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terça-feira, 17 de julho de 2018





Solidões de Sonia Coutinho  


               Por Cyro de Mattos

Sabemos que a morte é o que temos de mais certo na vida. Nunca nos  acostumamos com o quadro irreversível dessa senhora que não sabe o que é remorso.  Pensei nisso quando tomei  conhecimento  da notícia chocante de que a escritora  Sonia Coutinho foi encontrada morta pela filha em seu apartamento, no Rio de Janeiro.   Aos 74 anos de idade, a escritora baiana morava sozinha.  Comentou-se que havia  comunicado à filha pouco antes um mal-estar.
     .   A visita dessa senhora  cor de luto é amarga.  Em alguns  casos,  quando se vive muito, preenche-se a vida com ganhos, formando-se uma biografia bem-sucedida no plano familiar, econômico e profissional, ocorre o consolo entre os parentes, amigos e conhecidos do falecido. O trauma é atenuado com  o fato  de que não se podia querer mais do morto. A dura lei da  vida foi para ele  recheada de trunfos. Assim, o falecido, de saudosa memória, deixa boas marcas e lembranças.
Com Sonia Coutinho, a traiçoeira invenção da vida não permitiu sob vários aspectos que os fatos acontecessem no lado azul da canção. Mas  não é o momento agora para se falar das amargas que perseguiram essa admirável  escritora baiana.  Se Virgínia Woolf disse que viver é perigoso, verdade que alcança todos nós,  em nossa condição de solitários no mundo,  com Sonia Coutinho, autora de uma obra na moderna literatura brasileira ao nível de Clarice Lispector, foi para lá de lastimável.
Ela nasceu em Itabuna, em 1939, filha do promotor Natan  Coutinho, homem culto, poeta parnasiano, inteligência brilhante, que chegou a ser  deputado estadual na Bahia. Com a família, ainda menina,  mudou-se para Salvador. Na capital baiana graduou-se em Letras pela Universidade Federal da Bahia.  Depois que estreou com Do Herói Inútil, em 1966, contos, pequeno grande livro, que já prenunciava uma ficcionista de boas qualidades na sondagem e exposição contraditória da alma humana, ela foi morar no Rio onde exerceu o jornalismo. Viveu para sobreviver no Sul do Brasil  também como tradutora de grandes romancistas e  deu prosseguimento à sua carreira literária.
Publicou, entre outros,  Nascimento de Uma Mulher, 1971, Uma Certa Felicidade,1976, O Último Verão de Copacabana, 1985, livros de contos. E os  romances: O Jogo de Ifá,  1980, Atire em Sofia, 1989,  O Caso Alice, 1991,  e Os Seios de Pandora, 1999. Era  também ensaísta. Seus textos participam   de importantes  antologias do conto, no Brasil e exterior. Conquistou prêmios literários expressivos, com destaque para o Jabuti da Câmara Brasileira do Livro (SP), duas vezes, o da Revista Status, para literatura erótica, e o da Fundação Biblioteca Nacional.
Sua ficção une arte e documento para situar o real como vínculo de gravidade nas limitações da condição humana. Desenganos,  desencontros, problemas existenciais e psicológicos de natureza aguda na cidade grande, informam o herói em crise, que a autora logra questionar através de cortes e monólogos interiores,  em suas narrativas curtas e longas, de densidade existencial surpreendente.
Sonia Coutinho pertenceu  à geração desse escriba interiorano.  Dizia-se entre os de sua geração  que tinha temperamento difícil no trato com os companheiros de letras na Bahia. Comigo não foi bem assim. Gostava de privacidade. Cultivava o pensamento livre e se  mostrava contrária à atitude postiça da família burguesa em sua maneira de conceber as pessoas no mundo. Sempre quis ser uma escritora com circulação nacional. Em Salvador foi casada com o poeta Florisvaldo Mattos. Quando foi morar no Rio, viveu  aventura amorosa com o romancista Marcos Santarrita e, por último,  Hélio Pólvora, autor de qualidades expressivas  na arte da criação literária, também nascido em Itabuna.  
A  solidão e sua vocação legítima para escrever o bom texto deram-lhe o convívio íntimo e pessoal para erguer  uma  leitura crítica da vida como poucos.  Um ritual doloroso de intensa celebração dos escombros e ruínas humanas ante a  indiferença da existência.  Seu  grande ponto de gravidade para construir uma obra literária de dimensão maior, com uma  estrutura criativa coesa,   encontrou eco numa dura  solidão, que abraçou como maneira de vida e nunca se afastou dela. Criatura incompreendida por companheiros de geração, foi  autêntica na sua maneira particular de sentir os seres humanos em trânsito no mundo. 
Como ícone da moderna literatura brasileira no século XX, há anos ela já é reconhecida,  nos meios avançados  e da melhor crítica.    

  

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