mundo. Ausculta nossos exílios, interpela nosso destino, transcende bichos.   
Em Memórias do Espantalho, o poeta inclui esta “Canção do Irmão”:

 Alguém tem de celebrar a paz/ pelos que pelejam/ Alguém tem de assumir a infância/ pelos que não sonham/ Alguém tem de rezar um salmo/ pelos que morreram/ Alguém tem de gritar ao vento/  pelos que se calam/  Alguém tem de velar o morto/ pelos que trabalham/  Alguém tem de produzir orvalho/   para os que semeiam/ Alguém tem de tanger o sino/ pelos que adormecem/ Alguém tem de se vestir de negro/  pelos que não voltam/  Alguém tem de apascentar o gado/ pelos que desertam/ Alguém tem  de contemplar  a estrela/ pelos que rastejam/ Alguém tem de estender a mão/ pelos que se humilham/ Alguém tem de acender a vela/ pelos que agonizam/ Alguém tem de escrever um verso/ pelos que não amam. (pág. 58)
             
Na elaboração do poema com essa espécie de técnica,  Francisco Carvalho faz com que as  imagens tornem-se incandescentes e ressonantes em cada verso. A mensagem que repercute da metáfora baseia-se na magia poética a conservar os elementos imaginários, afetivos e mentais como um conjunto desperto para a canção da vida. E, na articulação desses elementos através dessa espécie de recurso,  pode-se dizer que Francisco Carvalho é um mago com suas artes intuitivas bem concatenadas  na criação do poema. Das imagens nos versos encadeando um elenco de conceitos, impressões, visões, sentimentos, emoções,  o poema confere uma iluminação que não precisa resolver problemas e símbolos para mostrar a paisagem subjacente, porque todo ele se banha de uma atmosfera transparente.
             Em “Ciranda”, poema incluído em Rosa dos Eventos, a metáfora torna-se tão clara e visual que envolve todo o estado espiritual do poema impregnado de música. Sente-se então nos versos a emoção de uma paisagem humana marcada pelo ritmo do amor e das formas solidárias:

 Vou fazer uma ciranda/ para os meninos de Uganda/ uma ciranda de espigas/ para os meninos de Uganda.// Vou fazer uma grinalda/ para os meninos de Uganda/ grinalda de trigo e arroz/ para os meninos de Uganda.// Vou roubar um vaga-lume/ para os meninos de Uganda/ vou pastorar as ovelhas/ pelos meninos de Uganda.// Vou repartir a esperança/ entre os meninos de Uganda/ vou buscar conchas do mar/ para os meninos de Uganda.// Eu vou brincar de ciranda/ com os meninos de Uganda/ vou aradar as aldeias/ para os meninos de Uganda.// Vou tirar leite das cabras/ para os meninos de Uganda./ Mas não vou tanger o sino/ pelos meninos de Uganda. (pág. 115, Edições UFC, Fortaleza, 1982)

Na poesia desse poeta  que diz não ser nem clássico nem moderno, mas que tem no poema a fala soberba do seu coração, cabem todos os assuntos: essenciais, existenciais, metafísicos, míticos, cotidianos, do destino do homem e da humanidade, da vida com seu peso e da morte com seus vazios, de Deus e seus mistérios.  E as rimas que o poeta  manipula para conjugar timbres e tonalidades fonéticas existem não como elementos sonoros desprezíveis no discurso. Têm sua função para salientar a ideia ou a periodicidade da imagem em cada verso. 
A rima com simplicidade manifesta-se em diversos poemas dessa  vasta obra com elevados níveis poéticos. A propósito, em  “Jogo de Palavras “ o poeta fala naturalmente sobre

o que é do homem/ o bicho come.// o que é da moça// fica mais doce.// o que é da mulher// quem é que não quer?// o que é da solteira// arde na fogueira.// o que é da loura// são seios da moura.// o que é da donzela// recende a canela.// o que é da morena// recende a verbena.// o que é da fidalga// se dissolve na água.// o que é  da beleza// foge na correnteza.  ( Memórias do Espantalho, pág. 136)

