Do trabuco à
palavra
Cid Seixas
São duas armas, uma
é mortal; a outra vislumbra a imortalidade. A escolha se impõe. Vamos ao texto.
Cyro de Mattos é um
dos muitos escritores baianos da região do cacau – e um dos poucos cujo
trabalho constante e associado ao necessário talento, é capaz de assegurar-lhe
um lugar de destaque no quadro da Literatura Brasileira.
Sua produção remonta
aos emblemáticos anos sessenta, quando publicou Berro de Fogo,
seu primeiro livro, ainda marcado por imperfeições e outros traços de início de
uma aprendizagem. Consciente da falibilidade do artista, Cyro exclui o livro da
sua bibliografia para aproveitar o conto-titulo e publicar, já em plena
maturidade, em 1997, pela Editus e Fundação Jorge Amado, uma das suas obras clássicas:
Berro de Fogo e Outras Histórias.
Alceu Amoroso Lima,
crítico e pensador dos mais respeitados, que adotou o pseudônimo de Tristão de
Ataíde, deu-nos um testemunho essencial para a inclusão do nome do grapiúna no
quadro da literatura brasileira do século vinte:
“Extraordinária
capacidade de dar aos aspectos mais típicos da realidade nacional, em estilo
profundamente impregnado da nossa fala brasileira, a revelação de um escritor
visceralmente nosso... admirável ficcionista”.
Convém lembrar que
foi em 1968 que Cyro de Mattos viu seu nome ser incluído entre os bons
contistas, quando a narrativa “Inocentes e Selvagens” – selecionada para
figurar neste e-book – recebeu o Prêmio Internacional Cervantes, da Casa dos
Quixotes, para autores portugueses, africanos e brasileiros de língua comum.
É ele quem revela,
em correspondência de outubro de 2018, ao organizador deste volume:
–
“Concorri com mais de 100 autores. Como era um concurso expressivo na
época, lançou-me como autor de ficção curta no circuito nacional. Eu era
desconhecido, estava dando os primeiros passos, hesitantes, em minhas
atividades literárias. Havia publicado Berro de Fogo, contos,
livro riscado de minha bibliografia; nasceu imaturo, cheio de vícios.”
A atitude consciente
do contista, rigoroso a ponto de abandonar um livro que não mais respondia ao
rigor da sua obra, nos remete ao escritor português Miguel Torga, cujo primeiro
volume das suas obras publicadas no Brasil, pela Nova Fronteira, em 1996, tive
a oportunidade de fazer uma introdução crítica, por sugestão da família do
autor. Como foi observado, não apenas vários contos, mas alguns livros
torguianos, na sua forma original, foram reescritos, repetidamente, em novas e
constantes reedições. Nesse particular, o nosso Cyro de Mattos adota o
procedimento do autor português da geração de presença, diferentemente do que
fez o também grapiúna Jorge Amado, fundador e figura de topo do ciclo do cacau
na Literatura Brasileira.
Amado não volta aos
seus romances da juventude para reescrevê-los. Ao contrário, deixa essas obras
na forma original, mesmo quando revelam uma escrita em processo de
amadurecimento ou quando traduzem uma perspectiva ideológica que se modificou
ao longo do tempo, especialmente ao descobrir – com traumas e assombro – as incoerências
da prática comunista de Stálin, contrárias à sua concepção humanista da
socialização dos bens e dos valores.
Voltando ao juízo
feito por Cyro de Mattos das suas narrativas, convém transcrever mais um trecho
da já referida correspondência:
–
“O conto “Os Recuados”, pungente e denso, é a história de uma mãe miserável,
coitada, que mata o filho por amor, pois não suportava mais vê-lo chegar em
casa bêbado. Ele bebia muito porque se via rejeitado como um índio pelos
humanos, na feira. Deixo que isso seja visto nas entrelinhas.”
Em 1983, a Editora
Tchê, de Porto Alegre, deu a lume o livro Os Recuados, de onde
foi retirado o conto título, para compor este livro digital agora publicado na
coleção “Teal” da E-Book.Br. Estes dois contos já citados são fundamentais na
obra do autor e, coincidentemente, ouvindo-o sobre suas preferências, ele
destacou as duas narrativas que ao lado de outras já tínhamos em vista para
integrar este volume.
Surpreendentemente,
para mim, Cyro de Matos destacou textos por ele intitulados de “contos de gente
jovem”. O primeiro deles é “História do Galo Clarim”, que eu não conhecia e
creio continuar ainda inédito, e o segundo é “O Menino e o Boi do Menino”, que
completam este volume intitulado Nos Tempos do Trabuco. Esse
último texto saiu em 2007 como um pequeno livro para os novos leitores
infanto-juvenis, através da editora Biruta, de São Paulo.
Pela qualidade dessa
faceta do escritor, a de autor de livros para jovens e crianças, e ainda mais
pela natureza das narrativas de múltiplo alcance, isto é, capazes de interessar
ao público adulto e a conquistar jovens andarilhos que se aventuram pelos
caminhos da leitura, tais inclusões valorizam este e-book..
Embora apenas os
contos “Inocentes e Selvagens” e “Os Recuados” integrem explicitamente a
sangrenta temática do ciclo do cacau na Literatura Brasileira, o leitor das
obras de Cyro de Mattos tende a situar esses singelos acontecimentos da
infância no mesmo cenário geográfico das suas outras narrativas ficcionais,
plenas de heroísmo e vilania que marcam a saga do cacau.
Convém observar que
“Inocentes e Selvagens”, além de ter aberto espaço para esse escritor nascido
em 1939, na cidade de Itabuna, veio a integrar o livro Duas Narrativas
Rústicas, editado no Rio de Janeiro, em 1985, pela editora Cátedra.
Jorge Amado foi um
dos muitos leitores privilegiados da obra desse escritor a deixar patente a
admiração pela sua escrita genuinamente brasileira:
“Cyro
de Mattos possui uma personalidade vigorosa e original, a condição humana dos
personagens que surgem do seu conhecimento e da sua emoção nada tem de
artificialismo... O autor de Os Brabos pisa chão verdadeiro, toca a carne e o
sangue dos homens, entre sombras e abismos.”
Diplomado em Direito
pela Universidade Federal da Bahia, ele foi atraído pela força e pelo encanto
da palavra escrita. Seguindo o caminho da maioria dos escritores brasileiros da
região Nordeste, Cyro também se fez retirante, levando seu gibão de couro,
cheio de histórias pra contar, até a ex-capital do país, o Rio de Janeiro. Para
encontrar audiência, trabalhou como redator do Diário de Notícias, do
Jornal do Comércio e de O Jornal,
de 1966 a 1971; colaborando ainda com artigos e contos na
revista A Cigarra e nos Cadernos Brasileiros e Leitura,
além do Suplemento Literário do Jornal do Brasil e d’O
Jornal do Escritor.
Como o bom filho
quase sempre retorna à casa paterna, o escritor Cyro de Mattos voltou a morar
em Itabuna, onde exerceu a advocacia e também encontrou tranquilidade para
fazer frondosa a sua obra de mil e uma facetas.
·
Cid Seixas é poeta,
ensaísta e Doutor em Letras pela USP. Editor da Editora Digital
Universitária. O texto “Do Trabuco à
palavra” é a apresentação do livro “Nos Tempos do Trabuco”, do baiano Cyro de
Mattos, publicado pela e-book Editora Digital Universitária, Salvador, 2018.
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