Pássaro Acauã
Cyro
de Mattos
O canto agourento quando canta no galho seco.
Cruz-credo, não sossega, com que insistência magoa o peito. O tempo anuncia com
estiagem demorada, canta perto e longe. Céu de fósforo o amanhecer, forno
quente no poente. Bocas na amplidão de fome e sede. Os pais, a mulher, os
filhos pequenos, todos ouvindo o canto atanazado, ferindo os tímpanos. Manhãs e
tardes. O pai: Não esmoreça nem desespere. Espere que cante no galho verde. Lembre disso: No
galho seco é do demo. No verde, canto bendito, o melhor tá pracontecer. O céu
junta fiapos de nuvem no começo. Não demora de escurecer o teto. Vem chuvisco
de primeiro, chuva de segundo, no fim aguaceiro. Relâmpago, trovão, temporal.
Vento valente vira vendaval. Terra e água, uma só liga, mundéus. Quando o sol
então abre o olho, a flor brota do chão humoso. Tronco morto vira árvore, o
gavião rei amanhece. Pelos ares circulam
cantos, nas folhas o brilho dos pingos, no seio da natureza generosa
tudo é festejo.
Atravessar males da estiagem, ouvindo
o canto agourento, veja que Deus tarda, mas não falha, eis que um dia vem cantar no
galho verde. Bom lembrar que acontecerão as
flores, virão pra compensar os
sentimentos esvaídos quando o canto é triste, repetido. O pai ouviu isso do
avô, que ouviu do bisavô, que ouviu do trisavô, que ouviu do tetravô, que ouviu
do tempo infindo.
Crendice
besta de velho sem juízo. Fizera pouco dos ditos, os ouvidos entupidos praquele
tipo de iludição. O que existe mesmo pro pobre é trabalho muito e o pouco
de-comer, vidas secas, destino. Pobre nasceu
pra ter na vida só secura, foi o que se deu com o pai, a mãe, os irmãos
pequenos. Como dói olhar as cruzes deles nas covas junto do lajedo. Lembrar dos
corpos com pele e osso. Olhos mortiços.
Agora enfrenta essa estiagem braba há
quase um ano. Nada pode fazer. Como brasa céu e margem. A história novamente
acontece. Canto, encanto, desencanto. Frutos murchos, folhas mortas, choro oco,
grito sem eco. Ele e o deserto, só deserto. Ares da morte nas pedras, tocos,
troncos. Diabo de canto resinguento. E ainda o coro dos filhos nos pedidos: “Tou com fome, tou com sede.” Surdo
ele, muda a mulher. O coração de cada um doendo, a fome roendo nas tripas.
Quem tem
medo de acauã?
Rumores, clamores, tremores:
humanos anseios. Sonha com a chuva, no íntimo querendo ver a flor, o
fruto, pegar o verde. Inundar o olho
alegre pela terra como brasa verdejante, de tanta beleza e brilho. A-c-a-u-ã, a-c-a-u-ã, a-c-a-u-ã, o canto do
Cão no arvoredo seco. Tenso apalpando, segue ouvindo, desespero no corpo,
raiva marca o ritmo da mente. Mira
perfeita, dedo no gatilho, a bala bem no peito.do bicho. Como se saísse pela
goela seca, latejando ódio, vendo o
bicho cair junto aos pés. Troço nojento, tão ruim quanto veneno!
Quem falou que emudeceu? Na serra, baixada, jaqueira no
terreiro. Depois do acontecido, mais cantou. Que estranha magia rege este canto
secreto? Psiu, veja, homem de Deus,
chuvisco, daqui a pouco chuva, em pouco tempo aguaceiro. É mesmo?
De cara virada para o
céu, chumbo, a chuva como chumbo batendo
na terra, o pai não disse? Esqueceu? Por que não quis ouvir o que os mais
velhos bem conhecem? Encharcando-se, sentado no cepo do ipê, lambendo os pingos. Do estômago à boca há
um gosto diferente. Sal de lágrima
misturada com a água que cai do céu. Escorre
bendita por entre rachaduras, noites mal-dormidas. Ele todo febrento.
Não é que o bicho cantou no arvoredo verde? Enfim, os olhos com visões alegres:
capim chovido, a natureza toda alaridos.
Solitário, cabisbaixo, a tristeza de dentro dele quer
saber: O que é, o que é, põe o sol como
hóspede no arvoredo seco, esperança no
galho verde quando quer?
A noite
envolve o casebre com as paredes de adobe exalando o cheiro de barro
molhado. Ferrado no sono. Decerto um
canto propaga-se no sonho, atravessa caminhos sob o silêncio da noite
turva. Preserva o mistério das falas. Sabe o flagelo do sol, o prazer da chuva.
De jejuns, de água.
Desencanto ou encanto. Lá fora quieto. Por enquanto.
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