Poeta que faz poesia sob prismas inovadores,  delatando na linguagem  as coisas  como as  coisas não são, em sua pessoal cosmovisão do mundo, cultiva também o soneto, embora sabendo que  sonetista é uma das muitas palavras obscenas na língua portuguesa.  Em Memórias do Espantalho, o poeta desce às raízes do mito, como se estivesse em conflito com os gestos da existência neste “Soneto da Fúria”:

Nossas vidas não passam de utopias/ volúveis como as roupas no varal../  De espera e adeus são feitos nossos dias./ Cada qual é seu próprio canibal.// Vivemos de epigramas e elegias./ Até  o amor é anseio pendular/ (crispação de tristezas e alegrias)./ Somos adubo e exílio do avatar.// Nosso nome é exilado numa pedra./ Nossa  glória é a vertigem dum momento./ vogal de sangue escrita em lousa espúria.// A dinastia da morte nos celebra/ com seus penachos de algodão e vento./ Só Deus aplaca a sede e nossa fúria. (pág. 221, idem)

Rapidez e exatidão na lira de Francisco carvalho decorrem dos versos em que a técnica da repetição participa das imagens para o efeito da metáfora. Mas feições outras desse discurso poético  poderoso, remoídos e tecidos sentimentos com a  dialética do silêncio, mesclam–se à beleza verbal da linguagem, assumindo certo grau de ambigüidade e mistério que evoca a intimidade da poesia com o claro-escuro do mundo. Este  “Soneto dos Ruminantes”, por exemplo, transpira nos passos de uma  sensualidade cósmica, ao mesmo tempo fatal, com seu conteúdo formado de substratos rurais:

 Este sol é uma febre que se alastra/ sobre os bichos. A luz é um anjo preto/ que passeia a cavalo no esqueleto/ de um sonho. A solidão é uma pilastra// que sustenta o universo destas cabras./ O vento esbarra nas estrelas magras,/ que se apagam no céu, logo depois.// A aranha deste sol trabalha e fia./ Tece o algodão das nuvens ambulantes./  No sabre desta luz canta a agonia.// de um bandolim do tempo dos infantes./ O sol, bruxo das tardes, sangra o dia./ E a morte pastoreia os ruminantes. (pág.47, idem)

Na lira do poeta que assume a metáfora como extensão e compreensão do mundo podem ser vistos  remanescentes da poesia trovadoresca medieval através de aculturações ao longo dos anos na poesia popular do Nordeste. Canto, cantilena, cantigas ou  canções são maneiras da lira que versam sobre o tema encadeado na memória. Os espaços vazios também dizem da mulher como brisa suave nesta “Cantata” modulada  na ciranda  do eterno.

Vento
                     mulher
        maresia
vento
         mulher
                    maresia

vento
         mulher
                    maresia

vento
          mulher
                      maresia

vento
          mulher
                     maresia

todas
         as horas
                      da noite

todas
          as horas
                       do dia.


                                    (pág. 222, idem)

Em Memórias do Espantalho, o bom poema não se confunde com o uso  das palavras no discurso hermético,  de tal modo codificado que é impossível atuar no outro. Com rima ou sem rima, o verso chama-se o amor de gestos repetidos que valem  tanto como o calor  do pão e a luz dos legumes. Com esse poeta sabemos  que “o sonho é alguma lavoura, que produz as espigas do sarcasmo que nos doura”( pág. 235), no qual pousamos  com as rugas do tempo.

Referências Bibliográficas


CARVALHO, Francisco. Memórias do espantalho, Imprensa Universitária, Fortaleza, 2004.
 -----------------“Ciranda”,  poema  in Rosa dos eventos, Edições UFC, Fortaleza, 1982.
CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética,  Cultrix, São Paulo, 1978.

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